MITO E CULTURA RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA: DA FOLCLORIZAÇÃO A SISTEMATIZAÇÃO DA FÉ

RESUMO:

O presente estudo aborda a importância dos mitos para a religião e cultura afro-brasileira, determina as características atribuídas aos adeptos do candomblé, fazendo um breve apanhado na formação litúrgica do culto e sua singularidade, em detrimento a sua formação no continente africano. Conclui-se que os mitos regem todas as relações e ações presente no cotidiano, litúrgico ou profano, dos adeptos das religiões de matriz africanas e que instaura um modo de viver único às pessoas destas comunidades.

Palavras-chave: Candomblé; Mitos; Cultura. Contextos. Intertextos.

INTRODUÇÃO

Entender a pluralidade cultural do Brasil nos leva a uma reflexão histórica sobre formação étnica do povo brasileiro, analisando o modo de viver e ver o mundo, que foi construído a partir do contato de diferentes etnias influenciado pelas culturas indígenas, europeias e africanas de países de varias regiões do continente.

Os africanos que chegaram no Brasil durante quase quatro séculos de escravidão, ao qual foram submetidos, em condições desumana, não traziam consigo bens matérias, mas em compensação, trouxeram uma bagagem cultural religiosa, artística e cultural que estava impregnada no modo de ser africano e conseguiram reproduzir na nova terra um culto semelhante ao feito na terra de origem.

O presente trabalho focalizará apenas nos mitos e ritos dos negros yorubás, não pela falta de reconhecimento das contribuições bantos, jejês e haussas, mas pelo fato desse grupo social ter chegado próximo ao processo abolicionista da escravatura, favorecendo mais liberdade para a construção do culto no Brasil.

Salienta-se ainda, que a religião africana, de culto a ancestralidade que aqui foi denominada de Candomblé, nessa sistematização que conhecemos só existe no Brasil pois em terras africanas o culto é familiar, por exemplo, em Oyó, cidade de culto a Xangô, apenas divindades ligadas ao culto deste orixá acontece naquela cidade, como as suas esposas Oba, Oxum e Oya e seus familiares Yamasse e Oranyã, sendo que orixás como Obalwayê ou Oxossi na região são totalmente desconhecidos o mesmo acontece na região da cidade de Ejibô cidade de culto a Oxalá aonde se desconhece o culto a Xangô e assim sucessivamente.

Sabe-se que a seleção de escravos se dava de modo a aprisionar escravos de diferentes regiões e etnias, para evitar laços fraternos que incitariam revoltas e rebeliões. Contudo, o que os colonizadores não previam era que a irmandade mítica seria mais forte e criaria vínculos entre esses escravos criando espaços ritualísticos aonde seriam cultuados orixás das diversas regiões da África, tendo este culto sido denominado de Candomblé.

Pode-se observar que na nova terra os orixás aqui cultuados eram os ligados a guerra, como Ogum, Xangô, Omulu, Iansã entre outros, orixás que incentivavam a luta pela liberdade, perdendo-se o culto as divindades como orixá Oko que rege a agricultura e orixá Ajê que traz riqueza a terra,que, por motivos óbvios de não quererem tais atributos para a terra de seus senhores.

1. ORIGENS DAS CASAS DE CULTO YORUBÁ NO BRASIL

No período escravocrata, os negros formavam sociedades nos engenhos de cana de açúcar. Na Bahia três princesas trazidas como escravas das cidades de Oyó e Kêto mobilizaram a comunidade negra que se organizou e conseguiu meios de comprar a alforria das princesas essas por sua vez organizam um culto, que deu origem a primeira casa de candomblé do Brasil ,o ILE ASE YA NASSO OKA no bairro da Barroquinha ao lado do centro histórico do Pelourinho.

