ESPECTROS DOUTRINARIOS

Na madrugada me encontro caminhando de cá pra lá cheio de idéias e contrapontos, buscando uma forma organizada de repassá-las ao papel, mas também para meu próprio contentamento. Não me leria se não houvesse sentido amplo na escrita, não legaria minha forma de pensar, restringindo a sua forma de pensar. Isso seria doutrinação. Não compartilho dessa idéia tampouco poderia utilizá-la, seria como se a propagasse. Nenhuma forma de recado dado sob convergência, tensão, ameaça ou temor pode ser levado a sério como pensamento, mas como imposição doutrinária. Tolher a liberdade de expressão e pensamento através de dogmas doutrinários, resquícios de religiosidade bolorenta e impregnada de tendências, é sem dúvida uma grande forma de tortura. A religião como instituição é uma grande forma de tortura. Não posso conceber a idéia de um emissário cruel e autoritário que invade sem pudor e instala-se como um posseiro manipulando o livre arbítrio alheio.

Os mestres das grandes tragédias as cunharam para exemplificar suas épocas, vidas e trajetórias. Os maiores conseguem passar para o papel sentimentos e lágrimas que chega a encharcá-los, mas nem por isso induzem ao suicídio ou a estertores de loucura. Não se pode ler uma obra como Hamlet, por exemplo, sem afligir-se e perceber que ali há uma profunda experiência contida. Só quem esteve nos bastidores mais fétidos, e inalou o miasma do sentimento humano poderia manter aquela percepção trágica e desenvolvê-la em sua essência sem dogmatizá-la. Recuso-me a retirar desta obra apenas o teor pungente Shakespeariano, seria como embriagar-me com grande quantidade de aguardente em detrimento ao deguste de um pinot.

Também pode ser muito perigosa a prática da livre forma de pensar se não houver a prestimosa companhia de livros e idéias alheias, mesmo que naturalmente seja para se opor a elas. A falta de parâmetros para que exercitemos nosso alvitre pode fazer com que ele se quer seja levado a julgo popular, o que para o autor é de grande valor. Não posso pensar em implantar um método sem que ele seja discutido e testado. Mas também não tenho o direito de implantar nada. No máximo posso levá-lo a júri. Se for bem aceito estarei sem perceber e sem intenção premeditada, dogmatizando, mas com o ego regozijante por ter invadido o livre arbítrio alheio, ou por ter sido inoportuno concedendo-lhes e introduzindo-lhes uma nuance a mais ao cinza de suas ponderações. Sem a aceitação popular irrestrita, talvez eu consiga o meu objetivo legítimo, que seria trazer a tona uma discórdia benéfica, aquela que faz refletir e que se bem defendida e contemporizada, evitando o imediatismo dos fatos, possa verdadeiramente, aí sim, trazer as mesmas nuances às mesmas ponderações de modo sólido e permissível.

Não fazer regras para viver em sociedade seria um grande erro, infligi-las sobriamente é o grande desafio. Não posso aceitar o ditame arrochado que me é imposto por toda uma horda de caquéticos viciados ao poder. Estaria adestrado.

“Toda a ação tem uma reação”, essa é uma máxima não contextualizada já que a inércia produz reações adversas ainda mais cortantes. Se inerte aceitar o pão endurecido, jogo por terra minha capacidade de levantar-me e ir buscá-lo na origem ou limito-me a não imaginar ser capaz de lavorar o trigo.

Anderson Du Valle
Enviado por Anderson Du Valle em 25/04/2011
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