O céu em uma flor selvagem

Por alguns momentos, manter o olhar sobre as águas crispadas de um lago qualquer, com, talvez, alguma vegetação às margens. Um pássaro sobrevoa a superfície e uma árvore jaz tombada em suas profundezas; seus galhos, no entanto, persistem em despontar água afora, servindo de apoio para estranhas e quase estáticas outras aves.

A observação do mundo, silenciosa e monótona, provoca àqueles que se dão o direito ao ato reações totalmente opostas: a efervescência de um "mundo em um grão de areia e o céu em uma flor selvagem".*

A imagem descrita, por si, pode ser fria, para senti-la é necessário acionar registros mentais, lembranças pessoais e, para o interlocutor, esta pode ser uma tarefa cansativa, além do que o tempo e o espaço em sua totalidade, o agora em sua grande riqueza de micro eventos concretos ou mentais, talvez sejam, de fato, impossíveis de serem emoldurados completamente por artistas (embora seja a ambição de alguns), mas são, sim, possíveis de serem relatados de forma parcial, mediante a flexibilidade de sua linguagem artística. O desafio do artista é justamente narrar esta cena sem causar tédio, mas também não cometer exageros.

No caso do artista plástico, com sua técnica, material e talento, acredito que este panorama pode vir mais explícito, quase completamente estancado, possibilidade que escritores ou músicos, mesmo que muito talentosos, jamais terão.

É bem verdade que Virginia Woolf e Margaret Atwood, entre tantos outros escritores, pintam verdadeiros afrescos em nossas mentes, e elas só conseguem isso empregando um ritmo inquebrável, peculiar e um vocabulário melodioso que, inevitavelmente, culminam em nos deixar num estado de espírito diferente daquele com o qual começamos a leitura. Se não há poesia e ritmo e, por fim, uma epifania, jogamos o livro de canto.

Aliás, vale aqui um breve comentário, Virginia Woolf recomendava que seus sobrinhos escrevessem diários e que, de preferência, descrevessem as imagens dos seus dias: "como brilhou o sol esta manhã?", eles deveriam se perguntar. A vida parecia estar mais nos atos e momentos cotidianos (jamais pequenos) que nos chamados grandes feitos. A beleza poderia estar em qualquer lugar.

Por fim, descobrimos que em contos como Kew Gardens é perfeitamente possível escrever um texto apenas narrando uma paisagem microscópica que quase não se conecta à realidade e fugacidade dos que estão acima dos jardins, mas ainda abaixo dos céus.

Virginia Woolf, de fato, ao que nos parece, tinha que se transferir a um outro universo para escrever e isso me leva a pensar em outro ermitão que tem por costume pintar não com palavras, nem com tinta, mas com ondas sonoras: Ludovico Einaudi, compositor italiano, pupilo de Luciano Berio que, em seu mais recente álbum, In a Time Lapse, fez isso com música, linguagem que, em minha opinião, mais impossibilita a narrativa pictórica / temporal objetiva, mas que, paradoxalmente, pode levar o interlocutor para dentro do cenário por vias outras, onde este utiliza-se de suas memórias e sinapses próprias para tanto. Entretanto, o italiano ousou em não só narrar uma paisagem, mas quase tudo que acontece nela, num lapso de tempo que começa e termina como continuidade de um todo. Moto continuo.

Não há fronteiras para a gama de imagens e sensações que o compositor nos propicia com as tão poucas notas de sua música taxada de minimalista, mas de alma atmosférica, que ganhou tons acobreados graças ao Guarnieri, de Daniel Hope presente no disco e à acústica do velho monastério próximo a Verona, onde o mesmo foi gravado.

Como nos álbuns anteriores, Einaudi, que não em vão já tem um álbum entitulado Le Onde, inspirado na obra de Virginia, nos deixa entrever cada faixa como um capítulo de uma narrativa, fazendo com que mergulhemos profundamente em seu intento e em seus abismos internos, lugares onde ele mesmo confessa atingir e ficar lá, isolado, por muito tempo durante o processo de composição, chegando ao ponto de afirmar: "eu poderia viver lá para sempre".

Ah, o lago do qual falei no começo. Nem sempre a narrativa faz jus a realidade, o que me faz ter certeza que a arte é mesmo apenas uma cópia mal-feita da vida:

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Otto M
Enviado por Otto M em 04/07/2014
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