Contornos: nota crítica sobre o futebol.

Durante anos, o título de campeão nacional de 1987 foi alvo de agitos, polêmicas e controvérsias. A justiça, em sentença transitada e julgada, e a CBF garantem ao Sport o título de campeão brasileiro. Mas nas últimas semanas, o presidente da Confederação Nacional de Futebol, Ricardo Teixeira, numa negociata, conferiu ao Flamengo a alcunha de campeão, em conjunto com o Sport. A decisão, vinte e quatro anos depois do ocorrido, não foi fruto de uma releitura sobre o problema, mas faz parte de uma manobra da entidade para ajudar uma emissora de televisão, a Rede Globo, a conquistar os direitos televisivos do campeonato de 2012, pagando menos que sua principal concorrente, a Rede Record. Antes de analisar essas graves variáveis no âmbito cultural – envolvendo evidentemente o discurso da “mídia especializada” –, faz-se necessário entender um pouco o imbróglio de 87.

Segundo as boas pesquisas dos jornalistas, Mauro Beting e Ubiratan Leal, toda a confusão começa em 86, na troca de comando da CBF, sai o empresário Giulite Coutinho e entra o grupo do “pefelê” Nabi Adi Chedid e do ex-presidente da Federação Carioca, Octávio Guimarães. Resultado: o campeonato brasileiro – que já não ia bem das pernas – foi uma bagunça, com a participação de 80 clubes, ficando definido que os 24 primeiros seriam classificados para a primeira divisão do ano que vem. No ano seguinte, a CBF, alegando dificuldades financeiras, anunciou que sem um maior aporte de dinheiro não teria condições de bancar o campeonato, ficando sob responsabilidade dos clubes o custeio com hospedagem e transporte. Cansados com os desmandos da entidade corrupta, e que agora era utilizada para manobras políticas pelo líder do PFL na Câmara, Nabi Adi Chedid, os chamados “clubes grandes” resolveram criar então um novo campeonato, a Copa União, onde os “13 maiores clubes do país” (Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, Corinthians, São Paulo, Santos, Palmeiras, Grêmio, Atlético-MG, Cruzeiro, Internacional e Bahia) jogariam. Os outros clubes obviamente protestaram. De início, a CBF concordou com a ideia dos “grandes clubes”; posteriormente, temendo perder o poder, pretendeu organizar a primeira divisão com 32 clubes. Diante disto tudo, os defensores da Copa União costumam dizer que a criação do Clube dos 13 representou uma revolução institucional contra uma burocracia ineficaz.

Se por um lado às críticas a entidade é correta, a reação a este estado de coisas foi basicamente conservadora e aristocrática. O que dizer de um grupo que, com base na tradição, proclama-se “maiores”, cria um campeonato, inclui nele o trigésimo segundo colocado do ano anterior, Botafogo, e exclui nada menos, nada mais, do que o vice-campeão, Guarani, e o terceiro colocado, América-RJ, e ainda por cima tem a audácia de chamar este campeonato de “primeira divisão nacional”, rebaixando por imposição própria de vontade, clubes bem colocados em anos anteriores, para a “segunda divisão nacional”? Aristocratas, sem dúvida. Esta reação só foi possível por que os órgãos reguladores atravessavam uma grave crise institucional de legitimidade, devido à corrupção e a incompetência. Ilustrativa é a frase do nada confiável, para dizer o mínimo, Eurico Miranda, ao defender o aumento para 20 clubes do campeonato em 88: “Os grandes clubes precisam jogar contra times menores num campeonato para darem uma respirada.”. O “clube aristocrático dos 13”, esta ideia nada democrática, permanece até hoje, agora com 20 filiados, retendo mais dinheiro para os clubes integrantes e deixando a míngua os outros clubes. Quando um de seus integrantes cai para a segunda divisão tem um aporte financeiro muito maior do que os demais da respectiva divisão, por exemplo. Por isto, podemos definir 1987 como uma luta entre a burocracia corrupta e a reação aristocrática.

Assim, a confusão estava formada. Os grandes clubes diziam que seu campeonato particular, a Copa União, era a primeira divisão; a CBF, intitulava-a de módulo verde, e colocaram outros 16 clubes no módulo amarelo, prevendo enfrentamento entre os dois módulos. Os aristocratas não aceitavam o confronto, afinal de contas, o grupo de “senhores portadores da tradição” não podem se submeter à raia miúda; muito menos, a burocracia poderia largar o osso, no caso, a grana. O desfecho da história é conhecido. Graças ao apoio da burocracia e a uma boa argumentação jurídica, dialeticamente por incrível que pareça, o Sport foi declarado campeão pelo Supremo Tribunal Federal em 1999, decisão justa. Tendo em vista que, o Estado já democrático e de direito, delegava ao conselho arbitral a organização dos regulamentos esportivos, e que os clubes do módulo amarelo, em especial, os melhores colocados, como o Guarani, tinha um direito adquirido e democrático de disputarem o título da primeira divisão nacional, sendo excluído por uma imposição violenta de vontade, tendo como base as tradições, e não a disputa democrática.

