Que futuro nos espera?

O espírito científico, fortemente amarrado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica. Ela se distingue da crença das multidões ingênuas que consideram Deus um Ser de quem esperam benignidade e do qual temem o castigo [...]. [...] A moral não lhe suscita problemas com os deuses, mas simplesmente com os homens. Sua religiosidade consiste em espantar-se, em extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza, revelando uma inteligência tão superior que todos os pensamentos humanos e todo seu engenho não podem desvendar, diante dela, a não ser seu nada irrisório. [...]. (EINSTEIN, 1981, p. 23)

Antigamente para se atravessar um oceano levava-se meses em navios a vela numa viagem perigosa e cheia de incertezas. As distâncias eram enormes por causa dos recursos limitados oferecidos pela tecnologia da época. Logo as distâncias diminuiriam com o navio a vapor e depois, ainda mais, com os navios movidos a óleo cru. A chegada da aviação comercial a pistão encurtaria para algumas horas a travessia oceânica. Com o advento das turbinas a jato as novas aeronaves reduziram muito mais o tempo de vôo. Em 1961, Yuri Gagarin deu a volta ao planeta em menos de uma hora e meia, já no espaço sideral. Em 1969, a missão Apolo 11 levou os primeiros homens à Lua em quatro dias de viagem. Será que Cristóvão Colombo ou os reis de Espanha acreditariam nisso? Claro que não, ai de quem se atrevesse a proferir tamanha “imbecilidade” naquele tempo.

Hoje, em que tempo vivemos? A tecnologia que levou o homem à Lua está inteiramente superada. Já se bisbilhota Marte e sondas já foram parar fora do sistema solar. Estamos conscientes de que as longas distâncias são pura relatividade científico-tecnológica. A partir da segunda metade do século vinte a humanidade se viu em uma nova realidade que guarda alguma semelhança com o seu próprio passado. Os europeus chegaram às Américas em busca de riquezas, ouro principalmente. Tentaram escravizar os indígenas e cometeram barbaridades para conseguirem o que desejavam. O que impedirá que de argonauta cobiçoso do passado, o Homem passe a astronauta cobiçoso do futuro? Tecnicamente nada.

Imagine que ao encontrar um planeta semelhante ao nosso, com seres viventes semelhantes a nós, porém menos desenvolvidos na inteligência por se encontrarem em harmonia com o estágio de evolução da sua biosfera, pudessem aqueles ser de alguma utilidade aos exploradores terrestres. Suponhamos que o envio de equipamentos avançados de mineração estivesse inviável por algum motivo e a atmosfera local fosse um pouco mais rarefeita do que a terrena. O trabalho braçal nas minas abundantes seria demasiado cansativo e improdutivo para os homens. Outro tipo de trabalhador mais adaptado seria o ideal e a saída óbvia: um ser intermediário, entre os autóctones e o Homem, resolveria a questão. Com um cérebro maior o ser híbrido poderia receber ordens e executar tarefas impossíveis ao ser original de lá.

Avançando neste terreno, imagine que as conquistas da medicina e da engenharia genética nos tivessem prolongado muito a vida e os seres locais vivessem por período bem mais curto do que o nosso. Com a sua inteligência em evolução e adaptada àquela realidade, quanto não se espantariam com a visão de homens tão altos e sem pelos diante deles? Principalmente vindos do céu em suas naves? A motivação econômico-científica da missão e seu alto custo concederiam licenças pouco comuns aos seus líderes aqui na Terra. Do ponto de vista moral, os homens estariam muito longe de casa, sem a opinião pública para vigiá-los e os financiadores da missão a pressioná-los a espera do retorno polpudo dos seus investimentos. Imaginemos também que a sociedade terrena, no geral, houvesse evoluído muito moralmente, mas essa pendência persistente ainda não a tivesse abandonado.

A mais temerária aventura da espécie humana se iniciaria. Um óvulo de uma fêmea nativa fecundado por um espermatozóide humano com sucesso deu a partida. Em princípio, híbridos não procriam, mas de exemplares retirados da nova espécie, o Adão de lá, foi possível superar a dificuldade que se apresentava nas fêmeas e a procriação foi notável. Criaram uma raça matriz que precisava ser preservada como o topo daquela aventura biológica que tão bem os serviria. O ser local era de baixa estatura se comparado ao Homem. As primeiras gerações da nova criatura não eram tão altas quanto, porém eram mais bonitas e longevas do que a sua outra metade. Mais tarde, esta raça adâmica acabaria por se misturar a outras oriundas de experiências menos felizes e a raça cairia.

Imagine quem seriam os homens para essa nova criatura utilitária? Ela não se identificava com os seus semelhantes naturais e nem poderia, tampouco, com os demais viventes de lá. A sua referência seriam os homens, seus criadores, que a concebeu às suas imagens e semelhanças. Aqueles com os quais ela se relacionava e demonstravam uma superioridade inatingível. Por viverem mais do que ela pareciam-na imortais. Impressionavam-na de todo modo por serem tão especiais naquele mundo. Eram tão poderosos que parecia governarem até a natureza.

O Homem ensinava-lhe tudo o que interessava no trabalho das minas; ensinava como desenvolver métodos de subsistência para o sustento deles próprios e das suas criaturas de trabalho; como fazer criações de animais; como construir abrigos confiáveis; ferramentas; meios de transporte; como transmitir o conhecimento; enfim, lançou as bases de uma nova civilização de colonos mestiços em posição avançada. Passado um bom tempo, enquanto os homens se preparavam para a partida, exigiam fidelidade para com os ensinamentos deles como um marco de conquista e também como um modo de abrandar um pouco o peso em suas consciências. Talvez por acreditarem que isso minimizaria o sofrimento da nova criatura entregue a própria sorte.

