A ALFABETIZAÇÃO E O EMPODERAMENTO DAS MULHERES

Resumo: O processo de alfabetização é um momento único na vida das pessoas, especialmente para aquelas que não tiveram oportunidade durante a infância e a adolescência, chegando à idade adulta sem saber ler e escrever. O objeto deste texto são falas de educandas que participam do Programa Brasil Alfabetizado, traçando, também, um recorte de gênero. O objetivo é mostrar através das falas e de embasamentos teóricos as mudanças que o ato de ler e escrever podem causar na vida dessas mulheres.

Palavras chave: Alfabetização – Mulheres - Empoderamento - Autonomia

O ato corriqueiro de deitar os olhos sobre uma placa, um jornal, um livro... e poder decifrar o que ali está escrito não é de livre acesso a todas as pessoas. E de menos acesso ainda é ir além da decodificação e estabelecer a relação texto-contexto, para além de ler padaria, tecer a rede semântica padeiro/a, pão, farinha, ovos, açúcar, forno, etc. E mais, perceber a ligação que existe entre os seres representados por essas palavras.

Por isso, neste texto, proponho-me a tecer algumas considerações sobre o processo de alfabetização que envolve pessoas adultas, especificamente no Programa Brasil Alfabetizado, voltado para a alfabetização de jovens, adultos e idosos, desenvolvido em parceria entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC e a Prefeitura Municipal de Santa Rosa/SMEJ, focando um recorte de gênero, uma vez que as falas selecionadas para o presente trabalho são somente de mulheres.

A escolha está baseada no fato de que a maioria das pessoas que compõem as turmas do Brasil Alfabetizado são mulheres. Aqui, cabe uma rápida lembrança histórica: a sociedade brasileira formou-se sob o duo colonização – patriarcado e isto significa escravização, submissão, tirania, exclusão, falta de democracia, opressão e repressão. Um bom debate que fica proposto para outro momento, pois o foco, neste texto, é o dizer dessas mulheres que desvendaram o mistério das letras. Porém, imprescindível nunca deixarmos de lado as circunstâncias históricas para que não percamos o horizonte. Afinal, como escreveu Paulo Freire, referindo-se a seus livros Educação como prática da liberdade e Pedagogia do Oprimido, quando recebeu cartas que o criticavam pela linguagem utilizada:

Me lembro como se fosse agora que estivesse lendo as duas ou três primeiras cartas que recebi, de como, condicionado pela ideologia autoritária, machista, reagi. E é importante salientar que, estando nos fins de 1970 e começos de 1971, eu já havia vivido intensamente a experiência da luta política, já tinha cinco a seis anos de exílio, já havia lido um mundo de obras sérias, mas, ao ler as primeiras críticas que me chegavam, ainda me disse ou me repeti o ensinado na minha meninice: “Ora, quando falo homem, a mulher necessariamente está incluída”. Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: “Quando falo homem, a mulher está incluída". E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: “As mulheres estão decididas a mudar o mundo.”? Nenhum homem se acharia incluído no discurso de nenhum orador ou no texto de nenhum autor que escrevesse: “As mulheres estão decididas a mudar o mundo”. Da mesma forma como se espantam (os homens) quando a um auditório quase totalmente feminino, com dois ou três homens apenas, digo: “Todas vocês deveriam” etc. Para os homens presentes ou eu não conheço a sintaxe da língua portuguesa ou estou procurando "brincar” com eles. O impossível é que se pensem incluídos no meu discurso. Como explicar, a não ser ideologicamente, a regra segundo a qual se há duzentas mulheres numa sala e só um homem devo dizer: “Eles todos são trabalhadores e dedicados?”. Isto não é, na verdade, um problema gramatical, mas ideológico. (FREIRE, 1997).

Há algum tempo, em um texto intitulado A leitura como inclusão social, escrevi o seguinte: “Em sociedades como a nossa, cujos traços característicos são a exclusão e o autoritarismo, as oportunidades culturais não chegam de igual forma a todas as camadas sociais” (Oliveira, 2002). Então, através das falas das educandas do PBA (Programa Brasil Alfabetizado), ancoradas em aportes teóricos, lanço o desafio, a mim e a todas e todos que o aceitarem, de lançar um olhar aguçado e perscrutador sobre as manifestações verbais dessas mulheres, perguntando-se: Por que ela se manifestou dessa forma, usando essas palavras? O que significa para essa mulher verbalizar tais sentimentos? Que barreiras podem estar escondidas atrás dessa fala? O que teve de ser superado para que ela chegasse até aqui?

