VIOLÊNCIA, MORTE E RISO NA CONTÍSTICA DE BERNARDO ÉLIS

Como pode uma narrativa onde reina a violência e a morte, operadas por refinada crueldade, pretender o riso? Seria intenção do autor apreender o leitor como uma espécie de homem nietzscheano, aquele ser capaz de rir de todas as tragédias da cena e da vida (NIETZSCHE, 2000, p. 45), condição que, segundo o filósofo, seria possível apenas àqueles que escalam o “elevado monte”, a ponto de se tornarem valorosos e zombeteiros? São estas as dúvidas que pretendemos esclarecer, ou piorá-las ainda mais, no confronto com as leituras de Bernardo Élis.

Bernardo Élis, como sujeito inserido numa determinada sociedade, desempenha o seu papel social (CÂNDIDO, 2002, p. 74) e faz, portanto, segundo o próprio autor, uma literatura compromissada em meter o dedo numa cultura regionalizada. Seu ofício é o de recriar um universo tendo por base a alienação humana e a ideologia, sem, entretanto, se submeter aos subjetivismos metafísicos nem a influências mágico-religiosas (ÉLIS, 2000, p. 100). Seus contos fixam o homem num universo absolutamente marginal e distante, inserido em situações de violência e de morte. Todavia, muito embora as cenas sejam trágicas, estas não se limitam no domínio da tragédia. As situações dramáticas misturam assuntos profundamente trágicos a representações imaginárias de situações elevadamente cômicas.

A ideia de não se deter unicamente nas imagens depuradas de um gênero específico e, mais ainda, por compor narradores irônicos, capazes de misturar tensão trágica com elementos do riso, parece-nos ser o que caracteriza o prosador, fazendo com que a denúncia de uma determinada realidade, ou seja, a realidade do homem que habita a geografia sertaneja, não atinja o caráter panfletário. É a fruição da arte sobredeterminando o utilitário do texto e se constituindo, portanto, como uma modalização textual da narrativa bernardiana. Desta forma, o autor parece concordar com os princípios de Montaigne para quem a literatura deveria ser antes de tudo divertida, alegre e recreativa (BAKHTIN, 1999, p. 57).

A violência e a morte, muito recorrentes nas narrativas bernardoelisianas, em alguns contos decorrem de estarem os personagens, quase sempre, inseridos em situação de monotonia humana ou social. Ermos e Gerais (1944) começa com a vida dos “dos Anjos” que há 80 anos habitavam uma barranca do Corumbá, na foz do Capivari. Metade desse tempo era de promessas de se mudarem da região.

Monocórdio também é a tonalidade que o narrador imprime em “Um duelo que ninguém viu”. Através da adjetivação e do emprego sistemático da pausa, o narrador recria uma paisagem monótona, terrivelmente triste.

“O largo deserto. Só da loja de seu Dominguinho vinha um zunzunado de conversa, de risos. Na outra rua tocavam piano. Nonotonamente. Havia, muito longe, no outro mundo, uma voz aboiando gado. Devia ser na chácara da outra banda do rio; tão bom, tão calmo”. (ÉLIS, 1987, p. 12)

Mas os traços de monotonia não estão limitados à paisagem. Ao contrário, aparecem também no próprio cel., que, em seu exercício mnemônico, reclama a morte de Moisés, um companheiro de tropa. O texto revela um mundo sem expectativas cujo reflexo é a expressão “– Êta chão parado!”, que mais parece um suspiro de prolongada interjeição.

O conto narra o duelo entre os companheiros de tropa Angelino e Moisés. O embate entre eles, muito mais do que marcar a brutalidade do homem sertanejo, revela a tentativa extremada do sujeito em romper com o fastio de um ambiente onde nada de novo acontecia. Prova disto é um duelo que brota sem discussão, nem rivalidades.

Moisés mais o Angelino, uma vez, vinha de Goiás (velha capital), aonde foram levar carga. Tinham deixado Itaberaí e o sol já estava meio baixo. Angelino tirou uma garrucha e meteu fogo num tamanduá, assim na beirinha da estrada. O meleta morreu no baque. Moisés cuspiu de esguicho, estalou o piraí no ermo pasmado da tarde, e não disse nem arroz, numa indiferença humilhante.

– Cum essa bicha eu infrento até o cão, Moisés.

