Malandragem e Cinismo: notas sobre a 'brasilianização' do mundo.

I

E o mundo “brasilianizou-se”: estamos na vanguarda. Pelo menos, esse é o novo mote das ciências catedráticas. A segunda modernidade tem fixação pelo maleável. “A consumada modernidade flexível, então, é isso que se está vendo no velho laboratório brasileiro da mundialização: esse entra e sai na esfera peculiar dos mais diversos ilegalismos, tanto no plano da mera viração dos despossuídos, quanto no âmbito da alta transgressão que distingue os pilares da sociedade nacional” (ARANTES, 2004: p.75). A flexibilidade hipermoderna é um encontro – esquizofrênico – com a nossa malandragem, tão velha e nova quanto a sua dialética. Éramos Colônia, e sem saber já éramos a vanguarda do mundo do capital do Século XXI, e quem diria, nossas elites já jogavam os dados pós-modernos entre a exceção e a regra. O “jeitinho brasileiro”, maleável per excellence, vem desde nossa fundação: um estado negreiro que contraria regras do capitalismo internacional, mas que consegue protelar tudo, com nossa famosa flexibilidade aqui e acolá. Afinal, o comerciante informal que vende DVDs “piratas”, pode permanecer flexivelmente nesta condição para o ordenamento legal, com a “ressalva malandra”, da propina. O inesperado é que a regularização à brasileira virou à tona do novo capitalismo flexível. Arantes em seu texto, “A fratura brasileira do mundo”, é bastante feliz ao citar o filme “Cronicamente Inviável” de Sérgio Bianchi. Em uma de suas cenas, Bianchi mostra duas mulheres ricas que atropelam um mendigo e criam articulações para justificar o fato. Este é outro tipo de manifestação do laboratório vanguardista nacional: criação de articulações pseudo-lógicas sem nenhum peso estrutural. Assim, sempre será possível apelar para o: “atropelado desrespeitou a lei, sem contrato social não existe sociabilidade”, ou em outras situações, usar o seu contrário: “sem algum tipo de transgressão não existe criação, tudo seria igual”. Flexibilidade que permite o deslocamento de acordo com os interesses em jogo. Jogo hipermoderno. Afinal, no Brasil: do carnaval, da casa-grande repleta de afetos entre a escrava e o seu dono, e do malandro, o que vale é a festa – rito – da multiplicidade, mistura entre pobres e ricos, raia-miúda e elites. O espetáculo freireano da miscigenação colonial, ou ainda melhor – e mais atual, o espetáculo hipermoderno do capitalismo flexível. Desmoralização da dissidência.

II

O jogo de máscaras das elites nacionais sempre foi o de transformar sistematicamente diferença em unidade. A astúcia das elites nacionais em formular “unidades flexíveis” ficou evidente no Império. Onde a troca constante de gabinetes – entre liberais e conservadores – fazia parte da flexibilidade imperial de praticar “política”. A dobra é que: pouco importava se eram liberais ou conservadores. Afinal de contas, o que conta é dividir para unir. Abecedário daqui, que ganhou o mundo – deleuzeano? (sic). Por essa nem o mais lúcido de nossos malandros esperava, continuamos sendo exportadores, só que agora, de sutilezas. Nesse jogo tupiniquim, o que vale é dar opções - sem substância, claro - para todos os gostos, para depois, uni-los “brasilianamente”, quem sabe até, numa festa carnavalesca. Afinal, os dois lados (existe mesmo dissidência?) estão sempre em comunhão, só não se sabe bem quem escolhe a melodia. Ou melhor, se sabe.

III

O Brasil foi o grande laboratório experimental da racionalidade cínica do capitalismo tardio. Mas como isso aconteceu? Safatle nos dá pistas. A instauração da segunda modernidade mo mundo não trouxe renovação das estruturas sociais. Existe uma aparente autonomia do sujeito, um mundo sem barreiras, sem preconceitos, enfim, um mundo aberto; mas só na aparência, as barreiras, as divisões sociais, os preconceitos, continuam existindo. Ocorreu aquilo que ele chama de “estabilização na decomposição”. O capitalismo não precisa mais se refugiar, pode ser agora transparente. Desde que, saiba se utilizar da razão cínica e da flexibilidade, tipicamente tupiniquim. O cinismo é “a recorrência de casos de enunciação da verdade que anulam a força perlocucionária da própria enunciação sem, contudo, transgredir os critérios normativos de enunciação e justificação" (SAFATLE, p. 76). Ou seja, um discurso que mantém a lei mesmo a transgredindo. Flexibilidade entre a exceção e a regra, tipicamente malandra. A ideologia agora é a “falsa consciência esclarecida”. As divisões são transparentes, mas não são superadas, ou sequer refletidas, porque seu conteúdo é previamente ironizado, assim elas podem continuar circulando. Além disso, a racionalidade cínica, como “falsa transparência esclarecida”, precisa conseguir uma “unidade flexível”, funcionando com aparente mobilidade, mas operando dentro de uma estrutura rígida. A racionalidade cínica é uma fratura social bem calculada, onde sua flexibilidade é o que garante a extrema rigidez de sua estrutura racional. Mediação cínica para sustentar a imediaticidade do real, malandragem para esconder o dissidente. Acontece que no Brasil, a razão cínica já fazia escola há tempos, mas agora, ela transformou o mundo todo num grande carnaval. Ironizando previamente as dissidências, nos convida diariamente para o espetáculo da multiplicidade, carnaval por onde todos desfilam “superando” as barreiras, sem desafiar nada. Afinal, o que desafiaríamos num “mundo sem divisões”? E agora? A lógica cultural de nossos tempos nos diz que vivemos nos tempos fluidos do multiculturalismo. Mas as estruturas permanecem operantes, o cinismo malandro “mantém a lei do valor, ao mesmo tempo em que desacredita a lei”. A música que rege a festa do múltiplo, continua nos fazendo dançar com bastante mobilidade, ainda mais em terra brasilis, onde semelhantemente à festa da miscigenação colonial, o traficante pode dançar um bom samba com o policial, desde que a propina seja boa e o passo esteja afiado; mas isto não é problema, afinal de contas, o brasileiro tem o dom da ginga. Acontece que quem escolhe a melodia é o malandro. A malandragem de nossas elites.