Sem a pretensão de fazer uma devassa na vida particular das educandas, tais indagações são apenas provocações que levam a estabelecer ligações entre o que está expresso através das palavras e aquilo que as sustenta. Ou seja, nenhuma palavra é dita no vácuo, cada uma delas vem carregada do que foi vivido.

Iniciemos com alguns depoimentos:

1 - “...tenho 83 anos (...) coisa que eu nunca esperava que nessa altura eu ia estar estudando, mas graças a Deus eu estou feliz da vida”.

2 – “...tenho 51 anos, não estudei quando jovem e hoje resolvi estudar pra...pra aprender mais um pouco, pra aprender um pouco... pelo menos não vou morrer burra.”

3 – “...eu vou fazer 63 anos (...) Então, a gente se sente feliz estudando, aprendendo alguma coisa, né? (...) Então é uma terapia pra gente, né?”

4 – “...tenho 72 anos e não me arrependo de tá estudando com ela (a alfabetizadora), é muito querida e ensina bem a gente. Eu não sabia nem escrever o nome e agora estou aprendendo bem com ela.”

Primeiramente, uma observação relacionada à faixa etária das educandas, nenhuma delas abaixo dos 50 anos, o que leva a refletir sobre as razões que as mantiveram fora da escola, os motivos que poderiam justificar a não alfabetização. Em depoimentos que não foram gravados era comum ouvir “A gente tinha que trabalhar, estudar era luxo”, “O pai não deixou estudar porque tinha medo que a gente se perdesse”, “O que importava era carpir na roça, tirar leite das vacas, lavar uma roupa bem lavada, aprender a fazer pão, cozinhar”. Assim, por imposição, não por vontade, mantiveram-se distante dos livros. Além disso, pode-se observar que consideravam difícil aprender algo, como se fosse impossível, visto que a utilização da expressão nunca esperava que nessa altura eu ia estar estudando e da palavra burra denotam o pouco valor dado ao que sabem, aos conhecimentos acumulados durante toda a trajetória de vida.

Isso nos leva a refletir sobre as mudanças que o acesso ao mundo das letras pode causar na vida das pessoas. As manifestações de alegria, satisfação e orgulho fluem vertiginosamente, os olhos se acendem, como pode ser percebido no seguinte depoimento: “...estou muito contente, feliz por ter aprendido porque eu não sabia nem fazer meu nome, hoje aprendi e cada dia aprendo mais coisa nova, apesar que eu trabalho na roça, tenho serviço em casa... e estou muito contente por ter aprendido.”. Segundo Antonio Candido (1980), quando nos apropriamos da poderosa força da palavra organizada, nos tornamos mais capazes de organizar nossa mente e sentimentos; e, consequentemente, mais capazes de organizar a visão de mundo que temos.

A propósito da visão de mundo, é importante lembrar que “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (Freire, 1988). Sendo assim, tudo o que as educandas trazem para o espaço de construção do conhecimento é já conhecimento adquirido.

Mas, voltando à apropriação da força da palavra organizada, no fragmento citado percebemos o encantamento de quem começa a dominar a palavra escrita. Quando essa educanda diz “...eu não sabia nem fazer meu nome, hoje aprendi...” além de orgulhar-se por estar apropriando-se de algo que lhe foi negado e que parecia distante, demarca um momento de grande significado: escrever o próprio nome.

O nome enquanto marca de identidade, de individualidade, de constituição. Até então o nome era “dito”, mas agora passa a ser registrado, e por si mesma! O que lhe confere autonomia ou empoderamento, no sentido freireano, o qual o define como a capacidade das pessoas, grupos ou instituições realizarem por si mesmas as mudanças e ações que as levam a evoluir e se fortalecer.

Escrever o nome é demarcar espaço, é poder registrar-se, é afirmar “Eu existo!”. Porém, é muito mais do que juntar letras, é constituir-se como sujeito na relação dialética ser humano x mundo. A apropriação é a marca do sujeito por meio da identificação:

“Eu não sabia nem escrever o nome e agora estou aprendendo bem com ela” (Ela = a alfabetizadora).