Como baiano dos bons, Moisés zombou: – Isso pra mim num tem serventia. Eu gosto de vê mas é o ferro veio, – e cuspiu novamente de esguicho.

– Bamo vê intãoce, baiano, quar que vale mais: sua pernambucana ou minha tronchada.

– Bamo, uai! É só ocê segurá o ponto. Se ocê num me matá no baque do catulé, eu te pico ocê nessa neguinha – e desembainhou uma baita faca aparelhada, de dois palmos de lâmina. (ibidem, p. 14)

Em “A mulher que comeu o amante”, novamente nos deparamos com as personagens vivendo na sua mais crua e inóspita condição de vida. Desta vez é o velho Januário que, com Camélia, habita às margens de um afluente do Santa Tereza onde vivia no limite da caça e da “rocinha” cultivada precariamente. Incapaz de dar a Camélia uma vida renovada, Januário oferece à amada uma sucessão de dias monótonos. Movida pelo desejo de romper com a monotonia, Camélia arquiteta a morte do amante e o executa com a ajuda do primo (Izé da Catirina), ex-namorado e atual pretendente.

No conto “A crueldade benéfica de Tambiú”, muito embora recomponha um espaço decadente, uma cidade em estágio terminal, por isso marcada pela sucessão de dias tristes e fatigantes, a violência praticada por Tambiú é a tônica para a quebra da monotonia. Só que desta vez a ênfase não recai sobre o espaço, mas, sim, sobre o personagem Nequito, um tipo preguiçoso, que curtia longos dias da mais profunda pasmaceira.

Mas a violência e a morte como produto de uma monotonia espacial e humana, da angústia do homem que se vê desprotegido, abandonado de todo, infeliz na sua ignorância e submissão, não são os únicos modelos a comporem as tramas dos contos de Bernardo Élis. Algumas histórias abordam a brutalidade como resultante da posse do outro, como fruto da idéia fixa, da frustração e da busca pelo prazer carnal. Neste caso, as personagens são descritas como inconseqüentes e, cheias de desejos, capazes de levar o sadismo ao seu mais elevado grau. As ações deixam de ser, portanto, reflexos restritos de um espaço de miséria que descamba em violência gratuita, passando a incorporar situações meramente humanas, ocasião em que a ação dramática impõe-se reflexiva sobre o próprio homem.

É o caso de uma Camélia (A mulher que comeu o amante), em quem se misturam a vontade de quebra da monotonia com os desejos nutridos por Izé da Catirina. É também o caso de Benício (Um assassinato por tabela) que, para manter a posse da mulher obriga esta a assassinar o amante Ramiro. E de Anízio (O caso inexplicável da orelha de Lolô), personagem sádica capaz de torturar Branca até à morte por esta se recusar a corresponder ao seu sentimento doentio. E, por fim, de um Pai Norato (Pai Norato), personagem que excede por sua crueldade – Este mata filho e esposo da mulher desejada. – nascida do propósito de obter os prazeres carnais contraídos pela esposa daquele que era, inclusive, seu afilhado. A diferença deste conto com os demais é o sentimento de punição, inexistente nas outras narrativas, mas que no conto “Pai Norato” se insinua, muito embora seja punição da ordem do mistério, do absurdo, do não revelado.

Mas se a leitura dos contos de Bernardo Élis espanta pela barbárie de um universo marginal, distante, fim de mundo (OLIVEIRA apud HOHLFELDT, 1981, p. 87), por outro lado, é também a leitura de certo humor. Um recurso estilístico do autor que, escrevendo tragédia em tom chistoso (OLIVAL, 1976, p. 48), constitui, portanto, um modalizador composicional. A intenção não é certamente a de eliminar da obra o seu peso trágico, mas a tentativa de levar o leitor a refletir por via do riso, seguindo a tradição de certa filosofia que o vê como uma forma de apreender as verdades inatingíveis por via do sério. Assim, o autor recupera para a obra o seu caráter ficcional e lúdico, numa sobreposição aos aspectos práticos da denúncia social.