As princesas fundadoras chamavam-se: YA KALÁ, YA DETA e YA NASSÔ, não se sabe ao certo a data de fundação do templo mais segundo historiadores, remonta cerca de 300 anos de existência. A aproximação da casa de culto do centro urbano e dos aposentos da realeza portuguesa gerou um clima de apreensão nos adeptos fazendo com que a comunidade arrendasse terra num local mais distante, no bairro do Engenho Velho do Rio Vermelho onde se mantém até os dias de hoje, devido a varias discordâncias de sucessão após as mortes de yalorixas, nascem dissidências de casas de culto entre as mais famosas, o ILE AXÉ OPÓ AFONJA e o TERREIRO DO GANTOIS.

Em Pernambuco na cidade de Recife por volta do ano de 1875 se organiza outra casa de culto Yorubá, o TERREIRO OBÁ OGUNTÉ com achegada no Brasil da africana IFÁ TINUKÉ que aqui recebe o nome de Inês Joaquina da Costa, conhecida carinhosamente como tia Inês, o templo ficou conhecido por sítio de Pai Adão, mais celebre sacerdote do culto do Xangô do Recife, foi sucessor de tia Inês.

Estas foram às casas matrizes do culto aos orixás do Brasil e delas se originaram quase todas as casas de cultos dessa linhagem existentes, segundo nos relata o professor Beniste Orun Aiye na sua obra Orun Aiyê (1997, p. 56).

2. MITOS E SUA IMPORTANCIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FRO DESCENDENTE

Podemos afirmar que o Candomblé sido uma das mais marcantes formas de resistência cultural e religiosa no Brasil nos legados pelos africanos, esta pratica religiosa influenciando e favorecendo um modo africano de viver como nos mostra Braga:

O sistema religioso está profundamente impregnado de forças civilizatória negro-africanas, que realizam no consciente coletivo da população negro-brasileira, um sentimento profundo de identidade cultural que engendra, por sua vez, e de maneira pouco perceptível, os alicerces primeiros de noção de etnicidade que serviu de base para que a religião mantivesse tão viva e enraizada a África, sendo prova maior desta preservação a resistência dos dialetos africanos na liturgia, seja nas cantigas, nos substantivos próprios e comuns ou no comunicar cotidiano dos templos. (BRAGA, 1988 p.36 -37):

Os mitos para as comunidades de cultos afro-brasileiros tem fundamental importância. Ela acontece de forma oral, no cantar, no entoar das rezas e principalmente do narrar dos mitos que passam de geração a geração e, que são, o alicerce para a construção existencial dos adeptos, tanto no âmbito do culto como no meio social profano e vão explicar o jeito de ser e certas situações as quais este é submetido em sua vida cotidiana, sobre os mitos são reconstruídas identidades, o ser humano e o sentido do mundo.

Diferentemente das religiões salvacionistas onde o adepto busca uma renegação de si mesmo, no Candomblé os mitos funcionam de forma a fortalecer a personalidade individual e as características próprias de cada indivíduo, cada pessoa descende de uma matéria mítica primordial que, segundo o culto, nos lega certos aspectos de personalidade, sendo a agressividade, o afeto, ou a soberba - ações da pessoa que são explicados e atribuídos a mesma por essa herança que herdou de um determinado orixá, e este deve conhecer e se enquadrar num determinado perfil como podemos perceber:

No plano religioso a introjeção de uma identidade profunda que associa definitivamente o iniciado á maneira de agir e sentir segundo os padrões da religião afro-brasileira é realizado durante o período de reclusão conventual, onde o sacerdote através da consulta ao odu, que é o caminho, o destino, dita as normas que vão de certa maneira reestruturar, através dos mitos seu caráter e as normas de comportamento que devem orientar sua existência a partir desse dia. (BRAGA, 1980. P. 113)

É na iniciação que o indivíduo ao se desligar do mundo que vive adentra na sua alto reconstrução, que parte do aprendizado de noções básicas de como o culto interpreta o mundo e as relações sociais, aprendem mitos como o de Ajalá, que nos primórdios foi incumbido da criação das cabeças dos homens que habitariam a terra, como ele tinha o habito de se embebedar constantemente, nunca produzia as cabeças iguais, alguma eram boas, possuíam aptidão e conhecimento, enquanto outros tinham a cabeça rude, com dificuldade de aprendizagem.

