A Crônica Brasileira antes e após os anos trinta: quais mudanças de fato aconteceram com esse gênero

A Crônica Brasileira antes e após os anos trinta: quais mudanças de fato aconteceram com esse gênero

Leandro Freitas Menezes - Ufes

Resumo: Neste trabalho será pesquisada a crônica jornalística antes e após os anos trinta, em um período que se restringe entre a “crônica de costumes” e a “crônica moderna, a fim averiguar se a diferença entre as crônicas jornalísticas desses dois períodos comentadas por Melo (2002) são apenas por causa da amplitude do uso desse gênero após os anos trinta ou se existe uma mudanças também na forma de se produzi-lo.

Palavras-chave: Crônicas Jornalísticas, modernismo e pré-modernismo, Lima Barreto

Neste trabalho pretende-se apresentar uma definição mais geral de crônica jornalística e um panorama histórico a esse respeito. Em seguida será feito algumas análises de dois períodos que envolvem a crônica jornalística antes e após a década de trinta compreendendo não muito mais o pré-modernismo, em que será analisada uma crônica de Lima Barreto, e o modernismo, em que serão também analisadas duas crônica de Mário de Andrade e uma de Rubens Braga. Isso se faz necessário, uma vez que Melo (2002) apresenta em seu artigo diferença entre as crônicas jornalísticas desses dois períodos anteriormente comentados. Por tanto, existe a relevância de averiguar se o ponto de vista do autor é apenas por causa da amplitude do uso do gênero ou se ele fala de fato em mudanças estruturais no modo de escrever as crônicas.

De maneira geral, o gênero jornalístico crônica defini-se como sendo um gênero onde se registra relatos históricos e da vida cotidiana de um povo, sendo estes relatos escritos em ordem cronológica e com um toque de subjetividade do autor. A crônica como gênero jornalístico é contemporânea, porém suas bases foram tipicamente históricas, de maneira que era muito usada para relatar a vida dos reis e de civilizações, como exemplo, os livros de crônicas na Bíblia Sagrada (CARDOSO, 2008); outros exemplo de relatos são as literaturas informativas no período das grandes navegações onde os escritores descreviam o cotidiano do grande empreendimento que era o além mar: a estadia abordo das naus, os descobrimentos e as conquistas de novas terras para as coroas, a vida dos nativos, como se pode observar nas cartas de Relação e Colombo e nas carta de Pero Vaz de Caminha. Na visão de Mello (2002) apud Amora (1958) a crônica histórica tem um valor tipicamente artístico, porque os cronistas se preocupavam apenas em relatar os fatos a respeito das conquista e curiosidade sobre a vida dos colonos etc. Ainda nesse mesmo sentido, mas comentando a transição da crônica histórica para a jornalística, Melo (2002) apud Beltrão (1980) diz que ela originou-se com o gênero histórico, todavia, ao evoluir para o gênero jornalístico assumiu um novo sentido ao incluir o elemento narrativo e o comentário e a perda do rigor temporal. Essas novas características permitiram ao cronista efetuar juízos valorativos e explorar os estados psicológicos sobre aquilo ou sobre quem se escreve.

Cardoso (2008) mostra em seu trabalho que anteriormente a crônica o que os jornais publicavam eram notas de rodapés intitulados folhetins, nos quais foram publicados muitos dos clássicos que se leem na atualidade como: os romances Senhora e Guarani de José de Alencar, que atingiram a popularidade. Com o sucesso do folhetim, a autora argumenta o nascimento da crônica com as seguintes palavras: “a crônica nasceu com o intuito de assumir o papel intermediador entre o noticiário das coisas sérias e a descrição dos assuntos leves, cuja finalidade seria o entretenimento e o experimento estético” (CARDOSO, 2008, p. 20).

Mello (2002) defende que a crônica jornalística luso-brasileira se difere da crônica jornalística hispano-americana, porque esta tem em si características informativas enquanto aquela constitui um gênero híbrido próximo do editorial, do artigo e do comentário. É exatamente a crônica luso-brasileira que interessa a esse trabalho.

