"SEXO E AS NEGAS" de Miguel Falabella

Não sou muito de passar tempo frente à TV. Só assisto telejornais ou alguma entrevista cujo tema seja do meu interesse. Prefiro alocar uns filmes e assistí-los, quando tenho tempo livre. Dia desses, deparei-me com um seriado de autoria de Miguel Falabella: Sexo e as Negas. Além de me lembrar imediatamente do seriado norteamericano Sex and the City, constatei que tal seriado é uma afronta a minha cor. Sou negro, e fiquei indignado com aquela bosta de seriado. Ia escrever uma crônica metendo o pau no tal programa de TV. Aí, vi este texto de Charô Nunes, que me dei o direito de reproduzir na íntegra. Ela diz tudo e mais um pouco do que eu pretendia escrever nesta minha escrivaninha:

1. Lugar de fala

Sexo e as nega fere um princípio básico que é o respeito ao lugar de fala. E agora uma triste constatação, pois tudo é MUITO pior do que a gente imaginava. O narrador é o próprio autor. É ele quem olha pelo buraco da fechadura para nos observar e contar a estória. Toda sua fala está contaminada dos interesses e cacuetes da branquitude, por mais que o esmo se pense como Spike Lee aliado na tuta contra o racismo. Aliás, Miguel Falabella deixou sê-lo (se é que já foi um dia, ploft!!!) a partir do momento em que roubou nosso direito a falar de nós mesmas.

Que credibilidade pode ter uma série que pretende criar visibilidade para a população negra mas não permite que nenhum de nós seja a personagem principal? Ou ainda, os autores, as narradoras de nossa própria trama? Porque essa necessidade de calar o que temos a dizer sobre nós mesmas além da necessidade de manutenção de privilégios e a naturalização do racismo? Esse mesmo racismo que ainda tão presente na televisão nos transforma em nada mais que mucamas e globelezas?

2. Protagonismo

Não se fala mais em “protagosnista” mas sim em “protagonistas” de Sexo e a s nega. Tudo conversa pra boi dormir porque na prática o destaque é dado à Claudia Jimenez, uma sofrida mulher branca em busca do amor enquanto as negras estão a levar a vida fodendo. É ela quem é apresentada em primeiro lugar entre as personagens, tanto na estória (a estória da comunidade é contada através de seus pais, que se reproduziram como “pintos”, e olha não estou brincando) quanto na filipeta oficial com os atores.

3. Cisheteronormatividade, Machismo

A série até o momento é baseada completamente na cisheteronormatividade. Não parece haver lugar possível tanto para a mulher negra trans*, muito menos para a mulher negra lésbica ou bissexual. Ou ainda, para uma mulher negra trans* e lésbica ou bissexual. Outro “detalhe”, o flagrante machismo. Big (um homem negro que tem esse apelido por conta de seu pênis!!!) afirmou em uma de suas poucas falas que mulher quer é ser bancada por homem. Desculpem o palavriado, mas o dialeto do autor vai nessa linha mesmo. E todo esse climão de arranjar um homem, meldels.

4. Estereótipo

Todas as personagens ocupam o mesmo lugar em Sexo e as nega. Não há diversidade em suas atuações profissionais (todas estão em posição de servidão em relação às pessoas brancas), muito menos em seus objetivos emocionais. Porque é tão complicado pensar que no Cordovil há médicas, arquitetas, advogadas? Ou mulheres que não tem como objetivo “conseguir” (nesses termos) um parceiro? Por acaso não há mulheres no bairro que simplesmente não estão preocupadas em transar? Pra não ficar muito feio, o segundo capítulo vai mostrar Adriana Lessa fora desse estereótipo, pelo menos profissionalmente.

5. Redução do papel social

Do estereótipo decorre a redução do papel social. Assim como acontece na sociedade brasileira, racista e machista, o único lugar possível para nós mulheres negras é o trabalho ou o sexo. Tanto que o seriado se pretende revolucionário por simplesmente dar espaço para que a “vida” das mulheres negras aconteça. Nesse universo, até mesmo a mobilidade urbana está entrelaçada ao sexo. O transporte urbano é apenas mais um lugar para paquera e comprar um carro significa poder sair do bairro e encontrar novas possibilidades sexuais. Pra que simplesmente ir de um lugar a outro para trabalhar e estudar?

