LUDICIDADE: QUAL O SEU TEMPO E ESPAÇO NAS INSTITUIÇÕES QUE CUIDAM/EDUCAM CRIANÇAS?*

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“Para cada homem existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro desaparece. Para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos.”

(Walter Benjamin)

Muitas imagens e momentos marcam nossas vidas. Familiares, a primeira professora, amigos de infância, músicas, jogos, brinquedos, brincadeiras, bonecas, praças, quintais. Nós brincávamos de: amarelinha, esconde-esconde, pega-pega, bicicleta, peão, iô-iô, carrinho, empinar pipas, bolinhas de gude, corridas, bonecas, de médico, faz-de-conta, desenhar, contar histórias, dançar, cantar... brincávamos com o colega da escola e também com os vizinhos.

As atividades lúdicas mudaram muito desde o começo do século XX nos diferentes países e contextos sociais. Mas o prazer de brincar não mudou. O prazer que envolve essas atividades se contrapõe aos momentos de tensão. É prazeroso e sério ao mesmo tempo. E hoje? Temos espaços para o brincar em nossas casas, com os nossos filhos, nas praças? E em nossas escolas?

A organização espaço-temporal em nossa sociedade tem se modificado cotidianamente. Vivemos uma multiplicidade de tempos: ser, ter, escolher, buscar e uma redução dos espaços para as atividades lúdicas nas instituições que cuidam/educam crianças. Estamos sufocados pelas batidas de Chronos (tempo medido pelo relógio), que são indiferentes à vida. Cronometramos o número de dias letivos, unidades, horas-aula, o tempo de aprender. O tempo da escola está refletido nos calendários escolares, planos de aula; relembrados nos boletins, cadernos, paredes, agendas, bolsas de professores e alunos. Criamos tempo e espaços para trabalhar, estudar, planejar, assistir televisão, cumprir e cobrar as tarefas escolares, mas será que abrimos espaço e tempo para as atividades lúdicas, para o prazer e aprendizado dos jogos e das brincadeiras, da música e dança, do sonho e poesia?

No mundo atual, acompanhamos com freqüência os avanços da tecnologia, da informação e da comunicação, o desenvolvimento das ciências, a ampliação cada vez mais crescente dos recursos que instrumentalizam a razão. A velocidade dessas transformações acabam por impor a todas as esferas da vida mudanças radicais. Neste contexto, para o paradigma dominante da racionalidade científica moderna :

Conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. (SANTOS, 2003, p.27).

Na medida em que se postula esta racionalidade como norma, imprime-se a ditadura do êxito. Para Cunha (2000, p.64): “na fábrica e na escola, o que se busca é eficiência máxima, otimização do tempo e dos recursos despendidos”. Este imperativo busca a armazenagem de conteúdos fazendo com que se instrumentalize cada vez mais o ato de ensinar/aprender nas instituições que cuidam/educam crianças.

A escola é servil a este paradigma quando estabelece as dicotomias: corpo/mente, razão/emoção, hora de estudar/hora de brincar. Seria aprender uma armazenagem acrítica de conteúdos como processo exclusivamente mental? Para o paradigma dominante da racionalidade científica:

O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. (SANTOS, 2003, p.31).

Chronos busca ser hegemônico. Se impõe. Mas que tempo e espaço de aprender são estes? Será que só existe essa configuração? Nesta perspectiva o brincar, o lúdico, acaba sendo visto como perda de tempo. É necessário traçar a configuração de um novo paradigma que anuncie um horizonte de possibilidades. Este paradigma a emergir, segundo Santos (2003, p. 60): “não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)”. Deste modo, a ludicidade poderá estabelecer a articulação deste novo paradigma, constituindo-se um avanço para a educação. O brincar pode ser mola propulsora e desejante do aprender. Para Friedmann (1996):

Temos que ter consciência, ao mesmo tempo, da importância de trazer o jogo de volta para dentro da escola e de utiliza-lo como instrumento curricular, descobrindo nele uma fonte de desenvolvimento e aprendizagem. Tomar consciência desse processo requer, na verdade, mudanças em cada um de nós. Essas mudanças porém, não acontecem de forma automática: são necessárias vivências pessoais para resgatar e incorporar o espírito lúdico em nossas vidas.

