As rosas nos falam  
                                                 Sérgio Martins Pandolfo*
 
     Num sarau com fraternos amigos de que participamos na casa de um deles, com generosa cortesia de vinhos, cervejas, uísque e os indispensáveis tira-gostos a música popular brasileira, em seus vários gêneros, correu solta; velhas e novas canções, sucessos do “vozeirão” Nelson Gonçalves, de Noel Rosa, o “poeta da Vila”, do mago do breque João Nogueira, de Chico Buarque – podia faltar? –, do senhor do ritmo, o já provecto, mas ainda trinador Miltinho, de Roberto, Caetano, Gil e outros foram evocados e interpretados por vários de nós.
      Fez-se uma pausa e retomamos com o para nós mestre dos mestres, Cartola, do qual foram interpretados vários de seus hits, tais: Cordas de aço, O mundo é um moinho, Divina dama, Peito vazio, Ensaboa, Tive sim, Acontece, Autonomia, que julgamos
talvez sua música mais sentida e expressiva, como sempre a cantar o amor... amor impossível e, como não poderia deixar de ser, seu abre-alas musical, As rosas não falam. O cantador do samba e do amor, cremos, segue sendo um injustiçado, eis que tendo deixado uma riquíssima musicografia apenas poucas de suas canções são conhecidas e executadas, seja na mídia musical ou nos bares que exibem música ao vivo. Era quase infinda a capacidade desse humilde homem de cor para fazer versos de amor, que ele cantava melhor do que ninguém. E versos, diga-se, do mais alto quilate, em sentimento e qualidade.
      Certa feita, tencionando checar em sua inteireza a letra de “Fiz por você o que pude”, uma das mais inspiradas composições de Mestre Cartola em louvação à Mangueira que, num dos apoteóticos versos finais, assinala: ”Perdoe-me a comparação/ Mas fiz uma transfusão/ Eis que Jesus me premeia”, fomos ao Google conferir (na Idade Mídia que vivemos é ele o verdadeiro “pai dos burros”) e ficamos pasmado com a quantidade de artigos e/ou comentários desancando o pau naquele que foi, sem ponta de dúvida, um dos maiores – se não o maior! – compositores do cancioneiro popular nacional, com mais de 500 composições a ele atribuídas, fora as que, por premência econômica e/ou algia famélica teve que vender para comprar uma “média” saciante e reconfortante, tudo por causa do “grosseiro erro de português” cometido: premeia, em vez de premia. Com o que poderiam, mas não lograram, torná-lo “um pote até aqui de mágoas”. E tome de eruditismos, regramentos, brasileirices vernaculares e engrimanços gramatiqueiros a fim de descortejar – ou descoroar – o menestrel do samba e do amor!  
      Impossível ficar impassível! O verbo premiar, assim como negociar, ambos abundantes, admite duas possibilidades de conjugação, tais: premio/ias/ia, predominante no Brasil e premeio/eias/eia, corrente e preferente em Portugal que, diga-se de passagem, é o berço da língua e conspícuo zelador do idioma pátrio. O mesmo vale para o verbo negociar: negocio/ias/ia (forma dominante no Brasil) e negoceio/eias/eia que prepondera na lusa pátria.   
     Acostumamo-nos a ouvir desde menino, no domicílio de nossos genitores, “uma casa portuguesa com certeza”, as formas premeio e negoceio, de modo que nem um pouco nos soou estranha a rima do Mestre em sua genial – genial mesmo! – composição/exaltação, afinal, Mestre é Mestre. Em nossas fortuitas revisitas à terra de nossos avoengos, soam-nos familiares e até mais eufônicas as pronúncias premeia e negoceia. E rematamos: gramáticas e dicionários de português de lá, “onde a terra se acaba e o mar começa” consignam e, assim, consagram as duas formas.
      Para finalizar, as regras e disposições contidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, válidas para o mundo lusófono, veio pôr uma pá de cal na questão, sancionando-as, robustecendo a herança deixada por aquele hoje pequeno, mas valoroso país europeu que nos colonizou: esta maravilha que, infelizmente, nem todos aquilatam o valor, a lusa língua, que Camões, o Príncipe Perpétuo dos Poetas da Língua Portuguesa, sublimou.

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*Médico e escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 09/11/2012
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