Aliás, como se compra um carro mesmo? Trabalhando? Não em Sexo e as nega amigues! As personagens, apesar de serem todas trabalhadoras, decidem apostar no jogo do bicho para quem sabe ter a sorte de comprar um carro depois. Vão apostar 500 pratas. E quando estão na loja cotando o preço dos automóveis, ainda são humilhadas pelo vendedor, também negro. Imagine, pensar que um homem negro pode ser mais que um malandro ou um vendedor maleducado e machista. Isso já é vandalismo.

6. Fetichização e hipersexualização

Não há qualquer tentativa de humanização, já que as personagens estão numa situação de zoológico em que o narrador branco as observa e traduz a realidade para a plateia branca sedenta de conhecimento e diversão. É como se a branquitude enviasse um espião para satisfazer sua curiosidade doentia que nada tem a ver com visibilidade ou a mudança do modo como somos retratadas nas novelas e seriados. Qualquer semelhança com Saartjie Baartman ou com os espetáculos (sic) de Sargentelli.

Retratada como mucama camareira fiel da patroa em apuros ou mulata globeleza, depedendo da hora do dia, as nega não tem objetivos de vida diversos. A branca não, ela está em busca de amor e eventualmente há de encontrá-lo (e muito mais) na pele (literalmente) de Big, aquele do pau grande. No contexto completamente monogâmico de Sexo e as nega, a mensagem é clara – negras para foder (a qualquer hora, em qualquer lugar, a qualquer momento), brancas pra casar. Nenhuma novidade de front, o produto está pronto para o consumo. Como bem disseram as Meninas Black Power:

O sexo atrelado ao corpo da mulher preta é o fugaz, rápido, pago, superficial e sem ligação amorosa. O sexo com a mulher preta é o que permite a violência, o escárnio, a insensibilidade e a relação mercantil. Mulher preta que reclama atenção emocional geralmente é rechaçada e posta no seu lugar de “mula”. O sexo com a mulher preta quase nunca dialoga com a beleza ancestral desse corpo. Nunca é o sexo simbólico: é sempre aquele no escuro dos becos, ou no silêncio do adultério. A mulher preta é sempre a outra, a coadjuvante – protagonista apenas nas questões fisiológicas, com todo o seu aparato emocional e humano desconsiderado.

7. Violência simbólica

Num seriado, escrito por um homem branco, seguimos estupradas simbolicamente. É ele quem fala por nós, que ata e desata os nós das existência de personagens negras que nada mais são que suas marionetes. Seus corpos são explorados para o usufruto e divertimento da audiência, mais do que nunca convencida de como as mulatas globelezas são maravilhosas, fogosas e gostosas na cama. As cenas de sexo são um aspecto à parte. As luzes de Sexo e as nega dão enfoque às bundas, às curvas para branco surfar. Aliás, falando em corpos, todos são magros.

8. Silenciamento

O silenciamento da mulher negra impregna todo o seriado. Isso se tornou ainda mais evidente quando o autor da série, diante das críticas ao seu trabalho, fez pouco caso chegando ao cúmulo de dizer que aqueles que se opuseram a ele era como capitães do mato. Como alguém se pretende aliado, alguém preocupado com a dor dos seus colegas negros, poderia merecer algum crédito se não consegue lidar com a crítica?

Ficou evidente que ele esperava agradecimentos por escrever Sexo e as nega. Não aconteceu, não vai acontecer. Quando um branco luta contra o racismo, não merece medalhas. Está apenas apenas reparando 500 anos de privilegio. É algo que nos é devido, não merece medalhas, nem prêmio nobel. E se fizer errado estamos em todo nosso direito de reclamar. Nós sempre lutamos e escrevemos nossa própria história. Não precisamos que um branco faça isso por nós, ainda mais com tamanho desmazelo.

9. Racismo

A série tem como premissa a desumanização da pessoa pessoa negra. Não cria visibilidade, muito pelo contrário. Nos reduz, rouba nosso protagonismo, nos silencia, animaliza. É portanto de caráter racista sim. isso fica evidente no modo como as personagens são tratadas por pelas personagens brancas. Numa das cenas uma “patroa” diz que ninguém irá pensar que uma pulseira toda cravejada de diamantes pode ser verdadeira, já que será usada por uma mulher negra. E ainda vão dizer que é assim que se combate o racismo, mostrando na tevê. Sei.

Charô Nunes
Enviado por Ehros Tomasini em 17/09/2014
Reeditado em 29/09/2014
Código do texto: T4965734
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