O que impressiona nesta confusão toda é o conservadorismo da “mídia especializada”, evidentemente centrada no eixo Rio - São Paulo. Com a exceção de alguns jornalistas paulistas – mais por rivalidade do que por consciência – a maior parte desta “grande mídia”, defende – a maioria sem argumentação – o Flamengo como legítimo campeão nacional de 87. Dentro deste contexto, pesa sem dúvida, o machismo reinante do mundo futebolístico, é só constatar que a maioria esmagadora da mídia é composta por homens. Analisarei alguns destes argumentos, quase todos podem ser chamados, dentro de certa perspectiva, de “liberal”, por colocar como destaque a ineficácia e corrupção de uma entidade reguladora, e propor como solução, não uma nova gestão, mais transparente e ética, e sim, a passagem do poder da entidade pública aos clubes de futebol, uma espécie de “privatização” das funções reguladoras, que deveriam ser de uma confederação nacional de futebol.

Em especial, encontraremos esta solução liberal, no jornalista Juca Kfouri, que defende o fortalecimento da liga dos clubes, contra a burocracia corrupta, dirigida por Ricardo Teixeira. Coerentemente, o mesmo jornalista, defende a diminuição ou o fim dos estaduais. Se o jornalista está correto quando aponta a corrupção deslavada da entidade nacional e das federações estaduais, não me parece democrático o argumento que assume como sujeito da oração, os “grandes clubes”, e entende a eficácia a partir disso. Primeiro, por que com o fortalecimento de uma possível liga de clubes, que evidentemente não teria sob seu guarda-chuva todos os clubes deste país continental, haveria uma passagem do poder público para um poder “semi-privado”, onde os grandes clubes seriam mais fortes, ditariam as regras, ganhariam mais destaque, e obviamente, lucrariam mais e seriam melhores geridos. Basicamente, esta foi à mesma argumentação utilizada pelos liberais para defender as privatizações de setores estratégicos para o país, para eliminar a lenta e corrupta burocracia era preciso passar o poder para o grande capital privado. Segundo, por que o Brasil é um país de tamanho continental, só o Estado da Bahia, por exemplo, é maior do que algumas dezenas de alguns países europeus juntos. A diminuição ou extinção dos estaduais privilegiariam os grandes clubes, que lucrariam mais com a ampliação da competição nacional que duraria mais tempo, e melhoraria a qualidade dos jogos, com o aumento do interesse do público; em detrimento, os centros médios e pequenos dificilmente conseguiriam manter seus clubes, tornando a “torcida local” ainda mais moribunda, com a hegemonia, nada democrática, dos grandes centros e seus clubes. Não à toa este quadro é quase uma mímesis da falta de comunicação pública no país. É só pensar na “grande mídia”, que teoricamente são empresas nacionais de comunicação, mas na prática funcionam a partir da lógica dos grandes centros, em especial, do eixo Rio – São Paulo, exportando culturas e sensibilidades no sentido centro-periferia. Gostaria de citar dois exemplos: o primeiro, o programa Jogo Aberto, da rede bandeirantes, que tem duração de uma hora e quinze minutos para todo o país, tem três quartos de seu conteúdo vinculados a clubes do Rio e São Paulo; e o segundo, ainda pior, o programa Brasil Urgente, da mesma rede, vai ao ar para o país todo, no entanto, tem praticamente todo o seu conteúdo vinculado a questões policiais da região metropolitana de São Paulo.

É na intersecção do primeiro com o segundo ponto que nasce uma grande questão: a do futebol como espetáculo. Ou seja, o esporte como arte diante do esporte como um espetáculo, de vultosos negócios evidentemente. E é nessa questão que reside à base dos argumentos que colocam os grandes clubes como sujeitos, na grande mídia: a razão instrumental. A razão do esporte deixou de ser as firulas dos grandes artistas-craques, os passes geniais, as tabelas – “pequenas sociedades” – mágicas, o plano tático que ascende ao mundo das formas iluminadoras; e passou para a gerência e eficácia do clube de massa. Agora, tudo o que se diz é sobre o sucesso e o fracasso do “grande clube”, a vitória ou a derrota do “craque”, o que faria o “grande clube” ter mais dinheiro, quem vendeu melhor seu jogador, o que gerou a “vergonha” da derrota do grande clube para o médio e pequeno, etc. Ou indo mais longe, o esporte deixou de ser uma prática agradável ou uma arte intuitiva e sublimatória, e virou um espetáculo de massas, irracional, onde a imediaticidade do “torcer” solapa a reflexão crítica ou até mesmo a sensibilidade apreciadora da arte.

Destas questões nasce uma segunda leva de argumentos da mídia conservadora: “o Flamengo é campeão por que disputou o campeonato mais difícil, com os melhores e maiores clubes”. De cara, percebe-se que este é o argumento mais irrefletido, e talvez por isso seja o que grudou mais fácil no imaginário popular. Caso os grandes clubes caíssem para a segunda divisão, e considerando que não houvesse “virada de mesa”, então, numa espécie de duplipensar, a segunda divisão viraria primeira? Evidentemente este argumento assume imanentemente seu conservadorismo aristocrático, e mostra pouco respeito à democracia.

Por fim, não é de se estranhar que com o tempo a burocracia se uniria a aristocracia para reter mais lucros. Muito menos é estranha, nossa cínica conformidade com duvidosas atitudes – para dizer o mínimo – às claras da CBF. Afinal de contas, uma entidade pública que defende os interesses de uma rede de televisão é um conflito claro de interesses. Mas o espetáculo da bola não pode parar...

Post-scriptum: Evidentemente seria preciso analisar com mais cuidado e rigor, o esporte na modernidade, desde a profissionalização dos artistas da bola, a atitude sadomasoquista dos torcedores em vibrar e se emocionar por um amor que ele paga - o atleta. Dialeticamente, percebe-se que mesmo na degradação do esporte, como prática artística, pode-se sentir sopros do paraíso.