As criaturas que demonstravam maior aptidão os serviam particularmente, o que era um grande prestígio. Instruídas por eles, construíram suas moradas e partilhavam dos seus conhecimentos sobre as estrelas. Cuidavam em manter a casa dos homens limpa e arrumada, cuidavam também da alimentação deles. Procuravam agradá-los de todo modo oferecendo iguarias que eram colocadas sobre uma mesa alta e comprida, para que os homens não se curvassem. Essa mesa tomaria o nome de altar. Os camareiros dos homens acabaram por se tornar com o tempo uma casta diferenciada. A sabedoria humana era ministrada a estes camareiros, no templo, pelos próprios. Assim o conhecimento ou a ciência dos seres divinos (deuses) ficou conhecida mais tarde como teologia, literalmente: o estudo da ciência ou do conhecimento dos deuses. Dessa maneira foram preparadas as lideranças das futuras comunidades e era natural que estes indivíduos acumulassem mais conhecimentos do que o restante. Devotados servidores daqueles que vieram do céu, os seres do céu, os seres divinos.

Adorando seus pais celestes, a nova criatura nem desconfiava da enrascada em que estava metida. A presença física daqueles seres fantásticos desviava a própria atenção de si mesma. Longe dos homens seria muito mais complicado lidar com suas dificuldades intimas, pois ela ainda não tinha a consciência de que havia se tornado o campo de batalha de duas naturezas que não se entendiam. O cérebro arcaico da criatura estava no mundo que lhe era próprio, enquanto o cérebro novo, neocórtex, pertencia a uma inteligência intrusa que sofria naquele ambiente que lhe era hostil. Os homens haviam cometido um atentado contra a Natureza que ficaria conhecido como o “pecado original”, isto é, o pecado que deu origem às novas criaturas com a criação de um ramo artificial na árvore do conhecimento. O pecado era dos criadores e não da criatura, como mais tarde seria ensinado.

A partida dos homens (deuses para eles - deus significa “brilhante” e certamente tal significado não lhes veio pelo sentido figurado, existem muitas possibilidades para isso) deixou um vazio que tentavam preencher com a nostalgia, mantendo o templo sempre limpo e arrumado como se aqueles deuses um dia fossem voltar. Oferendas continuaram sendo postas no altar em meio a lágrimas e adoração. A instrução continuou sendo ministrada no templo que era também a morada da ciência. Toda e qualquer atitude, em todos os setores da vida, era de imitação dos deuses. Naturalmente, os mais preparados indivíduos puseram-se no lugar dos seus criadores assumindo a direção dos vários grupos. Com o tempo divergências foram surgindo e novas lideranças formaram grupos que tomaram rumos diferentes naquele planeta.

Conhecimento significava poder e a capacidade de administrar a dificuldade congênita da nova espécie, favoreceu os mais inteligentes e instruídos. As leis foram concebidas a semelhança da legislação humana. O culto aos homens deuses tornou-se a religião ou o símbolo do desejo de reencontrar seus criadores. A religião traduz-se num meio de tutelar a herança genética e divina (humana) em dificuldades num corpo e numa mente igualmente habitados pela natureza local. Creditando a si mesma os bons resultados das experiências intimas de cada uma das descendentes das novas criaturas, não foi difícil conquistar a dominação sobre elas. Eis o cerne da religião naquele mundo. Adorar e obedecer aos deuses se revertia numa recompensa intima e intransferível. Diante disso, a exploração das gerações subseqüentes que desconheciam a história tornou-se mais fácil e mais útil ao poder e a exploração desavergonhada, inclusive.

Milênios se passaram sem que a dificuldade congênita pudesse contar com outro tipo de amparo, senão os interesseiros cuidados da religião, que não se cansava de afirmar que aqueles sob a sua dominação não estavam preparados para verdade. Pelo gosto dela jamais estariam. A monitoração da fantasia, cada vez avolumada como um falso sedativo, criava deuses imaginários que misturados a própria carência interior pareciam reais em meio a muitas superstições. Um sentimento tão forte que os descendentes dos grupos que se dispersaram não se importavam em matar ou morrer na defesa do próprio deus. Aí resolveram instituir um único deus simbolizando a concepção religiosa que para eles melhor representava aquela ausência sentida. Foi assim que deuses e religião passaram a fazer parte da destruição daquele planeta e das culturas de todos os povos que antes lá não existiam. Atualmente, seguindo os passos dos seus criadores, estas criaturas já estão navegando pelo espaço sideral trazendo muita preocupação à humanidade.

O judaísmo não é uma fé. O Deus judeu significa a recusa da superstição e a substituição imaginária para este desaparecimento. Mas é igualmente a tentação de fundar a lei moral sobre o temor, atitude deplorável e ilusória. Creio, no entanto, que a possante tradição moral do povo judeu já se libertou deste temor. Compreende-se claramente que “servir a Deus” equivale a servir à vida. (EINSTEIN, 1981, p. 114)

Deus desaparece na Bíblia. Leitores religiosos e não-religiosos por certo irão achar tal afirmação surpreendente e intrigante, cada qual por suas próprias razões. Confesso, de minha parte, que a acho estarrecedora. A Bíblia se inicia, como todo mundo sabe, num mundo em que Deus está ativamente e visivelmente envolvido, mas não é assim que termina. (FRIEDMAN, 1997, p. 19)

Referência

EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. 10 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

FRIEDMAN, Richard Elliot. O desaparecimento de Deus: um mistério divino. Rio de Janeiro: Imago , 1997.

Nicomedina
Enviado por Nicomedina em 18/08/2011
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