“...eu não sabia nem fazer meu nome...nada, e agora já estou aprendendo um pouco”.

“...eu não sabia nem fazer meu nome, hoje aprendi...”

Imprescindível destacar que escrever, por si só, não basta. As mulheres que se inscrevem para freqüentar as turmas do Programa Brasil Alfabetizado (e, creio, de qualquer programa de alfabetização), querem ler, pois como afirma Paulo Freire (1988), o ato de ler e de escrever são indicotomizáveis. Ler no sentido de decifrar, sim, mas de ir muito além e interpretar, perceber criticamente, estabelecer significações.

Cortella (2008), assim se manifesta “A primeira intenção de todo ser vivo é manter-se vivo, mas, para nós não é suficiente a mera sobrevivência apoiada em conhecimento sobre o mundo: é fundamental que a vida valha a pena”. As mulheres que buscam as turmas de alfabetização estão fazendo suas vidas valer a pena! Elas buscam mais do que as letras, buscam estabelecer laços, ter alguém para conversar, querem ser ouvidas:

“ Eu me sinto triste quando vou pro colégio, eu estou triste e aí quando eu chego lá eu fico feliz”.

“Então é uma terapia pra gente, né? É muito gratificante, né?”

“...temos uma professora boa, que gosta de ensinar bem direitinho”.

“Aí, nós passamos o tempo todo o tempo intertida, conversando, trocando idéia, conversando, né, com os colegas...”.

“A nossa professora (nome), além de professora é uma grande amiga... e meus colegas são maravilhosos.”

“Estou muito contente por estar estudando, foi uma oportunidade que a pareceu, estou feliz e tenho a agradecer minha professora, professora (nome), e gosto dos meus colegas, consegui novos amigos e amigas.”

“Eu estou muito contente de estar estudando, estou aprendendo a ler e escrever, estou no colégio da (nome da alfabetizadora), estou muito faceira e vou continuar até o fim.”

Tais manifestações mostram a importância da convivência e da socialização para essas mulheres. Talvez ler e escrever até fique em segundo plano, mas a troca tem para elas um significado muito importante porque é na troca que os seres humanos se constituem.

Durante os encontros de formação das alfabetizadoras (sim, eram todas mulheres), nos momentos de socialização de práticas, dúvidas e sugestões, elas relataram casos atitudes de empoderamento de alfabetizandas como resultados de acesso a informações e debates feitos na turma, como o caso da alfabetizanda que se negou a manter relações sexuais com o marido, contra a vontade dela, após tomar conhecimento da Lei Maria da Penha. Também no embalo dessa lei, outra alfabetizanda ameaçou denunciar o marido se ele continuasse chegando embriagado e fazendo ela sair da cama de madrugada e arrumar comida para ele. Uma terceira percebeu que não era obrigada a dar o seu cartão de aposentada para o filho ir ao banco receber o seu benefício, após a alfabetizadora ter lido e debatido o Estatuto do Idoso em sala de aula.

Poderiam ser enumerados vários relatos que comprovam a relevância de um espaço para falar, e aí entra uma questão essencial: a vida social é também vida política e, portanto, de construção coletiva. Para Freire (1988), “Inicialmente me parece interessante reafirmar que sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador.”. E sendo ato criador também é libertador, pois é na sala de aula que essas mulheres constituem o seu espaço seguro, no qual podem expressar as alegrias, os problemas, as angústias, os sonhos... sem repressão ou vergonha.

Outro fator essencial para a autonomia é a independência financeira. Entre as mulheres que fizeram parte das turmas do Brasil Alfabetizado 2009/2010 75% não tinham sua própria renda. Nessa configuração, a dependência de alguém, geralmente o marido, faz com que se sintam inferiores. Uma publicação no jornal Zero Hora, em 14 de abril de 1999, mostrou dados de uma pesquisa realizada pelo Centro de Microeconomia Aplicada da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas – SP, na qual revela que uma mulher analfabeta pode aumentar sua renda em 16,6% quando aprende a ler e a escrever. A alfabetização muda a vida das mulheres e, consequentemente, das suas famílias e da sociedade.

