Sobre o acréscimo de uma vírgula

Aprendi que, do que está escrito na Bíblia, não se muda uma vírgula.

Ao longo dos séculos, contudo, seus textos originais, sendo muito de seu conteúdo de cunho imaginário, ganharam traduções para os vários idiomas do planeta.

Até onde eu aprendi em escolas sabatinas e conversas com filósofos, Deus não gosta muito que sondemos Suas entranhas – mesmo tendo permitido a presença dos tais filósofos, tendo-nos mesmo concedido considerável nível de curiosidade, poder de investigação e livre-arbítrio.

Em Babel, quando muitos quiseram chegar ao céu de Deus construindo uma torre, soube que o Todo Poderoso os impediu de continuar o trabalho fazendo-os ficar incompreensíveis uns para os outros. Foi quando surgiram os idiomas e, séculos depois, a necessidade de se traduzirem escritos considerados "sagrados" ao entendimento de outras línguas.

No processo, não apenas vírgulas e pontos foram deslocados de suas posições originais, mas todo um conjunto de signos foi adaptado ao entendimento de outros sobre os textos sagrados. Talvez, em sua originalidade, os primeiros sinais escritos informassem melhor as histórias da existência dos seres e dos valores que nos fariam pensar em ser “humanos” domadores de feras e, mais, de nossa natureza feroz; ou seja: não apenas ter poder sobre todo animal da face da Terra, mas principalmente domadores de todos os bichos que, ao longo de certas evoluções, nos constituíram desde antes do Éden, ainda tão presentes a se manifestar quando menos esperamos.

Imoralistas como o filósofo alemão Nietzsche criticam a atitude dos domadores de nossa parte bestial, dos chamados “moralistas” ou, como eu, dos pseudo-moralistas metidos a “melhoradores da humanidade”. Para contestar preconceito reinante sobre o que seja Humano, contudo – preconceito que valoriza todos como seres “humanos” e depois se horroriza com desumanidades – devo dizer incompatível que a crueldade possa ser expressão de uma humanidade. O termo “desumano” designa uma qualidade de humanidade ausente naqueles que, para nosso infortúnio, apenas são “humanos” na aparência.

Infelizmente a realização do Humano tende necessariamente ao sacrifício de naturezas – embora estejam certos ecologistas: não é humano plantar edifícios no planeta ao invés de árvores frutíferas. Mas, para ser Humano, será preciso começar do ponto onde a Natureza em nós é mais bestialmente dominante. Porque para que se processe tal ser humano ideal em nossas relações não se deve negar a necessidade de domesticações de instintos. Como os gatos e os cachorros – embora, como domadores, pouco temos evoluído a evitar que sejam eles antipáticos uns aos outros – devemos ser animais domesticados ou “educados” à realização de nossa humanidade.

Para exemplificar o que digo, para desqualificar ou qualificar a Humanidade numa sentença devo apenas acrescentar uma vírgula; como na frase abaixo, que me foi enviada pelo amigo artista plástico Hélio Santiago:

“M. Archidy: continuo aluno observador da racionalidade dos animais que sabem o que fazem ao agir sem receios" – escreveu ele.

Aqui, ele qualifica os “homens” como “animais que sabem o que fazem”. Mas se na frase dele eu por uma vírgula, ela vai ficar assim: “M. Archidy: continuo aluno observador da racionalidade dos animais, que sabem o que fazem ao agir sem receios", e então direi que ele está a se referir às bestas e suas atitudes naturais, isentas de culpas e medos – embora de modo geral, como ele disse, nas ações animais não haja muita evidência de influências de uma racionalidade.

Entre macacos, entretanto, podemos observar expressões de inteligência. Dizem que certa raça de cachorro adulto tem o nível cognitivo de uma criança de cinco anos.

Os animais são fisiologicamente iguais a nós. A diferença entre eles e nós é que tempos a capacidade de compreender e criar, ou, mais acertadamente, inventar.

Com o auxílio de um sistema nervoso, e um cérebro desenvolvido a gerar a memória e a imaginação, inventamos identidades, desenvolvemos técnicas de interferências na Natureza, artefatos, e então inventamos outros mundos que se desenvolvem como expressões de culturas.

A despeito de certa perversidade reinante, a formação de culturas é impulsionada por este ideal de realização Humana, por esta fome de humanidade que já muito nos fez superar certas submissões a instintos e obter melhores qualidades de vida. E tudo isso porque, nos desenvolvendo humanos, fatalmente quiséramos instaurar outras dimensões de reconhecimentos do “Ser”, ou dessa Vida que, conosco, depois de Se tornar Humana, quer constituir Sua ambiciosa marcha para as realizações daquilo que então aprendemos a consider algo “divino”.

Neste percurso, entre os cronistas bíblicos – que nos advertem sabiamente sobre os perigos de deslocarmos vírgulas e pontos – e os que andam a escrever “O Livro de Urântia”, por exemplo, prefiro as permissividades do segundo no que diz respeito a referências a necessidade de correções, ou mesmo acréscimos de informações em seu texto sobre certas fatias da Verdade percebida.

Porque, mais do que nunca, é preciso que nos cheguem todas as revelações e libertações prometidas (para o futuro quando estamos) que a inteligência de verdadeiros seres humanos pode realizar.