Por que Corbélia não tem Cultura - Deficiência cultural nos municípios

É claro que Corbélia tem sua cultura, como toda comunidade ou grupo de pessoas que convivam. Mas, ao que me refiro são as manifestações culturais artísticas, que pouco ocorrem e, quando ocorrem, ligam-se a movimentações típicas ou simplórias e midiáticas (não artísticas). Não há novidade ou inventividade. Falo isso como alguém que se empenhou em trabalhar com o teatro por mais de quinze anos e trabalhou com cultura profissionalmente por uns cinco, que ama arte e participa de eventos com uma certa constância, além de pesquisar e gostar de ler sobre o assunto, por isso me sinto à vontade para comentar.

Nunca assumi o Departamento de Cultura (provavelmente, por nunca ter sido nem puxa saco, nem ter investido dinheiro em campanha política, ou não merecê-lo mesmo), mas convivi com a mediocridade, bem como com a grandiosidade do meio; junto à pequenez de pessoas que diziam ser agentes culturais, porém nunca se interessaram por nada que fosse artístico, bem como com pessoas que lutaram e lutam ainda na contramão do conservadorismo e do preconceito em relação à grande Arte e à diversidade cultural.

Nesse sentido, sobre a militância dos conservadores e preconceituosos, lembro-me bem de quando, em nosso “Seminário da Cultura e das Artes Regionais”, evento anual, um alguém aspirante à direção da Cultura ficou chocado por convidarmos o grupo do SESC, que gentilmente trazia uma performance sobre “Beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues. Para quem não conhece o texto, há um romance oculto entre dois homens, que se revela quando o sogro beija na boca o genro, que está ao chão atropelado e moribundo. O propenso diretor cultural ligou ao prefeito, que logo ligou à secretária de Educação e Cultura furioso porque haveria beijo entre homens no Centro Cultural... Queriam que cancelássemos. No entanto, não havia beijo nenhum, era um trabalho artístico belíssimo com recortes de cenas.

Noutra situação, pela primeira vez em Corbélia eu passava à secretária o contato de uma companhia de balé de Curitiba. A secretária topou a ideia (que até se repetiu, foram duas lindas apresentações). O mesmo sujeito novamente interpelou o prefeito dizendo que havíamos transformado o Centro Cultural numa parada gay. Ignorância pouca, depois de cinco anos de extremos esforços, o trabalho que realizamos nesse sentido foi ao ralo pela soberba de dirigentes que, comumente, assumem um Departamento de Cultura e não têm a mínima ideia do que seja isso, pois nunca se sentaram assistir a uma real apresentação artística, nem apreciaram uma exposição, nem ao menos escutam uma música que não se escute nas paradas das rádios, seja moderna ou antiga.

Uma vez, esse mesmo cidadão, quando trazíamos não lembro se a orquestra sinfônica ou se a de sopro de Foz do Iguaçu – num ano recebemos esta, no outro, aquela -, respondeu-me, ao ver um vídeo do que se apresentaria: “Eu não aguento ouvir 5 minutos desse tipo de música, que eu durmo”. Veja se é possível aguentar tal fala de alguém que deveria promover a expansão cultural artística em um município!

Pois então, cito alguns dos mais graves problemas por que não temos Cultura no nosso município, no sentido de movimentação artística real. Problemas que se repetem em outras cidades também, por isso não acho difícil outras pessoas de lugares diferentes verem-se no meu texto refletidas.

1) tudo que vá além da igreja e da televisão é perigoso, é imoral, é profano. Profano vem do latim (pro = ante, frente ao; fano = templo – ante o, ou fora do templo). Assim, o que não está dentro do templo, que não é previsto pela religião, não pode ser praticado. Tenha-se o exemplo do Carnaval, muito pouca gente entende que é um movimento de exaustão e libertação histórica, em que a esfera social se transforma pela possibilidade de inversão de papéis: o prefeito, por exemplo, torna-se gari e o gari, por sua vez, pode ser autoridade (in: “Cultura: um conceito antropológico”, de Roque de Barros Laraia). Quando falamos em Carnaval, contanto, as pessoas se exasperam: é pecado, é coisa de baderneiro e de gente promíscua. Pode ser, depende muito de quem promove a festa, pois o que se faz com ignorância e falta de conhecimento é diferente do que se promove com Arte, com intenção artística e cultural.

2) o ego mesquinho de pessoas envolvidas com a Cultura. Lembro-me quando um certo diretor assumiu a Cultura e, tendo eu como professor amador de teatro, veio me propor que, daquele momento em diante, íamos trabalhar juntos. Propôs-me então que eu começasse a pensar no texto para uma peça em que ele fosse o ator principal e recebesse outras personagens com um violão, contando a sua própria história. Em nenhum momento considerava que eu tivesse uma caminhada teatral e pudesse ter planos de montar alguns textos mais interessantes que sua vida comum. Outra vez, uma moça que trabalhava... com o que mesmo? urbanismo? veio me dizer que eu deveria montar uma peça sobre o soldadinho de chumbo, peça infantil que ela viu por não sei quem não sei onde. Eu lhe disse que já havia montado várias peças infantis e que estava montando uma naquele momento. Mas, ela disse que eu deveria fazer outras coisas, tipo o Dumbo. Não sonhava ela que existem outras coisas além da Disney para se ver, coitada.

