O olhar corretivo: a maior forma de ignorância possível

Já faz algum tempo ouvi contar que um rapaz conhecido meu havia ido a Cuba e se aterrorizado de como aquelas pessoas são carentes e de como são subjugadas a um estado desumano. Como nunca fui ao país, fiquei intrigado e triste. Algum tempo depois, um professor universitário e vereador pelo Partido Comunista do Brasil, a quem respeito muito, visitou-nos em minha casa e também contou sobre a sua experiência em Cuba. Com olhar encantado ainda, contou-nos, entre muitas coisas, como as pessoas são pouco ambiciosas, como não há drogas ilícitas no país, como o dinheiro do ônibus passou de mão em mão entre os passageiros e foi depositado na caixinha lá à frente, sem ninguém ter a tentação de o furtar (pagava quem pudesse a quantia que quisesse), e como o aluno e o reitor iam à universidade ambos lado a lado de bicicleta. Em suma, havia duas recordações diferentes — e não acredito que tenham visitado duas Cubas diferentes. O que ocorria então?

Sem defender ou contrariar o regime de governo cubano, pois não é o que me interessa aqui, creio que a diferença se dera no olhar com que se contemplara “o outro”. Partidário do comunismo, o professor universitário falava sob a perspectiva da possibilidade de igualdade social, que o encantava. O outro rapaz, que atuava à época como professor de cursinho em um rico colégio particular, ao qual não julgo menos ou mais sábio (mesmo porque não conheço Cuba com meus olhos), fora visitar o país talvez buscando não conhecer um outro modelo de vida possível, mas uma realidade fantasiada em sua mente e, certamente, impregnada pelo pensamento capitalista, pela necessidade de consumo acima de qualquer outro aspecto, a que estamos habituados todos por aqui. Talvez. E é a isso que chamo a atenção: Ao olhar o outro com nossos olhos, não sendo capazes de entendê-lo sob sua perspectiva, claramente que o nosso olhar não o vislumbrará como é nem entenderá certamente como se sente (suas queixas serão supravalorizadas e suas alegrias, muitas vezes, nos parecerão pequenas ou estranhas). Pois há aqui um “olhar corretivo”, dado pelo julgamento, partindo de nossa perspectiva e de nossas crenças sobre a perspectiva e as crenças de outrem, incapazes de compreendermos o que se passa a partir de uma cultura que não seja a nossa em particular.

Esse processo resulta numa compaixão e numa piedade enganadoras e, sobretudo, num desejo de salvação do outro. Contudo, um desejo tal que desconsidera o outro, considerando tão-somente a nós mesmos em nossas vivências. O mesmo que ocorreu com os povos africanos sob o olhar cristão europeu e também com o indígena. Tais povos demonstravam-se excêntricos para o povo de Europa, cujas mulheres, mesmo no Brasil já do início do século XX, escondiam-se com sombrinhas do sol para não perder a palidez. E como não lhes bastava acharem-nos excêntricos, ao depararem com seu modo de vida perceberam que não cultuavam ao Deus cristão e que não se organizavam em sociedade segundo os ditames da “civilização”. Eram povos primitivos, para eles, que viviam, segundo o Cristianismo, em pecado. Eram pagãos. Precisavam, pois, segundo a sua visão, de salvação. E esta veio da forma mais brusca, a qual não é preciso comentar aqui, nem lembrar dos açoites, dos navios negreiros, das mortes no mar, dos pelourinhos, dos escravos enterrados sob os fundamentos das casas-grandes e daqueles em que lhes eram furados os lábios e postos cadeados na boca como castigo por não se submeterem à língua e à crença europeia. Não acredito que tenham sido salvos, bem pelo contrário. Com os indígenas também não foi muito diferente, embora não tenham servido por muito para a escravidão.

Esse olhar corretivo é, pois, um olhar humilhante e assassino e, acima de tudo, ignorante. Só alguém muito ignorante é capaz de julgar que o que ele próprio é ou pensa é o modo correto de ser ou de pensar. Só alguém muito ignorante é capaz de pensar que há apenas um Deus a crer e que esse Deus seja justamente o cristão, quando todos os outros povos e pessoas que creiam em demais religiões no mundo irão condenados ao inferno. Pessoas mesquinhas que não têm qualquer capacidade de refletir o absurdo em que vivem imersas.

Pior de tudo é que tal não ocorre somente em grande escala, com ideias de coletivo pré-formatadas. Muitas e muitas pessoas, por elas mesmas, pensam-se como figuras exemplares, incapazes de cogitar outras vivências diferentes da sua. O modo como executam seu trabalho é o mais correto; o modo como cozinham; como se relacionam; como usam seu dinheiro; como se divertem... Não podem entender que outras pessoas não acham essencial viver como elas vivem. Por exemplo: um dia eu estava fazendo um chimarrão, já que é de meu hábito tomar, e alguém, ao ver-me prepará-lo, disse-me que não era assim que se o fazia, que tinha de fazer de outro modo. Há no mínimo uns quinze anos aprendi com meus pais a fazer chimarrão daquela forma e por uns seis anos tomo-o habitualmente todos os dias. Meus pais desde jovens também o fazem da mesma forma. Não quero afirmar que uma dica seja desprezível, o que quero dizer é que eu não fazia errado, mas diferente da pessoa que lançava um olhar corretivo sobre mim.

Portanto, temos que reparar nisso, a forma como você vive não é modelar, é somente a forma como você vive. Ela não é nem certa, nem errada, é um modo de viver a que você está habituado. Quando vê alguém viver diferente ou fazer as coisas diferentemente de você, tem que entender que aquilo também não é errado, é apenas diferente.

Se eu rezo ou não rezo, se creio em Deus ou em deuses, se cozinho com coentro ou sem, se como língua de boi ou não, se aprendo assim ou assado, se gosto de rock ou música clássica, isso são maneiras de eu fazer as coisas, são modos de eu me exprimir na vida. Não é errado eu preferir o funk eletrônico à belíssima música de Chico Buarque de Holanda — pode ser sim ignorância eu conhecer apenas o funk e dizer não gostar de algo que eu não conheça, mas não é errado. Não é errado também eu relegar a minha aparência a segundo plano ou deixar a minha casa desajeitada, ou mesmo suja. Ora, a forma como eu me organizo concerne somente a mim, não é necessário que ela agrade a você, por isso não é necessário eu corrigi-la por você.

Quando lançarmos o olhar sobre o outro, muito mais gostoso é lançá-lo não sobre, mas com curiosidade, perceber como é diverso de mim, como a vida é múltipla, como não há monotonia, como tudo é estranho. Ser capaz de encantar-se com o diverso, comer temperos a que não se está habituado, refletir sobre coisas que nunca pensou, isso é belo, isso é estar vivo.

Preocupar-se em salvar quem sofre, quem morre de fome, quem está doente e não pode tratar-se, talvez isso fosse a única coisa importante. Preocupar-se com que todos tenhamos o necessário. Não com que o outro viva a partir do nosso olhar, que não é senão o modo como olhamos, sem verdade maior que a de ninguém. Portanto, não sejamos ignorantes e incapazes de perceber o essencial: nascemos para dividir, — seja por Deus, pelos deuses ou pela natureza, sem nada além.