A questão Deus

Depois de quase dois milênios de imposição religiosa o ateísmo encontra-se em ebulição no Ocidente. As transformações inevitáveis, em especial nos meios de comunicação, respondem por esta ebulição. Há quem defenda que a “questão Deus” não é um problema científico, mas sim um problema teológico e filosófico, porque Deus não pode ser explicado cientificamente. No entanto, esta questão vai além do que as definições reativas se dispõem alcançar. A cultura heleno-judaica prevalecente no Ocidente nunca foi democrática, e, por isso, jamais tolerou questionamentos diretos. Duvidar da existência de Deus era algo censurável, mas manifestar publicamente a negação de tal existência continuou a ser, praticamente, um crime. A idéia de Deus que permeia o Ocidente é a idéia cristã, e não outra; na sua pretensão universalista o cristianismo se imaginou o curador do acervo moral da humanidade. Impôs-se como verdade absoluta às demais concepções do divino no seu projeto de dominação, e as gerações sucessivas acabaram por se acomodar debaixo da sua tutela. Um sentimento de correção e legalismo passou a contemplar as tradições cristãs como a legítima manifestação do senso comum.

Pelo menos, a formação da concepção cultural de Deus a ciência histórica explica sem dificuldades, dispensando a teologia e a filosofia para isso. Diante de tais esclarecimentos fica fácil compreender o ateu e o motivo da propaganda negativa contra ele. Do mesmo modo que essa nossa realidade cultural foi instituída, ela caminha para uma transformação profunda obedecendo a uma regra básica neste mundo: nascimento, vida e morte. Isto faz parte do processo de aprendizado humano. A história é cíclica, e sem o receio das fogueiras do Santo Ofício mais um confronto entre as elites pensantes se estabelece a semelhança do papel desempenhado pelos nossos dois hemisférios cerebrais. Um sempre precisa do outro. A transformação cultural relacionada a “questão Deus” já se faz sentir, não só nas mágoas dos conservadores, mas em decidadas e consequentes ações seculares. Nas homenagens oficiais pelo décimo aniversário das tragédias de 11 de setembro, o prefeito de Nova Yorque, Michael Bloomberg, optou pela secularização da cerimônia. Não permitiu que o evento fosse usado como uma forma de proselitismo por religião alguma. Por conta da afirmação de laicidade da prefitura novaiorquina um evento paralelo foi organizado pelas religiões na margem do rio Hudson. Isso aconteceu em um país no qual o preconceito religioso é mais acentuado do que no Brasil. Porém devemos admitir que Nova Yorque é um caso a parte no mainsteram da cultura urbana norte-americana.

A semelhança do que acontece com as pessoas, com a religião acontece o mesmo. Todos têm suas vidas sociais, suas vidas privadas e suas vidas íntimas. Para o bem viver é importante que os limites dessas vidas sejam respeitados, principalmente, pelo (s) próprio (s). Eis uma regra que pouco se cumpre mesmo diante das conseqüências óbvias. Quem vive a comentar a sua vida privada no local de trabalho não pode reclamar de fofocas. Sobre a vida íntima, nem se fala. É o prato predileto da curiosidade pública. A não-observância destes limites é comum em muitas sociedades ocidentais, nas quais questões familiares transpiraram quase que por tradição. A convivência tem tantas peculiaridades que acabou virando motivo de estudo pela história da vida privada.

Não fosse o desrespeito aos limites a história não teria o que contar, nem a humanidade o que aprender. Atualmente o ateísmo é tratado como uma pedrinha no sapato, como algo que não existia “antes” ou, pelo menos, não estava lá a incomodar. Esse “antes” se refere a um tempo mais recente e curto quando situado na escala do tempo histórico. A antiga rejeição da parte de alguns a vigente concepção cristã de Deus, e o alarmismo de um mundo absolutamente corrompido por uma juventude sem Deus, não é novidade alguma. Sócrates teve que se matar porque foi acusado e condenado por ateísmo, por não acreditar nos deuses do Estado, e corromper a juventude ateniense. Parece que está a se desprender mais uma casca da mesma cebola.

