Fim do mistério

Fim do mistério

A história não faria sentido se fosse uma ciência somente para especialistas, como as ciências médicas, por exemplo. Todo indivíduo basicamente alfabetizado pode e deve lidar com a história porque ele também é parte dela. É parte da memória que atua na reconstrução do caminho sinuoso percorrido pelo gênero humano sobre esse mundo na esperança de não repetir os erros do passado. Portanto, quanto mais acessíveis forem os resultados dos nossos estudos, melhores oportunidades nós oferecemos ao futuro da nossa própria espécie.

Há décadas me dedico exclusivamente à história do cristianismo ─ entre os dois últimos séculos da Era Antiga e os quatro primeiros séculos da Era Comum ─ com a intenção de desvendar o mistério que envolve o surgimento do acontecimento mais importante da história da Humanidade, no meu entendimento. Por isso só escrevo sobre o assunto e espero fazê-lo até o fim dos meus dias. Procuro esmerar-me no seu resumo para facilitar os interessados na verificação dos fatos, tendo em vista à impossibilidade de se encontrar no acervo da cultura dominante a matéria já mastigada.

O cristianismo nunca foi judeu nem o Novo Testamento é continuação do Antigo, como pretendem alguns. Também nesse sentido a bíblia é uma fraude. As semelhanças com o judaísmo correm por conta da argúcia e da experiência dos gregos com os judeus. Garantem os especialistas que nenhum dos evangelhos contou com um original em hebraico ou em aramaico. Todos os documentos cristãos têm o grego (koiné) como língua original na redação.

O helenismo ao ver-se ameaçado pelo avanço do proselitismo judeu, no primeiro século, investiu na única saída possível: sintetizar um antídoto que foi efetivar-se somente no segundo século. Por não contar com uma política religiosa capaz de oferecer combate ao prestígio crescente do judaísmo junto aos menos favorecidos, a cultura helênica levou tempo para reunir os elementos necessários a uma reação á altura, tanto contra o domínio romano quanto ao avanço judeu.

Na tradição judaica todos são filhos de Deus; ninguém pode ser um Deus filho; ninguém pode absolver os pecados do outro baseado na crença da divindade de um falso messias, porque o messias será humano. Para os judeus o messias virá numa era de paz. Não houve paz no período da alegada existência de Jesus e tampouco depois, isto é, até os dias de hoje. Jesus não poderia ter absorvido os pecados do mundo como o cordeiro imolado e os judeus não acreditam que alguém o possa, e, ainda por cima, ressuscitar; idéias absurdas para o judaísmo. São muitos os motivos que invalidam Jesus como o messias para os judeus. Ainda que eivado de crenças estranhas ao judaísmo, sob o aspecto grego, o cristianismo se revela indiscutivelmente como o platonismo do povo.

No Apocalipse de João o nome Jesus Cristo aparece poucas vezes e não faz falta ao texto. Parece uma inclusão tardia, pois o cordeiro imolado é o personagem principal. A advertência feita no final (Ap 22:19) contra quem retirar palavras, pode sugerir o receio de que o texto retomasse sua forma original. Engels datou este escrito entre 68 e 69 e seus argumentos são válidos quanto à datação. No entanto, o Apocalipse de João (Apocalipse significa revelação) parece ser um texto pré-cristão, pois se identifica bastante com os panfletos apocalípticos e anti-romanos da mesma época, nos quais se constata influência judaica e eram comuns na Ásia Menor.

A revelação da grande ira de Deus, a vir

No fim dos tempos sobre o incrédulo Mundo,

Eu dou a conhecer, profetizando-a a todos os homens...

Sobre ti um dia virá, ó altiva Roma,

Um merecido castigo do Céu, e tu a primeira

Curvarás o pescoço, descerás ao nível da terra

E o fogo te consumirá totalmente, curvada

Para as tuas calçadas. A tua riqueza perecerá

E no teu local os lobos e as raposas se estenderão

E então tornar-te-ás tão desolada

Como se não tivesses existido...

Está o fim do mundo, muito perto, e o último dia

E o julgamento do Deus imortal para aqueles

Que são chamados e escolhidos. Primeiro,

A inexorável cólera cairá sobre Roma:

Tempos de sangue e desventurada vida virão.

Ai, ai de ti, ó terra de Itália,

Grande, bárbara nação...

E nunca mais sob o teu jugo escravo

Porão o pescoço o Grego, o Sírio

O bárbaro, ou outra qualquer nação;

Tu serás saqueada e serás destruída

Pelo que fizestes, e gemendo com medo

Cederás até que tenhas pago tudo.

(Grant, 1977, p. 78 e 79)

Como vemos, se trata de um texto de influência judaica, evidência de que o proselitismo judeu estava ativo também na Ásia Menor. O panfleto se refere explicitamente a gregos e sírios. Sabemos que grande parte dos escravizados em Roma, no primeiro século, eram de origem síria e anatoliana. Fosse o referido panfleto de origem judaica, jamais a auto-referência seria “O bárbaro” ou “qualquer outra nação”. Portanto, é um texto de influência judaica e não um texto judeu.

Idêntico sentimento de ódio e vingança está explícito no Apocalipse de João. Tal linguagem não aparece mais em nenhum outro documento cristão a partir do segundo século. Não existem notícias que justifiquem essa mudança drástica no cristianismo primitivo. Aliás, esse movimento visava o poder e o conseguiu. Não seria agredindo moralmente os romanos que chegaria lá. Aliás, ao que parece, nesse sentido, os romanos natos estavam alguns degraus acima da média dos anatolianos.