Aprendemos que o estudo acerca do papel das atividades lúdicas e dos jogos para o desenvolvimento da criança deve ser analisado a partir de diferentes enfoques:

Sociológico: a influência do contexto social no qual diferentes grupos de crianças brincam; Educacional: a contribuição dos jogos, brincadeiras e brinquedos para a educação; desenvolvimento e/ou aprendizagem da criança; Psicológico: o jogo como meio para compreender melhor o desenvolvimento da psiqué, das emoções, da personalidade dos indivíduos e na clínica utilizado basicamente para a observação das diversas condutas e para a recuperação (ludoterapia); Antropológico: a maneira como o jogo reflete em cada sociedade, os costumes e a história das diferentes culturas; Folclórico: expressão da cultura infantil através das diversas gerações, bem como as tradições e costumes através dos tempos nele refletidos. (FRIEDMANN, 1996)

Nosso ponto de partida para análise será, sobretudo, o do desenvolvimento das atividades lúdicas dentro do contexto educacional e suas implicações na organização do tempo e do espaço. São notórias as pesquisas e estudos de Froebel, Montessori, Piaget, Wallon, Vygotsky, Winnicot, Freud, dentre outros, que comprovam a relevante contribuição das atividades lúdicas para o desenvolvimento infantil, nos seus múltiplos aspectos: cognitivo, afetivo, social e motor, pois elas vão expressar a forma como uma criança reflete, ordena, desorganiza, destrói e reconstrói o mundo à sua maneira.

A escola em seu afã de racionalizar e “controlar” as aprendizagens tem deixado de lado o tempo e o espaço de brincar. A lógica que nos parece ser seguida, é que estudar é coisa séria e que deverá ser sempre uma atividade dirigida, voltada para a assimilação de conteúdos. Como conseqüência, notamos que o brincar é freqüentemente relegado a atividades, brinquedos e jogos que as crianças podem escolher depois de terminarem seu “trabalho”. Com isso, os jogos e brincadeiras ficam restritos ao pátio, ou destinado a preencher “intervalos” de tempo entre aulas.

Segundo Moyles (2004, p. 24) “se achamos tão valioso a atividade lúdica como orientação da prática pedagógica, por que os jogos e brincadeiras ainda não constituem parte da atividade pedagógica?”. Parte da tarefa do professor é proporcionar situações de brincar livre e dirigido, que atendam as necessidades de aprendizagem das crianças. Aqui, também deve residir sua preocupação com o espaço escolar.

A preocupação com a organização do espaço está presente no documento preliminar Padrões de Infra-Estrutura para as Instituições de Educação Infantil e Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2004):

Para relacionar o desenvolvimento da criança com a leitura do ambiente físico escolar, propõe-se pensar o espaço físico destinado à Educação Infantil como motivador e promotor da aventura da descoberta, da criatividade, do desafio, da aprendizagem, da interação criança-criança e criança-adulto, além da formação da responsabilidade social.

Froebel, em 1826, via o valor do brincar já nas oportunidades de experiência sensorial que permitia e era a base do desenvolvimento intelectual. A partir dessa premissa, pesquisadores e educadores já valorizavam o brincar há mais de um século.

Segundo Fornero (apud ZABALZA, 1998, p. 231):

Para a criança, o espaço é o que sente, o que vê, o que faz nele. Portanto, o espaço é sombra e escuridão; é grande, enorme ou, pelo contrário, pequeno; é poder correr ou ter que ficar quieto, é esse lugar onde pode ir olhar, ler, pensar. O espaço é em cima, embaixo, é tocar ou não tocar; é barulho forte, forte demais ou, pelo contrário, silêncio, são tantas cores, todas juntas ao mesmo tempo, ou uma única cor grande ou nenhuma cor...O espaço, então, começa quando abrimos os olhos pela manhã em cada despertar do sono; desde quando, com a luz, retornamos ao espaço.

O espaço pode ser retratado como o ambiente da relação pedagógica, pois é nele que o nosso conviver vai sendo registrado, marcando nosso crescimento, nossas descobertas, dúvidas e inquietações. Através dele, registramos e (re) organizamos a maneira de ver o mundo e as possibilidades de relações que daí pode se estabelecer. Nesta perspectiva Freire (1994, p.97) afirma que “o espaço construído, discutido e apropriado por educadores e educando, conta inúmeras experiências vividas dentro da sala de aula. A linguagem do lugar deve comentar as histórias e as relações estabelecidas ali”. Daí, considerarmos fundamental a significação trazida pelas atividades lúdicas no espaço de educação infantil, pois concretiza a história do grupo, com o brilho das imagens, objetos, cores e sons, podendo catalisar diferentes formas de ver o mundo.

Para Horn (2004, p. 35):

O espaço é entendido sob uma perspectiva definida em diferentes dimensões: a física, a funcional, a temporal e a relacional, legitimando-se como um elemento curricular. A partir deste entendimento, o espaço nunca é neutro. Ele poderá ser estimulante ou limitador de aprendizagens, dependendo das estruturas espaciais dadas e das linguagens que estão sendo representadas.