O autor se serve das variadas formas historicamente constituídas de manifestação do riso. O propósito parece ser o de atingir o impensável, numa mistura de tensão dramática e humor. Podemos notar particularidades risíveis, por exemplo, num Quelemente, de “Nhola dos Anjos e a cheia de Corumbá”. No desespero de salvar-se de um afogamento, o filho é capaz de se agarrar aos buritis da jangada improvisada e aplicar dois coices na cara da mãe, quando esta se agarrava à embarcação para também se salvar. Não bastasse o signo coice ser a expressão caricatural da figura de Quelemente convertida em animal, temos ainda o desespero das personagens na luta contra a morte iminente. Assim como é de natureza trágica a relação do homem com a morte, espernear contra ela pode muito facilmente descambar para o riso. Dois outros fatores que contribuem para o riso no texto são a caracterização de certo desvio humano (BERGSON, 1983) e a presença na ação de uma situação dissonante. É dissonante, por exemplo, escoicear a mãe para salvar-se de um naufrágio e, logo em seguida, cair de joelhos e descobrir que o rio era raso. A cena fica cômica porque se estabelece ali o inesperado, a surpresa, a frustração da expectativa e a subtaneidade que aparecem freqüentemente ligados ao advento do riso. O riso, que segundo Kant (apud ALBERTI, 1999, p. 162), decorre da transformação súbita de uma expectativa transformada em nada, constitui-se, então, como um produto da frustração do personagem que tem diante de si a certeza da nulidade de seu ato. O tom de violência gratuita que o conto desenvolve muito facilmente leva o leitor a momentos de irrisão. A cena torna-se ainda mais risível a partir do momento que percebemos um Quelemente desesperado, berrando a procura da mãe, enquanto grotesca e ironicamente se justificava: “– Mãe, ô mãe! eu num sabia que era raso”. Embora o riso nos pareça inevitável, no final, o tom sério, visto no início do texto, é restabelecido. A seriedade é recuperada com a morte de Quelemente, pois este vai dar sua vida na fé de profunda indignação ao seu ato gratuito (GARCIA, 1997, p. 97).

Em “A mulher que comeu o amante” não é a comicidade das ações das personagens que vão propiciar ao leitor o elemento chistoso. Este vai decorrer do caráter expressivo do discurso do narrador e aparecerá de forma mais acentuada na descrição da cena final do conto, ocasião em que Camélia, acompanhada de Izé, come as piranhas pescadas no poço onde há pouco afogaram o velho Januário.

“– A mó que tão inté sargada, Izé!”

É nesse trecho, a partir do tom sádico que Camélia imprime ao seu comentário, no contraste com a reação subitânea de Izé, que vamos conferir a existência do riso. Mas nossa percepção não depende unicamente da cena. Necessitamos, pois, do auxílio do narrador, afinal, é este quem nos possibilitará conhecer a reação de Izé diante do comentário de Camélia:

“O primo sentiu aquele calafrio e riu amarelo, só com o beiço de cima. Ficou banzando: – e se daí a alguns dias a prima resolvesse comer piranha salgada novamente, quem será que ia pro poço?”

Diferente é o conto “A crueldade benéfica de Tambiú”. Este, por sua vez, mistura comicidade das ações com o humor discursivo do narrador. O caráter irônico aparece de imediato no título da narrativa. Na busca provável por uma reação risível, o narrador revela-nos uma paisagem composta de personagens que descambam para o caricatural. Nequito, que vivia da difícil profissão de não fazer nada [...], era vesgo, magro, de cara chupada e de um moreno encardido de papel chamuscado. Tambiú, era o contrário, um outro modelo caricatural: soldado bagunceiro que se compõe de farda, botões, perneiras, garrucha, faca, chanfalho, alfinete. A indumentária conferia-lhe a um só tempo um aspecto dom juanesco e bélico. A comicidade está presente, portanto, no contraste, na dissonância, entre as duas figuras: na impotente e miserável representação de Nequito contrapondo-se a um sujeito de virilidade que se pretendia exacerbada. A caracterização torna-se cômica porque, segundo Bérgson, “é cômica qualquer manifestação do aspecto físico da personalidade, quando o problema diz respeito a seu aspecto espiritual” (apud PROPP, 1992, p. 45). Conforme entendemos, o aspecto físico que o narrador nos oferece textualmente, traduz a condição espiritual de cada um dos personagens. A figura de Nequito é meio deformada e por isso suscita o riso. Tambiú, por sua vez, é risível pelo exagero de penduricalhos, que faz do soldado um lendário jagunço nordestino.

