Parte 3 - LITERATURA E INFÂNCIA: A IMPORTÂNCIA DO AFETO NOS CONTOS DE FADAS.

A narrativa dos contos de fada, por exemplo, se inicia por uma situação estável que será perturbada de alguma forma por forças “estranhas”, gerando o desequilíbrio. Essas forças representam o conflito diante de determinadas mudanças internas e somente a solução dele resultará no retorno à ordem. Esse movimento é representativo do desejo de auto-realização próprio do ser humano, tendo em vista que um dos primeiros passos para que o herói realize seu designo é sair de casa, ou seja, a batalha é travada no exterior (longe da proteção da família e dos amigos) e esse ambiente é, em geral, hostil. Assim como na vida do homem, a realização não se dá rapidamente (parece antes impossível): o herói passa por momentos muito difíceis, pois há forças se opondo o tempo todo a seu destino, mas, em algum momento, após muito esforço, o herói é amparado por forças mágicas que estão além da compreensão e que o ajudam a cumprir sua jornada. Essas forças abstratas que superam as limitações são símbolos da inteligência, da sensibilidade, das paixões, da determinação, da vontade de vencer, saber e conhecer.

Essas narrativas se passam no mundo da magia, da fantasia ou do sonho. Isso ocorre porque, dessa maneira, é possível representar, dentre outras coisas, um mundo ilimitado e que não se prende às precariedades da vida humana. Geralmente, chegam-nos na forma de contos de fada ou contos maravilhosos. Essas duas modalidades diferem quanto à natureza dos acontecimentos, mas ambos tratam da problemática existencial.

Os primeiros representam a intimidade do indivíduo, reforçando valores de bem e mal, feio e belo e representam a realização dos sonhos e ideais. Isso se dá através dos personagens tipo, os quais representam simbolicamente esses pólos: a fada como ser belo e representante do bem e a bruxa como representante do feio e do mal. Essa divisão permite, através de sua dramaticidade, que os valores da própria vida sejam questionados e analisados e que, após essa reflexão, o indivíduo seja conduzido à mensagem pela qual o conto é responsável. A segunda forma se desenvolve sem a presença das fadas e dentro de um cotidiano mágico (animais que falam, gênios etc) e tratam das problemáticas sociais, onde a busca de realização, em geral, tem a ver com conquistas socioeconômicas, bens, riquezas, poder material. O próprio núcleo da aventura segue de acordo com essa natureza material/social/sensória. Os principais representantes dessa “categoria” são de origem oriental e têm como modelo mais completo a narrativa das Mil e uma noites.

Um dos motivos pelos quais os contos de fada nos atraem é porque neles se realiza o nosso desejo profundo de resolver os problemas de maneira mágica ou por sorte. Mas não só por isso as histórias devem prender a atenção das crianças, antes devem ser capazes de entretê-las e despertar sua curiosidade, que lhes permite a entrega e, ainda, para enriquecer sua vida interior, os contos devem estimular a imaginação criadora das crianças, ajudando-as a aclarar suas emoções, reconhecer as dificuldades e lhes apontar as soluções para os conflitos que as perturbam. Dessa maneira, estimulam o amadurecimento e o conhecimento de si mesmas.

A narrativa dessas histórias auxilia a criança no desenvolvimento do seu “eu” independente, pois ela passa a se reconhecer capaz de resolver sozinha os conflitos que surgem em seu consciente e inconsciente. Isso é bastante importante, porque lhe auxilia no fortalecimento de sua vontade e desejo de independência e a ajuda a formar em seu inconsciente sua própria imagem. Como nessa fase as crianças são essencialmente animistas, somente os contos conseguem lhes falar tão intimamente, pois reúnem em si a mesma natureza que compõe o imaginário delas e respondem a suas necessidades psicológicas. Dessa maneira, como Bettelheim ressalta, o conto de fadas

“[...] é orientado para o futuro e guia a criança

– em termos que ela pode entender tanto na

sua mente consciente quanto inconsciente - a

abandonar seus desejos de independência in-

fantil e a conseguir uma existência mais satis-

fatoriamente independente.” (1980, p. 19).

A criança se projeta nessas histórias maravilhosas e, assim, entra em contato com dramas próprios da vida humana, que podem ser seus, agora ou em sua vida futura. Além disso, identificam-se com emoções como tristeza, raiva, medo, através das personagens, e transpõem os seus próprios sentimentos para o mundo do faz-de-conta: seus medos podem se materializar, por exemplo, em um lobo e a superação do medo pode resultar na ridicularizarão ou domesticação desse mesmo lobo. Para Bettelheim, isso ocorre de maneira tão natural porque os contos transmitem à criança a certeza de um final feliz, sendo assim, a criança está segura ao vivenciar o conto. Essas histórias também lhes transmitem a sensação, à diferença dos mitos, de que, por mais inusitadas que sejam as situações que surgem, podem acontecer com qualquer um: qualquer pessoa pode se perder na floresta, por exemplo, e os personagens não são destituídos de humanidade. Esse sentimento de que o herói pode ser qualquer um é transmitido pela ausência de nomes próprios: é uma menina de chapeuzinho vermelho, um reizinho, um polegar.

Arkangellus
Enviado por Arkangellus em 29/12/2010
Código do texto: T2698172
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