A Semana Santa

A Semana Santa

Lá pelos “idos” da minha infância, a Quaresma era realmente um período de “quarentena”, quando os católicos praticantes se abstinham de certos prazeres mundanos.

A Igreja fechava as portas principais e os acessos eram feitos através de entradas laterais. Não lembro conhecer alguém que marcasse casamento nesse período, mas se o fizesse, os noivos não fugiriam ao regulamento. As imagens ficavam inteiramente encobertas por tecidos pretos ou roxos que também era a cor usada em todos os paramentos litúrgicos. Os altares sem ornamentação. O sino permanecia mudo. Tudo lembrava luto, funeral, tristeza. Uma vez por semana, era revivido o sofrimento de Jesus, no ritual da via-sacra. A Igreja ficava cheinha de fieis. Tudo era organizado, inicialmente sob a liderança de uma das duas professoras do lugar, mais tarde pelo próprio povo.

Na Quarta-Feira de Cinzas começava o luto. Não podíamos cantar, “quem canta na quaresma, chora no carnal”, diziam, ouvir músicas no rádio e até rir mais alto era sinal de desrespeito. Os adultos jejuavam às sextas-feiras e as estórias de lobisomem corriam de boca em boca. Alguém plantava o boato que um fulano bateu na mãe e agora era uma dessas criaturas. Fico imaginando se continuassem com essa transformação, com os casos que temos visto nas páginas policiais, teríamos inúmeras fábricas de balas de prata em lugar das indústrias de automóvel e a extração deste metal seria mais imprescindível que do petróleo. Mas, brincadeiras à parte, vivíamos assustados.

Depois desse longo período, chegava enfim a Semana Santa. A procissão de Domingo de Ramos simbolizando a entrada de Jesus em Jerusalém aclamado pelo povo que gritava eufórico: Hosana ao filho de Davi! Enquanto agitavam ramos de oliveira. Poucos dias depois, esse mesmo povo condenou-O à morte. A Quarta-Feira Maior, a Quinta-Feira Santa e a Sexta-Feira da Paixão eram de jejum. Também ninguém comia carne, somente peixe e frutos do mar.

A Sexta-Feira da Paixão era um dia especial.

Quando pedíamos a bênção a papai e a mamãe eles nos abençoavam com a seguinte frase: “Que a Sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo lhe proteja e lhe abençoe.” E assim seguíamos sendo abençoados pelos tios e avós.

Para começar, nesse dia ninguém trabalhava. Nem a casa podia varrer. Tudo era providenciado de véspera, mas como não tínhamos geladeira, as comidas que usavam coco nas receitas, acabavam sendo preparadas na sexta, porém o que mais gostávamos era de saber que não podíamos apanhar, mesmo que aprontássemos todas as travessuras.

Também era o dia em que recebíamos os inúmeros afilhados que tínhamos, sim porque desde muito pequena fui muitas vezes “madrinha de apresentar” das crianças que eram batizadas por meus pais, a pedido dos “compadres”. Presenteavam-nos como podiam, com aves, doces caseiros, frutas, castanhas e não podíamos recusar as ofertas sob pena de deixá-los muito ofendidos. Retribuíamos com pequenas lembranças. Em meio a tudo isso, uma coisa me deixava intrigada. A forma como eles pediam a bênção. Entravam normalmente e ao se aproximarem de papai, literalmente, atiravam-se no chão, de joelhos e exclamavam: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, “bença” meu padrinho!” O gesto era repetido com mamãe e comigo e a resposta era a mesma: “Para sempre seja louvado! Que Jesus lhe abençoe!” Um dia tentei imitar, mas acabei machucando os joelhos. Não o fiz por mal, aquele ritual um tanto brusco, como disse, me intrigava.

À tarde a procissão do Senhor Morto, acompanhado por Sua Mãe, percorria o vilarejo e finalmente chegando à Igreja algumas orações encerravam os eventos religiosos. Ao contrário do que se faz hoje, só no Domingo da Ressurreição era quebrado o luto.

Assim era a Semana Santa no meu tempo de criança. Quando adolescente, participava ativamente do evento. Estudava em Colégio de Freiras, em Alagoinhas, era membro do coral da Igreja e da juventude católica. Até então, pouca coisa havia mudado. Nesse período, eram tantos os eventos que exigiam a nossa presença na Igreja que me perguntaram se não seria melhor levar a cama junto. Éramos jovens, tínhamos saúde e disposição para percorrer várias vezes o caminho casa-igreja.

Hoje vejo essas comemorações sob outra ótica e embora tenha consciência de que não podemos esquecer os ensinamentos de Cristo, não consigo aceitar as reconstituições do seu calvário. Será que precisamos mesmo torturá-lo e matá-lo ano após ano, para lembrar sua missão? Será que inconscientemente não achamos que aquela simulação irá apagar os nossos pecados cometidos no decorrer de cada ano? Será que faríamos o mesmo com alguém da nossa família? Algum de nós já se imaginou reproduzindo a agonia que levou à morte um ente querido? E por que o fazemos com Jesus, que fez o imensurável sacrifício de investir-se de humanidade, suportou a densidade grosseira da atmosfera terrestre, deixou-se martirizar até a crucificação, para nos ensinar a obediência, o amor e a humildade que nos conduzem ao Pai Maior? Por que não comemoramos com os Sermões da Montanha? Ou estudando as suas lições deixadas nos Evangelhos? E ainda, meditando como aplicá-las, como inseri-las em nossa vida?

Que possamos jejuar não de alimentos do corpo, mas das coisas que nos fazem perder a alma.

Fátima Almeida

31/03/2015

Fátima Almeida
Enviado por Fátima Almeida em 01/04/2015
Reeditado em 21/07/2016
Código do texto: T5191781
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