O riso na trama tem sua existência garantida também por recursos lingüísticos. O resgate das dicções dos falantes sertanejos é uma forma de estabelecer o humor no texto literário, pois mostra uma diversidade lingüística ao mesmo tempo familiar e estranha ao leitor. É um jogo complexo das fronteiras móveis, que constituem, atravessando-as esses “falares”, [revelando] práticas linguageiras socialmente diversificadas e contraditórias, inscritas historicamente no interior de uma mesma língua (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 30), causando no leitor um certo prazer diante da diversidade, que é algo indispensável ao postulado do estilo humorístico.

Outra maneira de se estabelecer o riso no texto é o caráter de ausência de sentido, nonsense, que decorre de algumas cenas. A passagem “Matou assim Tambiú, facínora em pleno exercício de suas funções, e em ótimo estado de saúde” é risível pela ironia da voz narrativa, pois de fato é risível morrer em ótimo estado de saúde. Mais risível, porém, é constatar que depois de dar muitas facadas em Tambiú, o barqueiro sai do rio e reclama muito pesaroso: “– Êta disgrama! Eu num podia se moia. To numa catarreira escomungada!”. Diante disto somos tomados de chofre pela impossibilidade de pensar o valor da vida humana, principalmente a partir do trecho “– Tadinho dos peixe! Eles faz um lote de dia que num come nem mosquito...”.

A presença do riso por via da ironia do personagem vai se repetir também na narrativa “Um assassinato por tabela”. A consumação da vida de Ramiro pelas mãos da amante é acompanhada da fala do marido: “– Coitadinho do Ramiro, Fulô [...] Eu num tinha corage de sangrá um cristão desse jeito. Deus me livre”. Mas as situações de riso não se limitam a ironia. O conto é elaborado com vistas a atender a dois propósitos: promover tensão a partir de cenas dramáticas, no tocante à gravidade das ações das personagens, mas também possibilitar a circunstância risível pelo contraste das cenas com o discurso humorístico do narrador. Apesar do tom sério do texto, muito dificilmente o leitor escapará da reação chistosa, principalmente ao se deparar com as fracassadas investidas de Ramiro e com a evocação de imagens para recompor o negaceio encapetado de Benício:

“O vulto grandão do cantor inclinou-se perto da cama, mas Benício feito um gato, num pulo ágil, meteu-lhe a mão de pilão no alto do piolho”.

Mas o riso e o cômico, que são literalmente indispensáveis para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade plena, não são concebidos apenas na relação texto-leitor. Eles também estão presentes nas personagens e constituem-se num movimento positivo por seu sentido enigmático e infinito capaz de colocar em xeque as exclusões efetuadas pela razão (RITTER, apud ALBERTI, 1999, p. 12). Um exemplo desse riso está no conto “O menino que morreu afogado”, que encena o espetáculo da morte. O texto revela a certeza da passagem do ser ao não-ser, cuja reação de espanto e silêncio é quebrada com o comentário do delegado “– Quem morreu, descansou. Vamos cuidar dos vivos”. A impossibilidade de se pensar o advento da morte é que mantém o nada na existência. Assim, a situação é trágica e a fala do personagem constitui-se numa verdade para a qual não tem interlocutor, pois se situa no campo do indizível. E, como não se pode compreender a destruição da matéria pelo simples exercício da razão, o homem escapa por via do riso e atribui significado à morte. Por isso, “o povo riu, porque a presença incômoda da morte rondava friamente a criança arroxeada”. O riso das personagens é uma forma de quebrar as tensões decorrentes da experiência da morte presenciada no outro, uma maneira de o homem vencer, ainda que momentaneamente, o invencível. O riso, conforme nos apresenta o narrador, exprime uma relação contraditória e polissêmica entre o sério e o não-sério, entre o sentido e a ausência de sentido. É a impossibilidade de resposta, situação da qual o homem só consegue escapar por via do gesto risível, pois, segundo Plessner (ibidem, p. 29) quando a razão e o entendimento não conseguem responder, é o corpo que assume a tarefa de expressar a impossibilidade de resposta.