Mas, cabe ainda questionar: Estes espaços de cuidar/educar crianças, tem sido limitadores ou estimulantes de aprendizagens?

Urge, portanto, repensar o tempo e a organização dos espaços lúdicos destinados às nossas crianças: em casa, nas ruas, nas praças, sobretudo nas escolas. A ludicidade na educação não deve se resumir a jogos, brinquedos e brincadeiras. É mais ampla: contempla várias faces do fazer humano. Nas instituições que cuidam/educam crianças deve haver espaço para as diversas linguagens: musical, poética, corporal, plástica, imaginária, etc. Segundo Horn (2004, p. 37):

Existe um espaço a ser povoado, com cores, com objetos, com distribuição de móveis. Ele deveria ser definido pelo professor e por seus alunos numa construção solidária fundamentada nas preferências das crianças, nos projetos a serem trabalhados, nas relações interpessoais, dentre outros fatores. (...) Por meio da leitura “das paredes e das organizações dos espaços” das salas de aula de instituições de educação infantil, é possível depreender que concepção de criança e de educação o educador tem.

Neste sentido, algumas questões se interpõem: Quanto temos brincado com nossas crianças? Ensinamos ou aprendemos a brincar? E a linguagem? O que temos feito delas em nossas salas de trabalho? Há espaço para a diversidade de dizeres, sabores e saberes das crianças? Há espaço para as cores do arco-irís? E árvores vermelhas? Pode rabisco? E sol com olhos e boca? E boneco sem braço? Pode cantar, correr, movimentar-se? E ouvir histórias? E recitar poesias? E narrar coisas sonhadas, vividas (não apenas no retorno das férias e recesso junino), sofridas? Enfim, quantas linguagens estão presente em nosso grupo? Quantas valorizamos? Cem? Dez? Uma? Nenhuma?

É necessário, pois, olhar, escutar a criança, observar seus movimentos. É urgente ouvir suas perguntas: no choro, no balbucio, no gesto, na palavra, na ação. A escuta se torna hoje o verbo mais importante para se pensar e direcionar a prática educativa. Se não o fizermos, o olhar se perde e vai parar no conteudismo dos exercícios de fixação, nos compromissos da razão, em detrimento da possibilidade de construção de uma educação estética. E a esta tarefa não poderá o educador se furtar.

Contudo, não basta destinar tempo e organizar os espaços colocando uma variedade de jogos e materiais à disposição das crianças sem que o educador tenha consciência do desafio que se impõe a elas. A dimensão espaço-temporal da escola transcende as paredes da sala de aula e são muitos os seus prolongamentos onde as crianças possam dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar saberes; onde haja espaço para as diferenças, para o erro, desejos, emoções, criatividade e autoria.

Resgatar as atividades lúdicas no jogo da vida e na escola significa redescobrir a vida. Como nos adverte Friedmann (1996, p):

Devemos reaprender a brincar! ... com o nosso corpo, o nosso espaço e os nossos objetos, com a imaginação, a criatividade, a inteligência; com a nossa intuição, com as palavras e com o nosso conhecimento, com nós mesmos e com os outros. Assim, estaremos redescobrindo essa linguagem para comunicar-nos e expressar-nos – a linguagem do lúdico.

Portanto, para se viabilizar a perspectiva de uma educação baseada nos princípios da ludicidade é necessário aceitar o desafio e a oportunidade de criação de ambientes de interesse e o trabalho coletivo estabelecido pela relação dialógica com todos aqueles envolvidos com o cuidado e a educação de crianças, entendendo que Chronos não pode ser o definidor de todas as ações humanas, pois já afirmava Heráclito de Éfeso na Grécia antiga: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de criança”.

Referências Bibliográficas

BORNHEIM, Gerd (Org). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1989.

BRASIL. Ministério da Educação. Padrões de infra-estrutura para as instituições de Educação Infantil e Parâmetros de qualidade para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 2004.

CUNHA, M. V. Psicologia da educação. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

FORNERO, L. I. A organização dos espaços na educação infantil. In: ZABALZA, M. A. Qualidade na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998.

FREIRE, Madalena. Dois olhares ao espaço-ação na pré-escola. In: MORAIS, Régis de (Org). Sala de aula: que espaço é este? São Paulo: Papirus, 1994.

FRIEDMANN, Adriana. Brincar: crescer e aprender – o resgate do jogo infantil. São Paulo: Moderna, 1996.

HORN, Maria das Graças Souza. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004.

MOYLES, Janet R. Só brincar? O papel do brincar na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 13. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2003.

Reginaldo Santos Pereira
Enviado por Reginaldo Santos Pereira em 28/08/2013
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