No Brasil, conforme a definição geral adotada aqui neste trabalho acerca de crônica e, embora vários escritores, que compõe o cânon brasileiro, tenham as editado nos jornais, a crônica só passou a ter a feição de gênero brasileiro tipicamente nacional a partir da década de trinta (MELLO, 2002 apud RONAI, 1971). Assim, antes da geração de 30, os cronistas faziam parte de uma fase chamada de “crônica de costume” em que por meio da observação relatavam fatos usando uma linguagem mais literária; já os cronistas após a geração de 30 faziam parte do período chamado de “crônica moderna” em que este gênero passa a ser mais utilizado e a integrar a significação com a matéria noticiada no jornal. Dessa forma, é com essas novas características que os cronistas conquistam seus leitores, pois o conteúdo delas não relata apenas um fato isolado, mas agora se junta também ao fato, à crítica, revelando nuances que não são possíveis de serem percebidos pelos repórteres, segundo relata Melo (2002).

Dos dois pontos de vistas relatados por Melo, separou-se inicialmente o primeiro, o pré-modernismo. Ao observar a crônica de Lima Barreto “15 de novembro”, nota-se que o autor faz uma ferrenha crítica social de sua época cujo enfoque é a república. Com um toque de subjetividade e opinião Barreto diz que a proclamação república não resolveu os problemas sociais, mas somente promoveu a evolução política. O autor defende seu argumento relatando fatos históricos: a proclamação da república; lei áurea; o embelezamento da cidade do Rio de Janeiro e outros. Vê-se, portanto o olhar fito do autor nos acontecimentos históricos, narrando-os cronologicamente. Percebe-se também a despreocupação com o tempo cronológico, ou seja, em algumas crônicas o autor narra apenas os fatos para que o próprio leitor se situe temporalmente. Isso não é o caso da crônica analisada, mas pode-se citar como exemplo, A lei, As enchentes etc.

Para a outra análise, situada no período modernista, foram escolhidas duas crônicas de Mário de Andrade. Ao analisá-las podem-se perceber não muitas diferenças quanto à forma de escrever e de narrar os fatos em relação com o período anterior, pois as mesmas características, tais como: a subjetividade, a crítica social a época, estão inteiramente presentes. Além disso, algo que se pode notar de semelhante foi a despreocupação com o tempo cronológico. Um exemplo disso é a crônica Flor Nacional em que Mário compara o Brasil à vitória régia, for típica do amazonas.

O que se encontrou ao analisar a crônica de Rubens Braga não se achou nenhuma nuance que não tenha sido percebido nas crônicas de Lima Barreto e Mário de Andrade.

Ao se proceder as análises propostas, verificou-se que Melo (2002) ao citar no seu artigo os dois períodos da crônica jornalística no Brasil, não estava falando de diferenças estruturais no modo de se produzir a crônica, mas as diferenças citadas por estão apenas em uma maior amplitude do uso desse gênero após o modernismo.

Referências

• CARDOSO, Joselina Alves. Crônica Literária no Jornal: História, Estrutura e Funcionamento. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Literatura e Crítica Literária, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2008.

• COELHO, Marcelo. Notícia sobre a crônica. In CASTRO, Gustavo; GALENO, Alex. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.

• GALINDO, Fabiana D. V. A Polifonia nas Crônicas de Lima Barreto. 2007. 177 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística). CAC. da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

• MELO, J. M. de. A crônica. In CASTRO, Gustavo; GALENO, Alex. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.

Anexo A – Crônica de Lima Barreto

15 de novembro

Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora. Veio, entretanto, vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixão do Senhor Ciro de Azevedo pelo estado de miséria em que se acha o grosso da população do antigo Império Austríaco. Eu me comovi com a exposição do doutor Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade. Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar. Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi. Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê-lo. Saí pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Lia-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha família é freguesa. Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade. Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal.

Pois é possível que, para a escolha do chefe de uma nação, o mais importante objeto de discussão seja esse? Voltei melancolicamente para almoçar, em casa, pensando, cá com os meus botões, como devia qualificar perfeitamente a República. Entretanto - eu o sei bem - o 15 de Novembro é uma data gloriosa, nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do país.

