Desafios da ciência

Desafios da ciência

Ciência significa “conhecimento” e é o esforço para descobrir e aumentar o conhecimento humano de como a realidade funciona. Não obstante, o conhecimento acurado da realidade pode também criar fantasias como se realidades fossem. As antiqüíssimas artes do ilusionismo e da mágica são um bom exemplo da habilidade de poucos provocando a imaginação de muitos. Para tanto, é preciso um bom conhecimento das falhas do sistema das percepções humanas para um bom sucedimento nessas áreas. A experiência nos mercados e feiras fez com que os comerciantes desenvolvessem técnicas de convencimento baseadas no interesse de cada um e não num código de conduta. O comércio sempre foi o grande laboratório da psicologia humana e não por acaso o cristianismo nasceu em um dos maiores centros da indústria e do comércio do mundo antigo ─ a Ásia Menor ─ e, ao contrário do que muitos pensam, é ciência pura. Conhecimentos demais para homens humildes da Galiléia.

Os evangelhos contam uma história que nunca existiu. Isto porque as divisões no seio do judaísmo facilitaram a criação de uma seita judaica fictícia que tinha um papel a cumprir. Esta criação foi plantada antes da guerra romano-judaica de 66-70/3 para que as centenas de milhares de mortos, a dispersão, a destruição e o grande incêndio em Jerusalém justificassem a inexistência de evidências no meio judaico. Não é à toa que essa guerra é considerada o divisor de águas entre o fictício judeu-cristianismo e cristianismo no mundo helênico. Personagens da época deram sustentação à fachada histórica desse conto do segundo século. Uma tarefa nada complicada para os criadores da história que dominavam culturalmente o mundo antigo e se assenhorearam ainda mais daquela região no pós-guerra. Estes passaram a ensinar história assim, a partir do século IV, fixando esses ensinamentos nas gerações seguintes com uma nova educação.

Todavia, como um relato histórico, o conto dos evangelhos nunca teve chance de perenidade e trouxe desconforto a muitos crentes intelectualmente honestos. Os criadores dos evangelhos não poderiam prever que a própria história evoluiria como tudo mais. Na verdade, a dificuldade estava em se dimensionar o teor dessa evolução porque os próprios valores cristãos, como a valorização da verdade, por exemplo, poderiam voltar-se, no futuro, contra o pragmatismo helênico daquela época. O futuro é mesmo imprevisível.

Entretanto, a falsidade da narrativa dos evangelhos não anula a força do seu conteúdo. Alguma contradição nisso? Não, nenhuma. Diz-se que todo mito tem um pezinho na realidade, mas, isso não significa, necessariamente, a existência de um Jesus histórico, uma vez que um único mito pode ser composto por muitos outros. No referido caso encontramos, por exemplo, os mitos de Átis, Hórus e Mitra. A realidade responde aos apelos da imaginação, não com imaginação, mas com realidade. Trata-se um conhecimento antigo que vem sendo aplicado ininterruptamente na história da Humanidade com grande sucesso, cujo veículo é a educação. A maior evidência disso de forma institucionalizada é o Antigo Testamento.

Na Antiguidade, os personagens principais das concepções religiosas, os deuses, se encontravam no tempo mítico ou primordial onde nada o antecedia. Esse tempo podia ser resgatado nas festas, quando o homem tornava-se periodicamente contemporâneo dos deuses. Assim a vida profana e religiosa se desenvolvia sem conflitos, zelando pelos laços entre os homens e seus deuses criadores em paz com a ciência. A propósito, “teologia” significa: estudo das ciências dos deuses. Curioso, não? O tempo mítico ou primordial não é um tempo identificável no passado histórico, nenhum tempo poderia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito. Portanto, o tempo mítico não incomodava a ninguém.

A falsa questão entre a religião e a ciência se inicia quando, ainda na formação da nova cultura (cristianismo), resolveram inovar o tempo sagrado criando o seu personagem principal no tempo cronológico ou histórico, ao afirmar a historicidade de Jesus Cristo e sua morte na cruz, rejeitando a concepção gnóstica do Cristo não-humano, puramente espiritual e originário do tempo mítico. Foi esta a origem das heresias e das perseguições sanguinolentas que mancharam a história do cristianismo. Uma decisão que implicava num profundo conhecimento das ciências humanas e as suas possíveis aplicações. Aliás, só para lembrar, foi Kosmas Indikopleustes, comerciante de Alexandria que se tornou monge cristão, século VI, que inventou que a Terra era plana e quadrada, quando há muito a sua esfericidade era conhecida. Evidentemente, uma guinada tão brusca na história da religião e em princípios básicos que norteiam a inteligência humana não estaria vazia de motivos. Ousadia demais para um simples ato de vontade.

Se, até então, eram no tempo mítico que todas as crenças religiosas se iniciavam, inclusive as crenças gregas, qual a necessidade de um deus histórico naquele momento? Tradicionalmente, para os gregos, religião era coisa de mulher e escravo. A cultura helênica não dispunha de nada para enfrentar o avanço cultural judeu que se fazia por intermédio do proselitismo. Em vista disso, perceberam os gregos que naquela contingência a única saída seria sintetizar um antídoto, ou seja, um judaísmo grego para combater o judaísmo histórico que ganhava terreno junto aos menos favorecidos. Um remédio amargo, mas não havia opção. Tão amargo que os talentos gregos desapareceram completamente, nunca mais se ouviu falar de um grande pensador ou artista desta origem.