Mulheres que se alfabetizam dão maior importância aos estudos, fazem questão de que os filhos e as filhas freqüentem a escola, reforçam sua autonomia, participam ativamente da vida na comunidade e passam ver tudo com um novo olhar. Cada mulher alfabetizada é uma conquista, uma vitória sobre a pobreza. A Década das Nações Unidas para Alfabetização - 2003 a 2012- permitiu dar um novo impulso a favor da redução do analfabetismo. As taxas de analfabetismo têm baixado, no entanto, ainda hoje, um em cada seis adultos não sabe ler, nem escrever, enquanto que dois em cada três analfabetos são mulheres.

Portanto, a alfabetização tem papel importante na erradicação da pobreza, uma vez que aumenta as possibilidades de emprego, a promoção da igualdade entre os sexos, a melhoria da saúde familiar, a proteção do ambiente e a promoção da participação democrática.

É essencial termos presente que essas educandas são adultas, maduras, experientes, trabalhadoras ou pretendentes a (re) inserção no mercado de trabalho, trazem os conhecimentos da vida e já fazem uso da língua, antes de dominar a leitura e a escrita. Por isso, o processo de alfabetização não pode ficar restrito aos códigos da língua, mas ser um ato criador.

A concepção de EJA deve valorizar a bagagem cultural que vem com as alunas e o contexto em que estão inseridas, não reforçando a idéia trazida de algumas delas, “pelo menos não vou morrer burra.”; “eu não sabia nada”; “quero aprender alguma coisa útil”.

O processo de alfabetização é, antes de tudo, ato de conscientização a fim de proporcionar o direito de escolha, para que as pessoas possam decidir o que querem: permanecer no caminho em que estão ou trilhar um novo. É necessário distinguir entre oferecer novos referenciais e induzir. Um processo de alfabetização que seja humanístico jamais induz, ele apenas oferece novas possibilidades e deixa que cada pessoa se determine, pois a educação tanto pode ser um instrumento de libertação como de opressão.

A EJA tem o caráter de resolver ou corrigir uma situação de exclusão. Assim, ouvindo os depoimentos das mulheres do Programa Brasil Alfabetizado é perceptível o desejo de mais acesso ao conhecimento e momentos de convívio com outras pessoas que possuem as mesmas perspectivas. Afinal, a luta concreta por liberdade é que dá significação plena à idéia de liberdade, é o que nos torna humanizados. E a humanização é a nossa vocação primeira.

Paulo Freire ao referir-se à nossa vocação ontológica para a humanização nos mostra que somos constantemente chamados ao diálogo, ao processo de ação-reflexão, de (re) leitura do mundo. Ouvir o que as educandas têm para contar é a garantia de vivenciar a práxis libertadora. São histórias que precisam ser faladas, ouvidas, registradas, debatidas e que devem servir para discutir aquilo que personificam, mesmo que de modo inconsciente (racismo, preconceito, discriminação).

A proposta freireana parte do estudo da realidade tendo como elemento fundamental a fala da educanda ou do educando, porque é a partir dela que se problematiza a prática de vida, através de uma metodologia dialógica. Por isso, esse texto teve como fundamento principal o dizer das educandas, afinal, ninguém expressa melhor uma vivência do que quem efetivamente a vivenciou. Nesse contexto, a alfabetizanda e o alfabetizando são desafiados a refletir sobre seu papel na sociedade enquanto aprendem a escrever a palavra sociedade; são desafiados a repensar a sua história.

Para concluir, alfabetização deve ser sinônimo de reflexão, argumentação, criticidade e politização. Assim, proporcionar espaços e oportunidades para quem não teve ou tem pouca voz, é compromisso de quem acredita que é possível melhorar as condições de vida das pessoas. Entretanto, somente aprender a ler e escrever, sem formação crítica e consciente de nada vale, é necessário saber ouvir as educandas e os educandos e proporcionar-lhes momentos de reflexão. Foi o que me esforcei para fazer, durante a tessitura desse texto.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1980.

CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 12 ed. rev. e ampl. – São Paulo: Cortez, 2008.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1988.

_______ Pedagogia da Esperança – Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Notas: Ana Maria Araújo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

OLIVEIRA, Ana Maria de. As camadas populares e os clássicos in Revista Espaço Acadêmico – Ano III – Nº 26 – Julho 2003 – Mensal - ISSN 1519.6186