Toda ritualística executada dentro do espaço sagrado esta fundamentados em mitos. Essa individualidade das cabeças que foi vista no mito de Ajalá é que vem a explicar a necessidade do ritual de bori, que literalmente significa dar de comer a cabeça. O bori é a cerimônia feita para buscar o equilíbrio e sabedoria para o dia a dia, o mesmo mito explica o porquê de pessoas do mesmo orixá ser muitas vezes diferentes, afinal, todos temos uma cabeça individual com características próprias.

Os mitos determinam o contexto publico das cerimônias, ele esta presente na dança, instrumento que proporciona aos adeptos o reviver, a reconstrução mitológica. Na arte, ele está presente na confecção dos parâmentos, a indumentária que deve ser característica para cada orixá, bem como nos desdobramentos de um mesmo orixá se necessário.

No contexto aos quais os mitos do candomblé se inserem compreendem um mundo muito mais amplo do que apenas o âmbito religioso. Ele constrói uma filosofia de vida, onde o homem busca uma interação consigo mesmo, com o meio, com a natureza, sua origem e identidade étnica, sem, no entanto comprometer sua integração com os diferentes segmentos sociais que o rodeiam. Embora essa mudança na concepção religiosa de novos adeptos sempre acontecerem de forma sistemática, nessa comunidade com forma de viver peculiar, a religião afro-brasileira não provoca alienação ou fanatismo, pois os valores que são construídos são valores de relações interpessoais que acontecem de forma involuntária no meio social, as coisas se explicam e acontecem por repetição do mito, para o Candomblé tudo o que acontece já aconteceu em algum momento e se explica em um determinado mito, independente do contexto que ele aconteça ou da religião dos envolvidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mitologia serve como alicerce para a formação da identidade étnica dos afro-brasileiros. Os mitos, a partir do momento que englobam situações cotidianas de relação interpessoais, servem como meio de inclusão social, pois, o individuo vê o outro como parte natural nas diversas situações do dia a dia.

O candomblé leva o individuo a incorporar valores africanos e procurar o resgate de suas raízes, favorecendo um modo próprio de se relacionar com o meio social, com o ambiente e com as diversas práticas artísticas que fazem parte da ritualística.

Cada mito é um elo, que responde diversas perguntas existenciais e explica a evolução das cerimônias, está entrelaçado com os demais mitos e formam um padrão complexo, onde o indivíduo encontra um ponto de identificação e conhecimento de si mesmo e do outro.

A arte das casas dos cultos africanos, quando conhecemos o mito, torna-se muito mais rica e complexa seja na dança, na indumentária, na culinária ou na música, cada situação e detalhe tem fundamentação no ritual. O que aos olhos leigos pode parecer uma atitude ou um objeto sem sentido ganha amplitude e simbologia quando explicado por essa teologia ímpar e articulada com a tradição afro-brasileira.

REFERÊNCIAS

BARROS, José Flavio de. O Banquete do Rei... Olubajé. Rio de Janeiro: Novo Milênio, 2002.

BENISTE, José. Orun aiye O Encontro dos Dois Mundos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.

_____________. As Águas de Oxalá. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

BRAGA, Júlio. Fuxico de Candomblé. Feira da Santana: UEFS 1988

OLIVEIRA, Altair B. Elegun Iniciação no Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 1995.

SANTOS, Juana Elbein dos Santos. Os Nagô e a Morte. Petrópoles-RJ, 1975

VERGER, Pierre Fatumbi, CARYBÉ. Lendas Africanas dos Orixás. São Paulo: Currupio, 1987.

VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flavio Pessoa de. A Galinha D’angola- Iniciação e Identidade na Cultura Afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 1993.