O QUEIJO SERRA DA ESTRELA (PORTUGAL): da poesia ao labor do fabrico

O Queijo Serra da Estrela: da poesia ao labor do fabrico

Por José Domingos

“Pastora da Serra, da Serra da Estrela, perco-me por ela” (Luís de Camões, in Cantiga (Líricas)

Chamam-lhe “Embaixador”, apelidam-no de “riqueza” outros de “manifestação cultural” e ainda de um legado histórico ancestral talvez estabelecido na Serra da Estrela ou Montes Hermínios Maiores pelos Celtas, povo guerreiro e pastor que habitou os mais altos tectos portugueses.

O Queijo da Serra é, de facto, um verdadeiro cartão-de-visita da Beira Serra onde um dia, diz-se por aqui, Camões se apaixonou por uma pastora que imortalizou nas suas Líricas “Nos seus olhos belos/ tanto amor se atreve, /que abrasa entre a neve/quantos ousam vê-los. /Não solta os cabelos/ Aurora mais bela:/ perco-me por ela”.

Teria sido essa uma das mulheres de tez corada, mãos frias e vontade determinada, que fabricou o Queijo da Serra e o converteu numa tradição secular que assumiu importância única na economia rural-pastoril desta região.

A produção do queijo obedece a técnicas milenares, transmitidas de geração em geração e a “segredos” que os pastos encerram nos Covões e lameiros, campos estes que parecem assim designar-se por ser o pasto do “Lam”, cordeiro em linguagem celta, mas também nos cardos que casam com o leite para o coalhar. Segredos de granito e gesto, de caminhas frias, gélidas algumas, brancas outras, solarengas também, mas sempre árduas das encostas ou nos vales cavados do alto Mondego e dos riachos que o servem na Estrela.

O fabrico o Queijo da Serra obedece a cinco operações: coagulação quando o leite se mistura com o cardo reduzido a pó, a divisão da coalhada, compressão, enxugo e cura.

Como que de um rito se tratasse, o pastor chega com seu rebanho ao cair da noite e, aconchegado este, ordenha as ovelhas levando o leite para casa na “ferrada” ou no cântaro onde a lareira dá um ambiente mais quente, onde as chamas crescem dos troncos carcomidos de um qualquer castanheiro ou carvalho à mistura com giesta e carqueja.

A mulher, qual depositária desses “ segredos” herdados e aprendidos dos avoengos, é dona e senhora então do fabrico do queijo: verte o leite ordenhado na panela ou tacho onde é amornado pelo lume suave. No “coador” de pano branco colocado sobre previamente atado nas asas da panela, é deitado o sal e o cardo (Cynara Cardunculos) em pó e sobre esta mistura derrama-se o leite. No final, o pano é espremido no leite para aproveitar as qualidades e essências da mistura cardo/sal.

Antes, o “ coalho” podia ser extraído das enzimas do estômago de um cabrito jovem.

O leite é então mexido até coalhar por meia hora a três quartos de hora.

Concluída esta fase, sucede-se o “corte da coalhada” que é comprimida com mais ou menos força, conforme se pretenda queijo mais duro ou amanteigado. A coalhada escorre depois no “acincho” onde é deitada aos poucos e onde recebe o tamanho e forma de queijo em cima da “francela” onde o soro é vertido para ser recolhido num tacho e mais tarde usado no fabrico do requeijão ou comigo em “sopas” cozido, adicionada ou não com açúcar, opcionalmente adicionadas de pedaços de broa.

Mãos frias espremem aquela massa numa tarefa que chega a demorar duas horas, sempre obedecendo a uma técnica empírica, apreendida com o tempo, que confere a qualidade ao produto final: o Queijo de qualidade e excelência.

Retirado já o queijo recém fabricado que é envolvido lateralmente por um pano- a “empesga” - o “acincho” está pronto para novo exemplar. Quando o queijo fabricado deixar de soltar soro, é-lhe colocada uma tábua com uma pedra para que configure o aspecto liso das faces, pedra e “empesga” essas que são retiradas algumas horas depois e procede-se à salga. O queijo é então colocado num prato e cerca de 24 horas mais tarde vai para as tábuas da “queijaria” revestidas tradicionalmente por um pano branco que as novas normas sanitárias obrigam agora a que seja de azulejo. Aqui fica a “reimar” para libertar as impurezas e a “curar”.

Um mês passado, o Queijo Serra da Estrela adquiriu um tom amarelado e uma casca ou côdea e está pronto para ser encaminhado para o mercado que tem em Celorico da Beira e Carrapichana, no mesmo concelho, a sua maior expressão.

Cada quilo de queijo absorve cerca de seis litros de leite estreme cru e cada um leva pelo menos três horas a ser fabricado, podendo a queijeira diariamente produzir dois ou três exemplares…de qualidade e saber.

Cada ingrediente tem uma ou mais funções neste processo de fabrico. Assim, se o cardo ou o “coalho” servem para coalhar o leite, o sal contribui para o amadurecimento da côdea e a libertação do excesso de água, além de participar como regulador nos processos fermentativos.

Um elemento é insubstituível neste processo artesanal único de fabrico do Queijo Serra da Estrela: as mãos frias da queijeira.

O Queijo Serra da Estrela é assim um produto de pasta mole, de cor branca ou amarelada, com poucos ou nenhuns olhos.

“Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salta aos olhos” constituem a trilogia da Festa do Queijo da Serra que, anualmente anima as vilas cidades da Serra da Estrela em autênticas romarias de gente, colorido e odores selvagens.

Jose Domingos
Enviado por Jose Domingos em 02/06/2010
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