SETE APONTAMENTOS DE UM ADULTO QUE OUSOU APRENDER A LER E A ESCREVER

SETE APONTAMENTOS DE UM ADULTO QUE OUSOU APRENDER A LER E A ESCREVER

APONTAMENTO 1

A escrita é um desenho. Escrever é desenhar o som das palavras.

No fio do lápis eu vou traçando, letra por letra, a voz do meu pensamento.

Um dia eu fiz uma letra. Comecei pelas vogais. Quem não sabe o A-E-I-O-U? Se até eu sei, imagine tu! Eu, tu, ele... Nós, vós... eles é que sempre me diziam que eu era burro. Imagine que absurdo!!! Burro é um animal bem inteligente. E tem cachorro que é mais sabido que muita gente.

Depois conheci as consoantes. PQP! As consoantes são demais: dão vida às vogais!

Nada disso eu sabia antes (mas agora as coisas mudam no quartel de Abrantes...)

Depois, juntei duas letras e obtive uma sílaba e depois peguei outras letras e formei outras sílabas.

Percebi que, ao combinar sílabas, surgiam palavras.

Como a palavra LIBERDADE. Uma pessoa que lê já começou a ser livre. Acho que é daí que vem a palavra LIVRO. Com ela, da ignorância eu me livro. Livro, leitura, luz, liberdade: tudo com “l”. Legal !!!

APONTAMENTO 2

Depois da descoberta da mistura das sílabas, fiz o caminho inverso. Peguei algumas palavras e fui cortando-as em sílabas. Obtive várias “famílias” de palavras. Misturei as famílias e gerei mais e mais palavras. Nesse momento me lembrei de um professor alfabetizador que me falara de Paulo Freire e das palavras geradoras.

E aí, quando juntei palavras elas viraram frases. Algumas pequenas, outras grandes. Estavam ali, bem na minha frente, vários “temas geradores”... De novo o educador Paulo Freire em minha vida.

Somei várias frases e consegui fazer um texto. Eu estava todo prosa com aquela matemática literária.

Juntei vários textos e escrevi um livro. Não chegava a ser um romance. Depois, descobri que era um conto. Mas juro que não aumentei nenhum ponto! Foi o início da descoberta dos gêneros literários. Poesia, prosa, conto, crônica. Ah... os poemas!!! E o que dizer da literatura de cordel?

APONTAMENTO 3

Depois de descobrir que existem vários gêneros literários, passei a olhar com mais carinho para os verbos. Aquela velha história dos componentes de uma oração: sujeito, verbo e predicado.

Ah, os verbos, esses tais que representam ações : somar, unir, juntar, namorar. São ações que alguém faz, o tal do sujeito. Como ler e escrever. E amar. Descobri também que tem político, sujeito danado pra mentir. Mentir pode ser verbo, mas não um bom predicado. E tem mais: mentir, afinal não é lá muito politicamente correto.

Ao longo dessa trajetória, descobri os substantivos que nomeiam as coisas: cinema, televisão, relógio, casa, cachorro. Aí peguei os substantivos e fiz deles gato e sapato.

Descobrira também os nomes próprios que batizam países, pessoas, cidades e outras coisas. China, Vaticano, Papa, Natal, Flamengo...

A China é um país de olhos apertados (a economia já nem tanto!) E explodindo de gente pra todo o lado. Aos poucos eu começava a entrar no território das metáforas...

Em contrapartida o Vaticano é um país pequeno. Mas tem o Papa que é um grande santo. Porém não vou ficar aqui discutindo religião. E se fosse falar de futebol, com certeza o nome próprio que me viria à cabeça seria “Flamengo”.

Contudo, o momento não é assim tão próprio como todos esses substantivos. Já o meu nome é um tanto impróprio, por isso não vou dizê-lo aqui. Vocês vão rir se eu disser. O que não tem a mínima graça.

Mas eu moro na cidade do Natal. Que é também uma data comemorativa. E o dia de nascimento de alguém. Ou seja, descobri que uma mesma palavra pode ter vários sentidos. Ou significados. Tá vendo? Já estou usando o sinônimo. E descobri uma inclinação para frequentar bibliotecas e “devorar” dicionários. Não literalmente, claro, mas no sentido figurado. E você: é um “rato” de biblioteca?

APONTAMENTO 4

Ler e escrever é sempre uma aventura. Assim fui descobrindo alguns segredinhos da gramática, essa personagem emblemática, às vezes drástica, às vezes dramática. Adjetivos dão qualidade às coisas. Um texto pode ser bem ou mal escrito. Uma cidade pode ser suja ou pode ser limpa. Descobri que “suja” e “limpa” são adjetivos. E que isso depende da Prefeitura.

Homem bonito, mulher linda. “Bonito” e “linda” são também adjetivos. Quanto a mim, dizem que sou “simpático” (fico pensando que não querem me chamar de feio... que é também um adjetivo, só que não muito agradável). Na verdade, me contaram que o "simpático" aí era uma espécie de eufemismo (que é utilizado para amenizar as coisas, assim tipo "fulano não morreu, bateu as botas")... Mais tarde eu iria aprender que um texto pra receber o adjetivo de “bom” precisa ser substantivo. Dá pra entender essas contradições? Realmente, um paradoxo.

Descobri que existem conjunções, que fazem a ligação entre as palavras. Eu, porém, nem ligo muito para isso.

