A Concepção de Infância: o que mudou?

Artigo publicado na Revista Educação Pública (Rio de Janeiro - RJ). Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0438.html

A Concepção de Infância: o que mudou?

Silvio Profirio da Silva

O objeto de reflexão deste artigo de opinião são as modificações ocorridas na concepção de infância. Fazemos, aqui, um pequeno apanhado das principais concepções teóricas do que vem a ser infância, recorrendo, para isso, aos pressupostos teóricos trazidos por Dahlberg et al. (2003) e Kramer (2003). Objetivamos, desse modo, contrapor duas posturas antagônicas de conceituações sobre a infância. Uma tradicionalista, que concebia a criança enquanto um ser homogêneo e passivo, que simplesmente reproduzia práticas presentes na sua realidade circundante. Outra contemporânea, que concebe a criança enquanto um sujeito heterogêneo e ativo/ atuante, ou melhor, como um Ator e Construtor Social, como postulam os autores supracitados acima.

Nos dias de hoje, a temática da concepção de infância é objeto de debate de uma gama de pesquisadores provenientes de distintos campos de investigação. Pesquisadores advindos da Pedagogia, da Psicologia e da Sociologia aderem a essa temática, adotando diversos enfoques e perspectivas, como, por exemplo: a) uma perspectiva histórica das concepções de infância e seus efeitos no tratamento dado à criança, ao longo dos anos; b) uma perspectiva documental, mais especificamente, a concepção de infância e seus reflexos nos documentos oficiais e propostas curriculares; c) uma perspectiva educacional, mais precisamente, a concepção de infância e seus reflexos nas práticas pedagógicas, isto é, a forma como os profissionais da educação concebem a infância e como tal noção influi no seu fazer pedagógico. Há, portanto, uma vasta linha temática que predomina nos trabalhos acadêmicos acerca da infância. Como dito antes, neste trabalho, traremos considerações em torno da noção de infância.

Os aportes teóricos trazidos por Dahlberg et al (2003) mostram inicialmente uma concepção de infância ancorada na Centralidade, por intermédio da qual a criança é vista como um ser unificado, estando esta dissociada do campo social. Dito de outro modo, os elos e os vínculos traçados entre a criança e o campo social não influem na sua constituição enquanto sujeito. É desconsiderada, dessa maneira, a forma como os aspectos socioculturais influenciam no desenvolvimento da criança.

Kramer (2003), em seus postulados, faz uma bem sucedida abordagem das noções de infância surgidas ao longo dos anos. Neste trabalho, trazemos duas delas: a Concepção de Infância Homogênea e/ ou A-histórica e a Concepção de Infância Heterogênea e/ ou Histórica. Nesse primeiro momento, colocamos em pauta a concepção de infância ancorada na homogeneidade, isto é, a - histórica. Essa concepção está em consonância com noção de infância pautada na centralidade trazida por Dahlberg et al (2003). Mesmo que as duas tenham nomenclaturas distintas, ambas postulam a igualdade como aspecto que marca todas as crianças. O que erradica, nesse sentido, as distinções e as singularidades entre elas.

Ampliando a discussão acerca da noção de infância, Dahlberg et al (2003) trazem a concepção de criança como Reprodutor de Conhecimento, Identidade e Cultura. Tal concepção parte do pressuposto de que a criança consiste em um ser desprovido de conteúdos, ou seja, “uma tabula rasa”, como salientam os autores. Nesse viés, a criança simplesmente irá receber e, em especial, reproduzir conteúdos, conhecimentos e valores culturais advindos das práticas sociais. A criança, dentro dessa perspectiva, é um ser passivo que vai receber e reproduzir mecanicamente os padrões culturais estabelecidos pela sociedade.

As concepções postas até aqui são de caráter tradicional e/ ou tradicionalista, na medida em que preconizam uma concepção de infância monolítica e universal, não atentando para as implicações dos fatores sociais e culturais para o desenvolvimento da criança [em seus múltiplos e diversificados aspectos]. A perspectiva tradicional reflete-se ainda no fato de tais concepções defenderem a recepção e reprodução daquilo que é ditado pela sociedade.

Nos anos 80, as discussões acadêmicas atinentes à infância são colocadas em pauta, por diversos campos de investigação, proliferando-se de maneira considerável. Consoante Dahlberg et al (2003), essa disseminação de postulados acerca da infância advém de distintos campos de estudos – Filosofia, Pedagogia, Psicologia [destaque para a Psicologia do Desenvolvimento] e Sociologia [destaque para a Sociologia da Infância]. Esses campos de investigação ensejam a produção de novos paradigmas, dentre os quais, destacamos, aqui, uma nova concepção de infância.

Os referenciais teóricos trazidos por Dahlberg et al (2003) mostram também uma concepção de infância pautada na Descentralização. Isso significa dizer que a constituição da criança enquanto sujeito está diretamente atrelada ao âmbito sociocultural. A infância é, diante dessa perspectiva, um construto social. No dizer dos autores, “a Infância, como construção social, é sempre contextualizada em relação ao tempo, ao local e à cultura, variando segundo a classe, o gênero e outras condições socioeconômicas. Por isso, não há uma infância natural nem universal, e nem uma criança natural ou universal, mas muitas infâncias e crianças” (DAHLBERG et al., 2003, p. 71).

Essa concepção descentralizada vai ao encontro da segunda noção de infância postulada por Kramer (2003). Referimo-nos, nesse ponto, à Concepção de Infância Heterogênea e/ ou Histórica. A constituição da criança enquanto sujeito, nesse viés, está intrinsecamente ligada aos múltiplos e diversificados contextos sociais, rompendo, desse modo com a visão monolítica de infância e de criança.

Aprofundando, mais uma vez, o debate acerca da noção de infância, Dahlberg et al (2003) trazem a tona a concepção de criança como Co-construtor de Conhecimento, Identidade e Cultura. A criança é, aqui, tida como um ator social, que age e participa ativamente na construção social do seu conhecimento. Esta, nesse viés, dá sentido e elabora significados às suas experiências socioculturais, em vez de simplesmente reproduzir as práticas já estabelecidas. Nessa perspectiva, a infância consiste em um construto social marcado pela singularidade e pelos elos/ vínculos traçados entre a criança e o seu campo social.

Essas últimas concepções de infância e de criança aqui postas refletem uma perspectiva contemporânea, na medida em que partem do pressuposto de que a criança é ser singular/ único, autônomo e ativo. Essa “guinada” na concepção de infância é algo resultante dos postulados de diversas ciências [leia-se Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Sociologia]. Os paradigmas produzidos por esses campos de estudos são complementares, na medida em que corroboram para a efetivação da atual concepção de infância enquanto construção social - momento este marcado pela singularidade - e da atual concepção de criança enquanto ator social, como propõem Dahlberg et al (2003).

Referências

DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A.. Construindo a Primeira Infância: o que achamos que isto seja? In: DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A.. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2003.

KRAMER, S.. Infância e Sociedade: o conceito de infância. In: KRAMER, S.. A política do pré-escolar escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo Ed. Cortez. 2003.

SILVIO PROFIRIO
Enviado por SILVIO PROFIRIO em 03/01/2015
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