A inconfidência sempre prestou grandes serviços ao conhecimento. Como nas famílias, nas culturas religiosas podemos encontrar exemplos queixosos que servem para clarear pontos obscuros ou pouco comentados na sua formação. A magnitude nefasta das disputas teológicas, potencializada pelo recorrente hábito cultural grego - as contendas para ver quem era o melhor - se expressa com tristeza pelas palavras de Hilário (316-367), bispo de Poitiers, na Gália (atual França), condenado ao exílio no Oriente:

[...] que existiam tantos credos quanto opiniões entre os homens, tantas doutrinas quanto inclinações, e tantas fontes de blasfêmias quanto faltas entre nós; pois elaboramos credos arbitrariamente e arbitrariamente os explicamos. O Homoousiano é rejeitado e aceito e explicado por sucessivos sínodos. A semelhança parcial ou total entre o Padre e o Filho são objeto de disputa nestes tempos desditosos. A cada ano, ou melhor, a cada lua, elaboramos novos credos para descrever mistérios invisíveis. Arrependemo-nos do que fizemos, defendemos os que se arrependerem; anatemizamos aqueles a quem defendemos. Condenamos ou a doutrina de outrem em nós mesmos ou a nossa própria em outrem; e, espedaçando-nos uns aos outros, temos sido a causa da ruína uns dos outros. (HILÁRIO cit. por GIBBON, 2005, p. 351)

A elaboração daquilo que o povo iria acreditar passou por muitos momentos dramáticos, a semelhança do que ocorre nas disputas do ambiente familiar. Os diversos aspectos da vida privada da cultura religiosa cristã são do conhecimento geral. As histórias dos papas; as perseguições internas, em diversas épocas; escândalos públicos, como a Santa Inquisição, os conflitos entre católicos e protestantes etc. revelam dificuldades comuns na convivência humana, mesmo no meio daqueles que pretendiam oferecer exemplos de boa conduta a toda humanidade. Entretanto, fatos da vida íntima que transpiraram do ambiente religioso não repercutiram tanto quanto seria comum no ambiente profano. Com base no exemplo de Hilário de Poitiers, por que será que nos primeiros séculos homens cultos se reuniram para estabelecer novas normas de conduta para a humanidade? E por que fatos da vida íntima deste ambiente submergiram mesmo depois de terem vindo a público? Já respondi a estas perguntas em artigos anteriores. Só para lembrar, a primeira: decorrência de um confronto cultural entre gregos e judeus do qual não se deu notícia para que a versão oficial sobre o surgimento do cristianismo fosse preservada. A segunda: para que as gerações seguintes ignorassem que o deus da bíblia já foi desprezado e considerado um lixo pelos não-judeus. São as voltas que o mundo dá e não é o povo que responde por elas; é levado por elas.

O poder de domínio da informação e do marketing cultural é tamanho que alicerçou a atual idéia de Deus. A utilização aprimorada de antigas técnicas de comunicação deu a um deus absolutamente rejeitado fora do judaísmo uma vida nova no coração de novos crentes. Este aspecto da vida íntima da religião cristã era fato notório nos primeiros séculos. Aspecto que submergiu por causa do interesse pela utilização do Velho Testamento como um antídoto pelos adversários do judaísmo. Por mais abstrato que seja, deus algum se sustenta no vento. A “questão Deus” encontra na história uma integração que não pode ser encontrada em outra ciência. Quando esta questão é conduzida ao campo da teologia ou ao campo filosofia, é para que dela não se trate. Passa-se então a tratar de outro assunto que com a “questão Deus” é propositalmente confundido. O objetivo desta confusão é dar sobrevida ao produto criado pelo poder de domínio da informação, do marketing cultural e também pela dedicação de homens como Hilário de Poitiers, que se espedaçavam e se arruinavam em nome de um ideal. Não é preciso concordar com eles para percebê-los assim.

Ignorar este passado em nome da fé é continuar a alimentar os vícios gerados pela imposição de um deus cultural resgatado do entulho. As contingências que originaram essa história não existem mais, a fila anda. A conclusão é que a inteligência ou a emanação universal que permeia tudo e está na origem de todas as coisas, se está presente também neste engano – idéias e soluções têm prazo de validade - é porque nada existe fora dela.

Referência

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.