Foi bom saber também que os verbos têm presente, passado e futuro. No passado eu não sabia ler. Hoje eu sei um pouco. Amanhã, no futuro, saberei um pouco mais. Fardões, te cuidem!!! Não é que a imortalidade também passa pela leitura e pela escrita?

APONTAMENTO 5

Durante o meu processo de aprendizagem da leitura descobri também que os acentos podem modificar o som das palavras. Esta é diferente de está. O til traz emoção ao meu coração. Às vezes tenho dificuldades em usar a crase. Felizmente, não estou só (com acento agudo). Você não tem ideia (que já não tem mais acento), o tanto que isto me consola! Fizeram uma pequena reforma na língua, uma espécie de lipoaspiração. Mas eu queria mesmo era uma grande reforma em minha casa, que não chega a ser a minha vida, como dizem por aí...

O hífen ainda me torna confuso, pois sobraram exceções. Se eu fosse a Princesa Isabel teria feito uma abolição completa! A lei do hífen livre! Descobri também que se trocasse o “f” do “hífen” por um “m” poderia vir a causar alguns problemas sexuais. Às vezes a gente tem que ser complascente.

Por fim, descobri a importância da pontuação. Pra que serve uma interrogação? Para perguntar, ora! - exclamei. Claro que usando um acento de exclamação!

E, ponto final. O assunto poderia acabar por aqui. Mas... (as reticências indicam que ainda pode existir alguma coisa no ar...) Como esse tal de “x”, que tem som de todo jeito (ora xis mesmo, ora som de “s”, ora som de “z” – como por exemplo na palavra exemplo.) Mas quando se usa o “x” ou o “ch”? Se o cheque é sem fundo, xeque-mate em sua conta. E, afinal, é xuxu ou chuchu? Ah se a grafia mudasse o gosto desse legume! Sem falar em jiló ou giló, que é mesmo de amargar. E também deixando de lado o “h” que não tem som de nada. “Houve”, com ou sem “h” é sempre o mesmo som que se ouve. Ah... (onde está o som do agá?). Decerto ficou mudo.

Mas no inglês eu sei que “house” é ráuze. Ou seja, o “h” tem som de “r”. Um dia vou aprender esse tal de inglês. Mas não para inglês ver. Para falar fluentemente, como falo em português.

APONTAMENTO 6

Acentos, hífen, pontuação. É claro que eu ainda vou descobrir muitas coisas. Como a importância de uma vírgula, que pode fazer toda a diferença. “Não vou te pagar” é diferente de “Não, vou te pagar.” Com apenas uma vírgula alguém dá calote ou pode acertar as contas.

Não vou falar de aumentativo e nem do diminutivo que faz “grandão” virar pequenino. Mas sei também que nem todo “ão” é aumentativo, como se vê numa canção. E nem todo “inho” diminui, senão o pássaro não caberia no ninho. Só o passarinho. O que me faz lembrar o saudoso poeta Mário Quintana com a sua tirada bacana: “Eles passarão. Eu, passarinho”.

Cada coisa na sua própria estação. Como a rima que pode alegrar um poema. Ou como a métrica que pode ser um problema. Mas um poema pode ser livre como o vento. E fazer voar o meu pensamento. Enfim, posso escrever em verso ou em prosa. E sentir no ar a fragrância da rosa. Que pode ser também uma cor. E isso eu já sei de cor. Ou seja, sei com o coração. E sinto toda a emoção de ser alguém letrado. Alguém que já sabe ler e pode reinventar o mundo.

APONTAMENTO 7 (ou desapontamento?)

Dizem que 7 é conta de mentiroso. Sinto muito, não sou supersticioso. Vou pintar, aliás, escrever o sétimo apontamento.

Lendo e escrevendo vou descobrindo um universo fantástico que se abre diante dos meus olhos. Horizontes sem fim.

Eu era cego. Agora, sei ler.

Eu era mudo (no papel). Agora, sei escrever.

Eu estava preso, no escuro. Hoje sou livre, estou na luz.

Agora, sei que posso escrever a minha própria história. E, quem sabe, saberei reinventar um novo mundo, com mais paz, mais harmonia, mais justiça, menos violência, um mundo pleno de luz. Com letrinhas desenhadas, bem alegres, a brilhar feito estrelas no papel.

A leitura e a escrita, pode crer, me abriram um caminho para o céu. E a ignorância, coitadinha, foi parar no beleléu.

Agora posso até parodiar Shakespeare: ler ou não ler, eis a questão. O resto é silêncio. Escrevo, logo existo.

E para assinar esses apontamentos, posso desapontar vocês ao usar um pseudônimo. Como já disse, o meu nome, na verdade, é uma piada de mau gosto de um pai que não sabia o que estava fazendo quando foi ao cartório me registrar... Imagine um nome horrível: pois o meu é bem pior... Nem adianta insistir, não vou mesmo dizer...

Espero que vocês tenham gostado desses meus apontamentos. Já faz algum tempo que aprendi a ler e a escrever. Mas sinto que ainda tenho uma longa estrada pela frente. E, talvez, nunca complete esse meu processo de aprendizagem. Pois a estrada da educação só tem mesmo começo: é uma jornada sem fim. Aprendo, logo existo. E sigo, vida afora, aprendendo e desaprendendo. E voltando a aprender. Aprendi isso com a Cecília Meireles: "hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem e que amanhã recomeçarei a aprender..."

José Decarte

(eu tenho sempre que frisar: sem “s”, pois não sou francês e nem sou descartável...)

José de Castro
Enviado por José de Castro em 01/10/2011
Reeditado em 15/04/2014
Código do texto: T3251626
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