3) a falta de conhecimento dos agentes que nada entendem faz com que se percam não só verbas em dinheiro, mas grandes projetos interessantes. Eu nunca tive liberdade de ir a Curitiba buscar recursos ou inserir nosso município em programas do estado, justamente por causa de ciúmes de outros propensos diretores, ou colegas. Uma vez, no entanto, a secretária me levou escondido à Secretaria de Estado de Cultura e lá descobrimos que para possuirmos a Biblioteca Cidadã em nossa cidade só nos faltava um ok do prefeito, de um deputado e de um terreno. E ainda que podíamos estar recebendo sinal de cinema digital gratuito aos sábados e domingos. Coisas que ignorávamos, já que não tínhamos acesso. Tentamos mover esses processos, mas já eram finais de administração e não chegamos a concluí-los. Quando tentei movimentar as pessoas na câmara de vereadores, depois de nossa gestão, para que se pedisse novamente a Biblioteca Cidadã, deparei-me com o mesmo propenso diretor de Cultura, que nunca abriu um livro, em trama com outras pessoas, apresentando a indicação de pedido da tal biblioteca já como vereador, aproveitando que estávamos em muitos lá para ver e ouvir seu nome! Ou seja, a reivindicação estava sendo usada como foco político, pelas costas de todos, deturpando a proposta!

4) não é só culpa do município. A Secretaria de Estado também é medíocre ao extremo, enfatizando ações apenas em grandes centros. Lembro-me de Vera Mussi (depois dela nem consigo lembrar, tão pior ainda se tornou o que já era péssimo). Mas a dona Vera, secretária de estado da Cultura, apoiava museus... museus e mais museus... e nada mais ouvíamos dela. A não ser os projetos que contemplam grandes grupos artísticos, longe de podermos como amadores alcançá-los. A lei Rouanet mesmo não tem aplicabilidade aqui para nós, em Corbélia, já que as empresas de lucro real não se interessam em patrocinar coisas inteligentes. Lembro-me da última vez que pedi patrocínio a uma peça, em que havíamos gastado do próprio bolso (pois fazíamos porque amávamos) um montante mais ou menos de R$ 1500,00 (estávamos, na verdade, endividados). A primeira empresa, uma grande empresa, me ofertou R$ 30,00. Ora, com esse valor desisti no mesmo instante de buscar patrocínio, ridículo.

5) a arrogância de artistas que são ou nem sempre são artistas de verdade. Aqui em Corbélia mesmo, e em todo lugar, há um grupo soberbo de gente que nunca fez nada de relevante, entretanto grita aos sete ventos que são os melhores formadores de atores, atores, músicos, artistas do universo. É incrível como, por isso, tentam denegrir os outros artistas e não prestigiam nunca o talento dos seus colegas. Como alguém pode ser formador de atores sem ter montado senão uma ou duas peças medíocres? Só por ler Stanislavski! Como alguém pode ser um grande músico tocando o mesmo ritmo a vida inteira? E ainda por cima conhecendo apenas o que toca na mídia! Como alguém pode ser um grande ator assistindo apenas à novela e a filmes da Tela Quente e querendo ir para a Globo? Ou pior, professor de teatro prometendo que os alunos vão chegar à Globo e que por isso vão estudar teatro! Essa arrogância faz com que tudo fique mais pesado, mesmo aos agentes culturais interessados. E a falta de coleguismo e prestígio entre artistas, mesmo entre os bons, faz com que cada um se isole em seu campo estrito de atuação, sem contar que em constantes críticas desvalorativas, que em nada ajudam ao progresso cultural de um município.

Esses são alguns problemas e, se não se ultrapassarmos eles, jamais haverá nada artisticamente falando, que não as manifestações consideradas não imorais. Mesmo que belíssimas: as danças típicas, por exemplo, mas não pode o sistema cultural de um município resumir-se a isso, ao característico.

Qualquer outra atividade, todavia, causa espanto (até entendo porque eu nunca chegaria a uma direção, nesse sentido. Seria escandaloso para muitos. Sem contar que políticos temem a inteligência alheia, já que muitos não se usam dela para se eleger). É necessário expandir a visão cultural das pessoas. As pessoas não gostam, por exemplo, de música clássica, porque não sabem o que é isso. O mesmo se aplica ao teatro, à dança, às representatividades artísticas todas. Vendo apenas santos de gesso em igrejas ninguém se apaixonará jamais por uma escultura pós-moderna, como vendo apenas pinturas de flores, jamais conseguirá apreciar um Salvador Dali.

Quem está ou poderia estar avante disso são os educadores, que muitas vezes surpreendem com inventividade junto de seus alunos. Contanto, nem sempre. Muitas vezes tratam do assunto de forma tão ou mais simplificada, tendo como culturais as representações bíblicas da igreja e as danças aeróbicas da educação física, não desmerecendo nem uma nem outra, que podem muito bem ser imensamente belas. Enfatizando, outrossim, que tudo se resume a isso. E é ali, promovendo a expansão da visão cultural dos alunos na escola, que poderíamos começar um ato cultural de futura emancipação.

Precisávamos de coragem e ousadia, pois tudo o que consta na história como ideias grandes, que mudaram o mundo, é fruto de coragem e ousadia, é fruto de ultrapassagem do sistema mesquinho, do moralismo falso que muitos pregam, desconsiderando olhar para as coisas por ângulos diversos, considerando-se apenas a si próprios como fonte e modelo a seguir.