Exigir o tratamento de “doutor” ou “doutora” é uma questão de vaidade

Exigir o tratamento de “doutor” ou “doutora” é uma questão de vaidade

por Márcio de Ávila Rodrigues

Em janeiro de 1986, quando eu fiz o primeiro de meus vários estágios profissionais (medicina veterinária) junto ao Jockey Club de São Paulo, observei que outros estagiários, jovens estudantes, tratavam-se uns aos outros de “doutor”. Ou doutora.

Falavam às vezes rindo, como se fosse brincadeira, mas observei que havia algo de sério nas entrelinhas. Ou nas entrepalavras.

No fundo, estavam querendo se acostumar ao pomposo título, à expectativa de serem tratados com mais respeito e distanciamento.

E sentir o sabor de ganhar status e a sensação de subir na vida, se destacar na sociedade, sonho que já não parecia tão distante à medida em que a formatura se aproximava.

Essa forma de tratamento – doutor – sempre estimulou a diferenciação entre as pessoas, ao contrário de senhor, que é usada apenas por respeito à idade, ou entre desconhecidos.

Não pesquisei o histórico do uso de doutor como forma de tratamento, mas presumo que, no Brasil, tenha sido associado principalmente aos médicos.

Talvez pelo status da profissão. Ainda que, dois ou mais séculos atrás, a medicina fosse uma ciência limitada, já era muito valorizada por cuidar da saúde, essência da própria vida.

Seguindo essa lógica, é possível que apenas os médicos tenham sido chamados de doutores no passado, mas outras categorias foram aderindo, em busca de status, respeito, diferenciação.

Também é possível que as primeiras classes a copiar tal forma de tratamento tenham sido as derivadas da medicina, como a veterinária e a odontologia.

A fisioterapia é um ramo bem mais recente; a memória me lança aos mesmos anos 1980, quando observei, numa academia de ginástica, um agressivo fisioterapeuta que se referia em voz alta, a si e à sua também antipática colega, como “doutores”, para deixar claro aos clientes que esta era a forma de tratamento por ele exigida.

Queria o título a qualquer custo, mesmo que arrancado a ferro e fogo das bocas das pessoas. Foi um caso de exagero, mas são os exageros que mais se fixam na memória humana.

Os advogados talvez tenham sido o segundo bloco profissional a adotar o título, o que incentivou a banalização, pois o número de diplomados em Direito se multiplicou espantosamente nas últimas décadas (afinal, trata-se de um curso bem mais barato e mais fácil de ser oferecido pelas universidades, pois não exige grandes espaços, hospitais-escola, equipamentos sofisticados nem cadáveres).

Ser doutor perdeu importância pela abundância de uso, mas a vaidade humana não permite o desaparecimento dessa forma de tratamento.

Autoridades vaidosas, empresários, e outros grupos demonstram claramente que só debatem ou negociam com quem os trata desta forma, exigem ser chamados de Doutor, não de Senhor. Ou na flexão feminina, pois a mulher, ao chegar ao mercado de trabalho, absorveu os mesmos defeitos.

E por aí segue e seguirá a humanidade, com seus ególatras que perseguem a tentativa infantil, inútil, de sobressair da multidão. De parecer um ser especial, superior, quase imortal.

Sobre o autor:

Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).

Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.

Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.