O riso das aparências que é, muitas vezes, um riso castigador e vingativo aparece no conto “Noite de São João” e marca a vitória de seu Jeremias sobre Anica por esta não lhe ter correspondido o amor nutrido por ele há 30 anos. Anica agora, 30 anos depois, era uma figura grotescamente caricatural, tristemente transformada, “com o rosto cheio de barba, corado de um calor de fogo”. A velha dormia sentada em volta da fogueira de São João. “A boca estava aberta e a dentadura, que se desprendera, emprestava-lhe ao semblante um ar ameaçador de cachorro rosnando”. Diante daquela imagem, no contraste com o que fora antes, “não pode reprimir um sorriso amargo, cruel, seco, por onde vasava toda a sua desilusão”. O riso vingativo da personagem assemelha-se ao castigo “útil” que a sociedade usa para os seres inferiores e corrompidos (BAKHTIN, 1999, p. 58).

A comicidade das aparências que garante o estabelecimento do riso na contística de Bernardo Élis, independente de se tratar de conteúdo trágico, ocorre quando o caráter de uma personagem foge aos padrões socialmente habituais, ou seja, quando percebemos nela (personagem) a ausência de congruência, seja da sua natureza plástica ou de suas ações. Rimos, por exemplo, segundo Bergson (1983), de deformações fisionômicas ou corporais porque elas são rígidas, parecem mecânicas e não têm nada a ver com a alma e a personalidade. Rimos, pela mesma forma, de certos atributos que nivelam pessoas a coisas ou animais. Uma passagem do conto “A enxada”, poderá ser bastante significativa para a compreensão do nosso argumento. Piano, quando chega à casa de seu Joaquim Faleiro para solicitar o empréstimo da enxada curtia um jejum do dia anterior. Enquanto não chega seu Joaquim Faleiro, que se encontrava na roça, Piano ajuda Dona Alice no preparo de um capado e esta o convida para almoçar, mas ele recusa. Queria que o favor fosse pago com o empréstimo da ferramenta. Até aqui, o homem é o homem, com todos os seus cuidados e preceitos. Mas tão logo Piano sente o cheiro da comida, transforma-se caricaturalmente, pois “com o cheiro do decomer seu estômago roncava e ele salivava pelos cantos da casa”. Neste trecho, o incongruente está neste misto de bicho e gente, na quase incontrolável vontade e recusa de Piano. Num capítulo que trata justamente do homem com aparência de animal, Propp (1992, p. 66 - 67), argumenta que a similitude com animais visa lembrar certas qualidades negativas do homem. Assim, descrever situações de uma pessoa com o aspecto de um cão, no qual se converte a figura de Piano e de Anica é indicar as qualidades negativas dos sujeitos e reduzi-los na escala biológica. A aproximação de Piano com a figura do animal pode marcar a ausência do autor em relação a Piano, mas abre espaço para a simpatia do leitor que poderá, assim, promover a redenção do personagem.

Assim, encerramos, portanto, a nossa reflexão acerca das peculiaridades do texto de Bernardo Élis. E, neste estudo, concluímos que sua narrativa pauta pelo equilíbrio entre denúncia social e valores estéticos da arte. Como denúncia social, Bernardo tem por inspiração a realidade nua e crua da existência do homem perdido num espaço em que o novo não acontece e onde nada se modifica. É homem largado nesse mundão dos gerais movido pela insatisfação e pelos desejos que o envolvem.

Mas é o caráter estético, que determina sua produção literária e elimina o denuncismo gratuito, a ponto de garantir a qualidade lúdica do texto. Para isso, o autor preza pela agudeza de espírito, o que lhe possibilita compor narrativas com extrema maestria, recuperando as dicções miúdas das cenas linguageiras locais, a partir de um manejo lingüístico de profunda fidelidade com o estrato oral. Talento de quem narra o absurdo, o violento, sem nos impor a vontade de abandonar a leitura. Afinal, como nos diz Nietzsche, a vida é uma carga pesada, mas diante dela não nos devemos mostrar aflitos (idem, p. 46) e por isso é necessário ver em meio a torpezas condições de rir. É isto que nos possibilita Bernardo Élis, ao elaborar, da denúncia de cunho realista, uma história divertida, recheada de ironia, de elementos risíveis e, portanto, de humor. É esta profundidade reflexiva que eleva os textos do imortal goiano à condição de serem dignos de muitos estudos.

REFERÊNCIAS

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BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

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CAMPOS, Gedeon Pereira. Risibilidade na contística de Bernardo Élis. Dissertação de Mestrado. Goiânia: UFG, 2008.

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