INTERTEXTUALIDADE E UMA AMOSTRA COM QUATRO POETAS PORTUGUESES

Falar em autonomia de um texto é, a rigor, improcedente, uma vez que ele se caracteriza por ser um “momento” que se privilegia entre um início e um final escolhidos. Assim sendo, o texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada: um filme, um romance, um anúncio, uma música.

Entretanto, esses objetos não estão ainda prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores. (...)A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor.

A intertextualidade se dá, pois, tanto na produção como na recepção da grande rede cultural, de que todos participam. Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam com outros, propagandas que se utilizam do discurso artístico, poemas escritos com versos alheios, romances que se apropriam de formas musicais, tudo isso são textos em diálogo com outros textos: INTERTEXTUALIDADE.

'O TEXTO LITERÁRIO É UM PALIMPSESTO. O AUTOR ANTIGO

ESCREVEU UMA 'PRIMEIRA VEZ', DPOIS SUA ESCRITURA FOI APAGADA

POR ALGUM COPISTA QUE RECOBRIU A PÁGINA COM UM NOVO TEXTO,

E ASSIM POR DIANTE. TEXTOS PRIMEIROS INEXISTEM TANTO

QUANTO AS PURAS CÓPIAS; O APAGAR NÃO É NUNCA TÃO ACABADO

QUE NÃO DEIXE VESTÍGIOS, A INVENÇÃO, NUNCA TÃO NOVA QUE NÃO

SE APÓIE SOBRE O JÁ-ESCRITO. " (SCHNEIDER, 1990, p.71)

Questiona-se assim, o plágio, desqualificando-o como roubo. É o mesmo que, teoricamente, faz Michel Schneider (1990) quando discute a questão da autoria:

“Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de atribuições, por que então assinar um texto defendendo essa intertextualidade absoluta? Se o texto moderno, segundo Barthes, é essa ‘CITAÇÃO SEM ASPAS", por que deveria ficar ligado a um nome, uma vez que esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou indicar a origem?” (SCHNEIDER, 1990, p.43)

"Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).

Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição.

Tomás Antônio Gonzaga retoma Camões. Drummond retoma Gonzaga. Adélia Prado retoma Drummond. Eça de Queiroz relê Flaubert, relido também por Machado de Assis.

. Esse diálogo, no entanto, não se dá sempre em harmonia. Se a tradição pode, de certa forma, ser reiterada com as diferentes retomadas que dela se fazem, pode também ser relativizada ou mesmo negada.

Muitos dos romances de José Saramago, por exemplo, procedem a uma revisão crítica das tradições históricas portuguesas em sua relação com os discursos político e religioso. Este é o caso de História do cerco de Lisboa, Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo. Outro escritor português contemporâneo, que relê a história – o período salazarista – despindo-a de seu caráter monumental, é Mário Cláudio em Tocata para dois clarins, por exemplo. Como o próprio título do romance deixa entrever, a voz oficial é fraturada para alojar vozes dissonantes.

Um mesmo escritor pode reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que resulta numa espécie de intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu conhecido texto No Meio do Caminho, para escrever Consideração do Poema:

Uma pedra no meio do caminho

ou apenas um rastro, não importa.

Estes poetas são meus. De todo o orgulho,

de toda a precisão se incorporaram

Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius

sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.

Que Neruda me dê sua gravata

chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski. (ANDRADE, 1978, p. 75)

( Adaptação feita por mim, a partir da leitura de INTERTEXTUALIDADE em E-Dicionário de Termos Literários, da autoria de Carlos Ceia)

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QUATRO POEMAS DE QUATRO POETAS PORTUGUESES:

CONSTRUÇÕES INTERTEXTUALIZADAS

COMIGO ME DESAVIM

Comigo me desavim,

sou posto em todo perigo;

não posso viver comigo

nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,

antes que esta assi crecesse;

agora já fugiria

de mim, se de mim pudesse.

Que meo espero ou que fim

do vão trabalho que sigo,

pois que trago a mim comigo,

tamanho imigo de mim?

FRANCISCO SÁ DE MIRANDA

- Francisco Sá de Miranda, nasceu em 1481 e morreu em 1558. Escreveu poesia clássica, teatro e "trovas" à maneira antiga. Foi o introdutor do Classicismo em Portugal.

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MINHA SENHORA DE MIM

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

recusando o que é desfeito

no interior do meu peito

MARIA TERESA HORTA

Escritora portuguesa, natural de Lisboa. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa, enveredando depois pela carreira jornalística. Dirigiu o ABC Cine-Clube e fez parte do grupo Poesia 61. Colaborou em jornais e revistas (Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Jornal de Letras e Artes, Hidra 1, entre outros) e foi chefe de redacção da revista Mulheres. Feminista, publicou, com Maria Velho da Costa e Isabel Barreno, as Novas Cartas Portuguesas (1971), cujo conteúdo levou as autoras a tribunal.

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"SÁ DE MIRANDA CARNEIRO"

comigo me desavim

eu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo perigo

sou qualquer coisa de intermédio

não posso viver comigo

pilar da ponte de tédio

não posso viver sem mim

que vai de mim para o Outro

ALEXANDRE O'NEILL

Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (Lisboa, 19 de Dezembro de 1924 - Lisboa, 21 de Agosto de 1986), ou simplesmente Alexandre O'Neill, descendente de irlandeses, foi um importante poeta do movimento surrealista. Autodidacta, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o volume de colagens "A Ampola Miraculosa"

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MINHA SENHORA DE QUÊ

dona de quê

se na paisagem onde se projectam

pequenas asas deslumbrantes folhas

nem eu me projectei

se os versos apressados

me nascem sempre urgentes:

trabalhos de permeio refeições

doendo a consciência inusitada

dona de mim nem sou

se sintaxes trocadas

o mais das vezes nem minha intenção

se sentidos diversos ocultados

nem do oculto nascem

(poética do Hades quem mdera!)

Dona de nada senhora nem

de mim: imitações de medo

os meus infernos

ANA LUISA AMARAL

Ana Luisa Amaral é professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

É autora de diversos livros de poesia – Minha Senhora de Quê, Coimbra, Fora do Texto, 1990; Coisas de Partir, Coimbra, Fora do Texto, 1993; Epopéias, Coimbra, Fora do Texto, 1994; E Muitos os Caminhos, Porto, Poetas de Letras, 1995; Às vezes o Paraíso, Lisboa, Quetzal Editores, 1998; Imagens, Campo das Letras, 2000.

VALE A PENA CONHECER :

http://cercarte.blogspot.com/search/label/S%C3%A1%20de%20Miranda

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 08/04/2011
Reeditado em 08/04/2011
Código do texto: T2896530
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