Marginália, 26-11-1921

Anexo B – Crônicas de Mário de Andrade

"Estou me lembrando agora de dois passos que guardo na memória deslumbrada. Um deles foi do cantador nordestino, Chico Antônio, (...) O outro foi dum indígena peruano da tribo dos Huitota. Andou na minha frente um estirão pesado... O caminho parecia trilho de gado, caracteristicamente ameríndio e eu não cabia nele. Lá fui, pisando campo verde. O índio na minha frente, não é que dançasse, andava, mas os passos dele tinham uma fluidez quase bailarina e tão pacífica que a morosidade da tarde vinha buscar neles um vento pra se estimular. Andavam rápidos sem certeza de chegar, sem nenhum som, mas completos, pés na terra eram terra, e no ar se faziam ar numa invisibilidade perfeita. Esse índio era feio, negrejante por causa do jenipapo. Os pés dele também, um triângulo chato. Mas estes pelo menos ainda eram bem natureza, naquele corpo de calça e paletó, pedindo que mais pedindo meus soles e seus quebrados prás cachaçadas futuras. Não podendo simpatizar com o civilizado, amei-lhe os pés, que eu também me pretendo entre os amantes da natureza. Quando permito que o passado se lembre de mim, às vezes sinto esses pés huitota andando na minha memória. E à medida que o tempo me afasta deles, vão ficando cada vez mais passos e cada vez mais memória. Isto é: cada vez mais velozes e cada vez mais lindos. É possível até que nem fossem tão maravilhosos assim, mas eles têm a seu favor o serem já agora incontroláveis e a comoção que me deram um dia. Só eu os posso identificar com a minha memória, e só pelo que está neste papel é que os homens podem saber o que foram os passos."

("De-a-pé - III", crônica publicada no Diário Nacional em 22/12/1929. In: Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Duas Cidades/Secretaria de Cultura, 1976, p.173)

"Toda a gente diante da vitória-régia fica atraído, como Saint-Hilaire ou Martius, ante o Brasil. Mas vão pegar a flor pra ver o que sucede! O caule e as sépalas, escondidos na água, espinham dolorosamente. A mão da gente se fere e escorre sangue. O perfume suavíssimo que encantava de longe, de perto dá náusea, é enjoativo como o que. E a flor, envelhecendo depressa, na tarde abre as pétalas centrais e deixa ver no fundo um bandinho nojento de besouros, cor de rio do Brasil, pardavascos, besuntados de pólen. Mistura de mistérios, dualidade interrogativa de coisas sublimes e coisas medonhas, grandeza aparente, dificuldade enorme, o melhor e o pior ao mesmo tempo, calma, tristonha, ofensiva, é impossível a gente ignorar que nação representa essa flor..."

("Flor nacional", crônica publicada no Diário Nacional em 07/01/1930. In: Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Duas Cidades/Secretaria de Cultura, 1976,

"A imagem de Jesus na altura mais grandiosa da capital da República representa incontestavelmente muito do nosso Brasil. A nossa vida histórica dos tempos coloniais está de tal forma presa à religião católica que se pode dizer que nosso destino foi afeiçoado por uma ideologia fradesca. (...) A estátua do Cristo é também a representação da nossa ‘civilização’ atual, importada e por muitas partes falsa pra nós. Neste sentido o monumento é um símbolo trágico. Civilização cristã... Deram o nome dum Deus a uma civilização terrestre cujo desenvolvimento tem sido um continuado afastamento da qüididade crística.(...)

Essa civilização construída por outros povos, com outras necessidades e outros climas, passou pela nossa alfândega, como um aerólito fulgurante. (...) A imagem de Cristo no tope do Corcovado, se representa uma felicidade da nossa tradição, se representa uma das medidas do nosso ser rotulado, representa ainda o aerólito a que nos escravizamos. Que falseamos. E que nos falseia inda mais. A imagem será chamada de Cristo-Redentor, pelo que poderá valer em nossa contemporaneidade. Mas como índice da civilização brasileira, é apenas Cristo-Rei. A imagem será chamada de Cristo-Rei enquanto símbolo duma civilização que nos falseia demais."

("Cristo-Deus", crônica publicada no Diário Nacional em 18/10/1931. In: Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Duas Cidades/Secretaria de Cultura, 1976, p.447 e 448)

Anexo c – Crônica de Rubens Braga

Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos “Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise. João da Silva - Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pelas ruas e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome “de Tal”. A família Silva e a família “de Tal" são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva. João da Silva - Nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho - vermelhinho da silva. Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo. Nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mata, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo. Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política.

Junho, 1935.

(1998, p. 27)