PROJETO LIXO EXTRAORDINÁRIO E INDISPENSÁVEL – Quem vai cuidar do nosso lixo?

Eu vi o filme “Lixo extraordinário”, do Vik Muniz, com direção do mestre João Jardim e sua equipe. É um tapa com luva de boxe no queixo dos governantes e legisladores. Todos eles. O documentário retrata a vida de meia dúzia dos catadores de lixo do Jardim Gramacho, escolhidos laboriosamente para comporem a peça cinematográfica, que foi indicada para o Oscar em 2011. Quem viu o filme sente náuseas. Quem tem sensibilidade visual, olfativa e emocional se comove ao ver aquele bando de zumbis escalando montanhas de detritos, podridão e carniça na esperança de apanharem alguma coisa valiosa.

Não deveria ser assim em nenhum lugar do mundo. Não deveriam existir pessoas vivendo em condições tão subumanas de degradação, imundície e desamparo. O recorte da tragédia envolveu apenas meia dúzia de atores e alguns familiares, tangenciados de longe pelas lentes do profissional. Foram eleitos por suas formas mais harmônicas, menos doentias, menos apavorantes que as suas pobres vidas. As centenas de outros desdentados, esqueléticos, adoecidos no corpo e na alma pela convivência diuturna com o lixo produzido por nós, não tiveram qualquer chance. Eram muitos, serviram apenas de coadjuvantes, filmados ou fotografados de longe, para comporem o cenário degradante.

É assim em todas as capitais do Brasil e em grande parte dos lixões do mundo civilizado. Vik Muniz abriu uma porta no meio da escuridão. Existe uma associação de catadores de lixo do Jardim Gramacho. Existe uma organização precária que nem segurança armada tem para impedir que ladrões roubem o dinheiro (12 mil reais) reservado para pagamento dos trabalhadores, como foi noticiado no documentário.

O grupo musical Legião Urbana faz uma pergunta que não quer calar, em sua escrachada canção : “Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado, ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação. Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse?”

Nada mais apropriado que a palavra “sujeira” no protesto da banda. Nos jardins gramachos do Brasil, há muita sujeira. E fora dele também. Sabemos onde. Todos os dias os noticiários jogam em nossas caras o que os representantes do povo estão fazendo atrás das portas fechadas dos seus ninhos de corrupção de bandidagem. O mau cheiro e imundície que exalam dos gabinetes tem consequências maiores do que a náusea provocada pelos lixões das grandes cidades. Sabemos quais. Que país é esse e que povo somos nós? Retornemos ao lixo.

O lixo que descartamos diariamente afeta nossas vidas, sim. A ciência está aí para comprovar. Ou separamos de modo inteligente os resíduos e os reciclamos ou a vida no planeta será insustentável nas próximas décadas. O ser humano já está sofrendo por essa falta de cuidado com a natureza. Assim, o lixo precisa ser tratado adequadamente. Os catadores de lixo, então, estão nos prestando um grande favor. Os empregados da limpeza pública também. Deveriam ser mais valorizados, melhor preparados, receberem proteção adequada no trabalho ,já que lidam com materiais em decomposição, tóxicos, nocivos a saúde. É assim que são tratados? É desta forma que os governos estão cuidando dos operários do lixo e do nosso lixo? Ou apenas fazem de conta que cuidam? Investem milhões em propaganda para incentivar a separação do lixo, sensibilizando os cidadãos de bem a agirem corretamente, mas quanto estão investindo em preparar pessoas para trabalharem nos lixões já existentes? Quanto os governos estão aplicando na criação de escolas, creches, habitação decente, treinamento e equipamentos adequados para aqueles que sobrevivem do trabalho imundo, que poucos se propõem a fazer?

Lixo extraordinário. Eu vi esse filme. E vejo todos os dias, catadores de lixo pelas ruas de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, BH, Porto Alegre, Recife e Fortaleza, só para mencionar algumas cidades. Os lixões estão por toda parte. Centenas de ONGs se apropriam de lixões como forma de sobrevivência. Mas, o que o poder público, governantes eleitos por você (eu não voto há 22 anos no Brasil) estão concretamente fazendo por aqueles homens e mulheres esquecidos? Eles estão tendo o amparo que merece qualquer trabalhador honesto neste país?

O filme termina dizendo que fecharão o Jardim Gramacho em breve. Sim, depois da repercussão negativa que o filme trouxe ao local e ao Governo do Rio de Janeiro, eles acham que é melhor fechar e jogarem o lixo em outro lugar. Ou seja, abrirão uma filial do Jardim Gramacho em outro local remoto da Cidade Maravilhosa para onde acorrerão centenas de desassistidos, abandonados e relegados à própria sorte.

Será que faltam projetos? Será que faltam técnicos e especialistas em meio ambiente? Onde está esse povo que sai das melhores universidades do país com seus diplomas de engenheiros, ambientalistas, pós-graduados e doutores? Estão apresentando soluções? Estão cobrando soluções emergenciais? Ou apenas pagam o ingresso para assistir a um filme que não terão estômago para vê-lo duas vezes, se comovem e deixam as coisas como estão?

Meu ofício é escrever e falar. Por isso, estou aqui. Querem um projeto? Falem comigo. Governantes! Senhores Secretários de Bem estar Social, Senhores Ministros do Trabalho e Previdência Social... por que não contratam gestores para aplicarem recursos nossos, ditos “públicos”, por meio de projetos decentes, que mapeiem os catadores de lixo das grandes cidades, identifique-os civilmente, encaminhe-os para exames clínicos de urgência,se necessário, prepare-os adequadamente para o difícil e indispensável trabalho de separação do lixo aproveitável, dê-lhes equipamentos adequados (máscaras, luvas, botas, capacetes, etc.)? Por que não se oferece a esses homens e mulheres trabalhadores um plano de saúde, educação adequada, transporte decente para levá-los ao local de trabalho, banheiros de descontaminação, restaurante com refeições dignas, diferentes das que são produzidas atualmente nos lixões, proveniente de sobras doadas (lixo orgânico aproveitável). Talvez seja isso o que o artista plástico de sucesso Vik Muniz pensou ser possível. Mas ele sozinho só pode tocar com a varinha mágica das suas boas idéias, sensibilidade e determinação, meia dúzia de escolhidos: Zumbi, Tião, Irmã, Magna, Suelem e Isis. Estes, de uma hora para outra se viram estrelas de um filme que jamais pensaram ser possível. Quem sabe até desejaram viver tal sonho, todas as vezes que andaram pela Cidade Maravilhosa e viam pessoas exalando perfume francês, comendo em restaurantes de luxo, andando em carros com ar condicionado e com seus filhos brincando felizes em playgrounds, ao lado de babás carinhosas. Os escolhidos já não querem mais voltar ao lixão depois do glamour de poucas horas. Querem mudar suas vidas, como todos os que lá ficaram têm esse direito. Mas, e se for assim, quem vai separar para você a parte reaproveitável do lixo que você produz todos os dias e os deposita nas lixeiras domésticas? Parece mesmo que precisamos ter plena consciência de nosso dever: reciclar tudo o que for possível, reduzindo assim o volume de lixo a ser descarregado e juntar forças, cobrar, pedir, exigir que os representantes do povo parem com a conversa mole de que não tem recursos e deem assistência já aos desvalidos que povoam os lixões das grandes cidades.

(*) Mathias Gonzalez é psicólogo e escritor.

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