A versão oficial da história do cristianismo é inteiramente contada pelos gregos e não é confirmada por mais ninguém, nem por eles mesmos, os não engajados, evidentemente. A intenção dessa história é anular o poder judeu sobre a Lei judaica e transferir o direito de uso do Antigo Testamento para os gregos. Uma usurpação absurdamente descarada que a filosofia oculta com seu envolvimento. A virulência anti-judaica é grega de origem e cristã em decorrência.

"Os judeus e a nação de Israel são apenas testemunhas da verdade do cristianismo, serviram apenas para deixar o legado da fé e da verdade cristã. Agora deveriam estar em constante humilhação quanto ao triunfo da igreja sobre a sinagoga. Não há salvação para os judeus. Eles já estão perdidos de qualquer forma." "O judaísmo é uma corrupção e os judeus devem ser escravizados". ─ Santo Agostinho.

Gregos eram os pais da Igreja e seus principais continuadores. Gregas são as lendas que inspiraram as “histórias” dos seus mártires. Grega era a língua oficial da Igreja. Grego era o imperador que foi levado a conduzir o cristianismo ao poder e transferiu a sede do Império Romano para território grego, pondo fim ao prestígio de Roma. Grega é a representação da figura de Jesus Cristo.

O cristianismo do primeiro século com Jesus Cristo, apóstolos, epístolas, Concílio de Jerusalém, atos dos apóstolos é puramente literário, ou seja, é ficção pura, nunca existiu. Não existe um único nome judeu na alegada transição do cristianismo para o mundo grego, senão o do controvertido Paulo.

"Fiz-me judeu para os judeus, para ganhar os judeus" (1 Coríntios 9:20).

Paulo é mais um personagem criado pela propaganda cristã elaborada por filósofos e historiadores, que se serviu da história e de alguns dos seus personagens para dar consistência biográfica aos seus mitos. É impossível que um personagem tão expressivo que figurasse numa narração detalhadíssima, que se desenvolve na Europa, na Ásia Menor e no Oriente Médio, exercendo uma atividade tão polêmica, não tenha deixado vestígio algum da sua passagem por esse mundo.

O cristianismo apostólico existe somente na história da Igreja. A história é uma invenção grega e esteve sob sua hegemonia didática, por intermédio da Igreja, desde o século IV. A participação da cultura judaica na formação da cultura ocidental se limita a influência religiosa do Antigo Testamento, enquanto a cultura helênica dominou ou continuou dominando todos os setores do conhecimento, do ensino e da educação.

“Acredito, de fato, que os gregos em grande parte nos inventaram. Sobretudo ao definir um tipo de vida coletiva, um tipo de atitude religiosa e também uma forma de pensamento, de inteligência, de técnicas intelectuais, de que somos em grande parte devedores. A história do Ocidente começa com eles. E mais, eles transmitiram seus métodos e seu conteúdo de pensamento, na época helenística, ao Oriente e à Índia. Foi, aliás, por intermédio da cultura árabe que a Grécia sobreviveu a si mesma na Idade Média, antes de ser redescoberta pela Europa. Como se vê, o caudal do helenismo seguiu todo tipo de meandros, mas ressurgiu, periodicamente.” ─ Jean-Pierre Vernant (1914-2007 historiador e antropólogo especialista em Grécia antiga)

Ao ceder à tentação de criar um judaísmo grego, a cultura helênica mudou dolorosamente para permanecer. Tal ousadia custou-lhe caro. O cristianismo foi uma obra dos gregos orientais e não dos ocidentais atenienses, ainda que muitos destes tenham colaborado. O imperador Teodósio I enfrentou e debelou uma revolta armada dos tradicionalistas helênicos contra a nova cultura. É como diz o especialista, a Grécia sobreviveu a si mesma. No entanto, filósofos, grandes artistas e outras expressividades humanas produzidas pela cultura helênica, nunca mais.

Eis o segredo do surgimento do cristianismo: a disputa entre gregos e judeus pela hegemonia cultural no mundo antigo, apimentada pelo sentimento anti-romano. Essa é a história do auto-sacrifício de uma cultura que pretendia renascer num paraíso. É o fim de um antigo mistério cujo desvendamento sempre esteve aos olhos de todos, oculto pela excessiva exposição. Esta fórmula antiga que mistura costumes antagônicos, gregos e judeus, como um fator de encaminhamento da Humanidade está com o prazo de validade vencido.

Há quem prefira crer que os gregos se apoderaram do inexistente cristianismo judeu e que Jesus foi, de fato, uma figura histórica. Para quem foi criado num núcleo familiar sob os valores cristão fica difícil aceitar a farsa por inteiro. A estética filosófica que promove o prazer sentimental se vê na obrigação de, pelo menos, tentar salvar o Salvador. Por outro lado, até os judeus conseguem extrair dividendos da lenda engenhosamente fabricada quando a coisa fica feia para eles. Isso começou com a revelação dos campos de extermínio no fim da Segunda Grande Guerra. A cristandade leiga ficou profundamente chocada com o fato e solidarizou-se com os judeus. Assim sendo, do azedo limão, os judeus fizeram uma refrescante limonada para o futuro quente que se anunciava ─ a fundação do Estado de Israel.

Só estava faltando saber o porquê. Agora não falta mais nada.

Referências

http://www.conversaojudaica.org/diferencas.php

GRANT, Michael. História das civilizações: o mundo de Roma. Lisboa: Arcádia, 1977.

http://www.marxists.org/portugues/marx/1895/mes/cristianismo.htm

http://www.csbrj.org.br/culturaclassica/Jean.htm

Nicomedina
Enviado por Nicomedina em 25/09/2010
Código do texto: T2520437