A necessidade de assegurar o direito de utilização do Antigo Testamento, isto é, usar as armas do adversário contra ele mesmo, levou os gregos a forjarem uma história mais antiga. Nessa história o personagem principal, Jesus Cristo, teve múltiplas finalidades: a primeira era criar um elo histórico com o judaísmo, que se encontrava divido em várias seitas, antes da já referida guerra. Em função desse passado, uma excelente oportunidade se apresentava aos interessados com a dispersão dos judeus de Jerusalém. Mais uma seita, cuidadosamente assentada naquele ambiente conturbado, encontraria poucos contestadores na ocasião (segundo século). A segunda era dar segmento ao antigo ódio antijudaico com orientação claramente helenizadora e visceralmente oposta ao judaísmo tradicional. Desse modo, o novo judaísmo cumpriria o antigo ideal universal helenístico ─ reunindo a Humanidade num povo só ─ resgatando os gregos pobres do âmbito da influência judaica. A terceira era servir de fachada para os achados da filosofia helenística num hibridismo judeu, sabedoria acumulada e atribuída ao “Mestre Jesus”, garantindo a hegemonia grega ainda que com sacrifícios.

No entanto, as três funções básicas do personagem estariam comprometidas não fosse a aplicação de um poderoso recurso que preservasse todo esse trabalho. Algo mais profundo, ligado às deficiências congênitas do gênero humano precisava amarrar o pacote. Hoje, no mundo, o número de cristãos é estimado em torno de 2.2 bilhões de indivíduos e isso não é por acaso, porque simplesmente as pessoas querem ser enganadas, como muitos imaginam. Há muita ciência aí, um tipo de ciência que mais se pratica do que se fala e ensina. Levando-se em conta a complexidade da mente humana, uma cifra tão elevada de convertidos não pode ser explicada simplesmente com objetividades. Um tanto de subjetividade também há de estar presente nesta apreciação, pois a objetividade se refere ao objeto e a subjetividade ao sujeito. É ai que entra um predicado poderoso da ciência interna.

O talento e a experiência acumulada pelos gregos haviam criado um poderoso e decisivo revestimento ─ a figura de Jesus Cristo ─ para uma das propriedades constitucionais mais notáveis da espécie humana: a faculdade de pensar. Desde a Antiguidade relatos de ocorrências incomuns relacionados aos poderes do pensamento nos chegaram por diversas fontes. O contato com o Oriente ampliou a prática dessas ocorrências. Assim foi até que se ouviu falar em metanóia, palavra grega que significa “arrependimento”. O termo “arrependimento”, muito utilizado no NT, tem origem na metanóia, que significa uma mudança drástica no modo de pensar. Uma mudança que evidenciaria o ponto de equilíbrio do indivíduo para ele mesmo. Não são muitos os que o atingem, mas é o suficiente para influenciar a outros numa cadeia multiplicadora. Ao entusiasmo de poucos respondem euforicamente as multidões.

A metanóia efetiva consiste na ruptura com os hábitos antigos e, portanto, na adoção de hábitos novos, mais saudáveis e produtivos, e na interiorização e assimilação definitiva destes. Como todo processo de iniciação, seus graus são conquistados passo a passo. A “morte” do indivíduo para a vida antiga e a ressurreição dele para a vida nova, em analogia com os mitos solares, simboliza não só a sua transformação mental, mas o renascimento dele na primavera da vida. Ora, quem não quer isso para si? Portanto, Jesus Cristo “morreu” na cruz para servir de modelo ao novo homem que ressuscitará na sua vida nova. Jesus é um personagem que não pode ser explicado simplesmente como uma criação mitológica, porque se tornou a própria faculdade de pensar do indivíduo, a sua realidade interior. Tecnicamente, é o Cristo vivo. Engenhoso é pouco para os gregos antigos. Todos os adjetivos enfileirados não farão justiça à genialidade deles.

Por outro lado, essa era também a relação subjetiva entre o judaísmo histórico e o judaísmo grego ou cristianismo. A morte do judaísmo histórico se justificaria na ressurreição de um judaísmo novo, profundamente helenizado, que abria os braços para toda a Humanidade. Todos poderiam contar com as graças de Deus, não só os judeus. A novidade acabou vencendo, em termos. Tentou-se por todos os meios, mas não foi possível acabar com o judaísmo. Por esse motivo o ódio pelos judeus perdura sem explicação. Foi assim que a prática da metanóia se perdeu no simbolismo para tanger a boiada e superar os judeus. As ciências humanas precisam digerir essa história que nos foi empurrada goela abaixo. Enquanto isso, o assunto continua controverso. Alguns psicólogos defendem o abafamento do caso porque acreditam que a funcionalidade do método, no qual também eles foram criados, seja insubstituível.

Creio que seja maior ainda o desafio da ciência em expor pormenorizadamente a realidade humana. Nesse sentido, a ciência ainda não foi traduzida na sua forma mais simples a ser praticada por todos e servir como agente transformador das sociedades e não apenas como um meio de exploração e controle. Não por outro motivo as conclusões das ciências humanas parecem ser desinteressantes. Mentiras são sempre mais lucrativas. O cristianismo poderia ter sido uma forma de popularização da prática da metanóia, mas não foi. Até a sua história oficial é inequívoca. A Humanidade aprende com os seus erros, ainda que muita resistência. Entretanto, o acerto de hoje pode ser o erro de amanhã. A dinâmica da existência humana é mesmo assim. Não há como se desconstruir o Homem para que ele se desinteresse pelo conhecimento e se convença dos benefícios da ignorância. Muitas luzes precisam e hão de ser acesas sobre a história, porque os gregos e os judeus do passado já não existem mais. Esta página está virada, mas a lição ainda não foi aprendida.

Aqui pra nós, será que nunca nos livraremos das farsas porque o medo de não crer nos assusta? Porque a magia das realizações triviais pode não mais funcionar e dela nos tornamos reféns? Será que esse tipo de mentira é mesmo necessário? Duvido.

Nicomedina
Enviado por Nicomedina em 01/02/2011
Código do texto: T2766306