O deus roubado

O deus roubado

"Somente o colégio dos pastores tem o direito de dirigir e governar. A massa não tem direitos, a não ser o de deixar-se governar qual um rebanho obediente que segue o seu pastor". Papa Pio X (1835-1914).

Muita gente entende isso como uma visão simplesmente reacionária de um determinado papa e não como a continuação de uma meta de implantação cultural. A função dos dirigentes religiosos é preservar esta meta dos assédios da razão. Em sua origem e propagação, o cristianismo nunca foi democrático porque a idéia não era essa. No entanto, a crença em “Deus” seria inevitavelmente questionada um dia, inclusive por causa do seu componente grego tradicionalmente questionador, tendo em vistas às transformações pelas quais passaria o mundo em resposta às próprias transformações humanas. Houve um “Deus” para aquela época e que hoje já não atende mais. A ignorância humana não precisa necessariamente de um nome (“Deus”) para lhe dar uma falsa sensação de conhecimento.

O mais curioso componente do entendimento de “Deus” é o judaico, porque ninguém sabe o que o judaísmo é. Daí tantas contradições percebidas num contexto cultural no qual o judaísmo continua a ser um corpo estranho. Os judeus não utilizam a versão grega dos seus livros sagrados - a Septuaginta - que conhecemos como o Velho Testamento. Na interpretação da bíblia hebraica, segundo o esoterismo judeu, existem quatro níveis a se percorrer. São os chamados conceitos PARDES. Trata-se da abreviação dos nomes de cada um deles: Pshat, Remez, Drash e Sod. O primeiro se refere à simples leitura do texto como ele se apresenta. É neste nível primário que os não-judeus se imaginam doutores no assunto. O segundo se refere à mensagem contida nas entrelinhas do texto bíblico. O terceiro se refere a sua forma alegórica e o quarto nível ao segredo que se encerra na Torah.

Existe uma historinha que, se não me engano, é mais ou menos assim: três rabinos resolveram estudar a fundo a Torah, percorrendo nível a nível. O primeiro perdeu o juízo; o segundo tornou-se ateu; o terceiro permaneceu o mesmo. Desviando do óbvio da mensagem, o aspecto mais interessante fica para aquele que se tornou ateu. Claro, para que uma religião precisa de segredo, senão para preservar a si mesma? Preservar a si mesma, no caso, significa a preservação do povo judeu. Foi exatamente com esta finalidade que o judaísmo foi instituído e não para salvar a alma de ninguém ou trazer um salvador miraculoso ao mundo. Einstein disse que o judaísmo não era uma fé e ainda distinguia o deus cultural de Israel da inteligência cósmica, que não estabeleceu aliança com povo algum. Tinha que ser uma mente brilhante com a de Einstein para fazer tão clara distinção.

Séculos seguidos de lavagem cerebral só podiam dar nessa confusão cultural e de sentimentos profundos que vivemos hoje. A percepção evidente de uma inteligência cósmica continua sendo vergonhosamente explorada e justificada por intermédio da crença no deus cultural. O indivíduo comum ainda não consegue entender que não existe um deus verdadeiro, como aquele que o sentimento por séculos inculcado insiste interpretar. Ele desconhece que essa idéia de “Deus” não é tão antiga quanto imagina. Nos primeiros séculos da era comum o mesmo deus cultural de Israel era execrado e comparado ao diabo, por ter trazido almas ao desditoso mundo da matéria. Um argumento decorrente do ambiente religioso no qual fervilhava o antijudaísmo na época. O cristianismo não surgiu de uma seita judaica como os gregos contaram, sua origem é antijudaica e obra deles.

A legislação romana considerava e protegia o judaísmo como a religião lícita. O fato pouco conhecido é que os gregos enciumados não tinham como conter o progresso do judaísmo com a sua proliferação crescente e as conversões que se davam nas classes baixas do mundo grego. Daí o interesse cristão pelo Velho Testamento. Os cristãos acharam por bem reabilitar o execrado deus de Israel para os seus propósitos, ou seja, combater o judaísmo com ele mesmo porque de nada dispunham para enfrentá-lo. Para tanto a Igreja nascente se declarou como a continuação do Velho Testamento e desta forma substituía o judaísmo. É a chamada teologia da substituição. Justino disse aos judeus: “As escrituras não pertencem a vocês [judeus], mas a nós [cristãos]”; Irineu declarou: “Os judeus foram deserdados da graça de Deus”; Eusébio afirmou que as promessas das escrituras hebraicas eram para os cristãos e não para os judeus. Assim o deus cultural de Israel foi roubado dos judeus, ganhou um filho e uma filosófica roupagem grega. Hoje prevalece a interpretação cristã e, por inteligência, a interpretação judaica não a contraria. O povo judeu está muito mais ocidentalizado do que antes e seus interesses ainda mais entrelaçados aos interesses ocidentais.

A distinção da idéia de uma inteligência cósmica, da idéia historicamente recente, que hoje se faz de “Deus”, esvazia a argumentação usual com a qual se tenta dar sobrevida a esse estado de coisas. Procura-se compensar a ignorância sobre o judaísmo com subsídios herdados da cultura grega. Os gregos antigos tinham conhecimento das epopéias mesopotâmicas, que só viemos conhecer no século dezenove, e sabiam que a criação da humanidade, revelada nelas, não correspondia à versão apresentada pelo Velho Testamento. A religião judaica é de origem mesopotâmica e os gregos asiáticos há muito sabiam disso. O judaísmo não era monoteísta no sentido que hoje se imagina. Os deuses mesopotâmicos criaram a humanidade para servi-los de escrava. Os gregos aceitaram a idéia de que esses deuses poderiam ter sido os criadores do Homem, mas não os criadores da vida e do universo. Confundindo ambos os conceitos, outrora rejeitados e depois misturados por conveniência político-cultural, se diz atualmente: “se existe uma cadeira é porque alguém a fez”. No entanto, as árvores que fornecem a madeira para sua construção nasceram nas florestas sem que ninguém as tenha plantado. Quem sabe o judaísmo não nos queira dizer que nesse mundo a cadeira somos nós?

Esperemos sentados por maiores esclarecimentos, porque senão pela nossa própria iniciativa e esforço tais esclarecimentos jamais nos chegarão. Confunde-se o surgimento do Homem com o surgimento da vida, propositalmente. O Homem é um tipo de vivente estranho ao ambiente no qual ele surgiu. A dor do parto existe somente na espécie humana porque houve um crescimento explosivo do volume do cérebro e, conseqüentemente do crânio, em fase tardia da filogenia. Ninguém viu uma cadela a ganir ao parir seus múltiplos filhotes ou outro mamífero qualquer a sofrer por este mesmo motivo. O crescimento cerebral transformou a espécie antiga do gênero Homo, perfeitamente adaptada sem dor no parto e tudo mais, numa outra espécie que já não se adaptava ao mundo, mas procurava adaptar o mundo a ela. Portanto, o processo do surgimento da vida não incluiu o Homem. Houve uma clara interferência na natureza terrena, mas não se pode falar disso; mesmo sabendo que florestas não produzem cadeiras nem roubam o deus de ninguém.

Nicomedina
Enviado por Nicomedina em 03/09/2011
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