MEU TERAPEUTA, O ESPELHO.

Agora eu posso retirar as amarras da sanidade e do direcionamento doutrinário que a vida me impôs e navegar por águas mais tranqüilas por que a consciência da relatividade de tudo que me rodeia, me dá essa sensação de segurança. Nada do que eu diga ou faça pode ser imputada a mim para sempre se a própria personalidade é relativa. O entrave nesse novo modo de pensar é o fato de que, quando propalo uma idéia, automaticamente, passo a ter seguidores e opositores, com a relatividade fazendo parte integrante de minhas ações, incorro no risco de passar a me opor às minhas próprias idéias e ter que debater a isso, além da responsabilidade de criar em um grupo uma doutrina não autorizada, mesmo que fosse, seria doutrina daí iria por água a baixo toda minha teoria. Com alguns ajustes, ainda acho que vale a pena tentar dessa forma.

É como achar certo nem procurar, ou procurar nem achar. É buscar motivos para odiar a falta de amor. É mentir verdadeiramente ao afagar o medo. É contradizer a sensatez, abraçando quem fere. Receber o que nem me foi dado e doar o que ainda não tenho. Repudiar conluios e pactos de moralidade que não estarão de pé até a próxima virada do poder. Desestabilizar as bases sólidas da fraqueza, ratificando apoio ao tênue caráter dos fortes. Já errei muito ao promover embusteiros a sábios, aproveitadores a irmãos, paixões libertinas a amores eternos. Como todo mundo, eu já julguei e fui julgado, condenei cordeiros a banquetes vorazes, aplaquei sorrisos, caminhei na penumbra e imergi nas águas da incoerência. Não é o momento de contrição, não quero para mim perdão prévio para atos que ainda nem pratiquei e que talvez os faça, quero sim tempo, espaço e discernimento necessários para merecê-lo.

Essa forma de terapia que a escrita me traz é de suma importância para que arranque nessa direção, é como se meu terapeuta se parecesse muito comigo e me chegasse a dizer coisas que eu sei, mas não ousaria me dizer em voz alta. Minha escrita é introspectiva, embora ache que deveria me expandir um pouco a quem se aproxima. Não escrevo para que me leiam, procuro exercitar minha condição de fluência para me convencer que meu ser inseparável, é mais inteligente que eu e é capaz de navegar por minha insanidade arrancando dela toda a lucidez que eu preciso para viver.

É bem interessante quando se está de frente consigo mesmo, é um exercício fantástico onde não se pode dissimular. Preterir uma posição em benefício de um discurso político seria um grande erro. Quebraria o encanto de se conversar com o espelho. Só nessa posição eu posso julgar, condenar, aconselhar, descobrir novos rumos, sem afagos ao ego ou falsa modéstia. Reconheço meus desvios de conduta, assim como meus méritos e acertos na mesma proporção, a única diferença que para o mérito não cabe retratação.

Meus eus são distintos, não antagônicos, mas distintos. O bom disso é que consigo uma discussão saudável, de bom nível, sobretudo quando não encontro dentre meu circulo um interlocutor que faça eco ou contraponha-se às minhas disposições.

O bar é uma fonte inesgotável de inspiração filosófica, o estado etílico me faz ouvir e proferir pérolas do pensamento livre, tantas que por vezes lamento que o mundo não seja mais ébrio. Perdem-se após o fulgor. Só me resta a mim, para sustentar e discordar da minha própria leitura da vida de ontem, que certamente já sofreu ajustes, alguns bem profundos. Um de mim defende aspectos políticos entrincheirado no perigo da convicção, o outro já não se prende mais aos grupos e sabiamente analisa o indivíduo. É importante saber em que direção o indivíduo caminha afastando-se do grupo, ou até onde sua presença é ruinosa para o grupo ou até se o grupo o merece. É importante identificar se a perfídia está no individuo que se desloca livremente de acordo com seus conceitos ou no grupo que o enclausurou nos conceitos coletivos. Um de mim, embora sob forte influência do outro, a muito abandonou o pensamento coletivo, por não concordar com a unanimidade, já basta o carma generalizado, mas ainda valoriza algumas tendências e acaba por estereotipar preconizado por um julgamento instantâneo. O outro de mim sabe que não há mais espaços para “islamismo”, “cristianismo”, “protestantismo”, “marxismo”, “radicalismo”. Sabe que “ismos” são démodé e segue suavemente volitando por sobre os preconceitos e conceitos póstumos. Talvez admita em comum acordo algum botafoguismo.

Anderson Du Valle
Enviado por Anderson Du Valle em 01/05/2011
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