A LINEARIDADE TEMPORAL PARTIDA EM LEITE DERRAMADO – A ANACRONIA E A MENTE EMBARALHADA DO NARRADOR

Resumo: Leite Derramado, romance do escritor carioca Chico Buarque, relata a história de um ancião que, prestes a falecer, e internado num hospital público, narra a trajetória de sua vida e de sua tradicional família, trajetória esta com ascendências e decadências sociais e econômicas. Por ser idoso e estar mal de saúde, a personagem narra em ordem cronológica não linear, com presença constante de analepses, evocação de momentos anteriores, e prolespes, evocação de momentos posteriores. O romance é estruturado em tempo psicológico e o narrador recorre, constantemente, aos recursos temporais, o que faz com que o leitor, ao ler o romance, tenha a sensação de como se estivesse assistindo a um filme. E é essa quebra da linearidade temporal que iremos analisar neste artigo.

Palavras-chave: Não-linearidade; Tempo; Modernidade.

Abstract: Leite Derramado , a novel of carioca writer Chico Buarque, tells the story of an old man who, about to die, and admitted to a public hospital, which charts the trajectory of his life and his traditional family history and ancestry with this social and economic decadence. Being old and poor health, the character narrates in chronological order non-linear, with constant presence of “analepses”, evocation of times past and “prolepses”, evocation of times future. The novel is divided into psychological time and the narrator refers constantly to the temporal resources, which causes the reader, to read the novel, has the feeling like you're watching a movie. And this is breaks the linearity time that we will explain in this article.

Key-Words: No-linearity; Time; Modernity.

Introdução

Após o realismo naturalista da segunda metade do Séc. XX, onde a introspecção da personagem foi exigida pelo centro mimético, alguns enredos acabaram se libertando do fato de obedecer ao princípio da casualidade escrita, princípio este indissociável do tempo físico, o que acarretou, de certa forma, na temporalidade, ou seja, numa maleabilidade de consciência onde o narrador pode ir do futuro ao passado e ao presente, sem que esses tempos se separem. (NUNES, 1988)

Com base nessa liberdade que o romancista moderno tem de usar a temporalidade e arquitetar o tempo à sua maneira, criando as anacronias, e, tendo em vista que o romance em questão apresenta este elemento como principal característica da temporalidade, o seguinte artigo tem como objetivo analisar o tempo no romance Leite Derramado, mais especificamente a linearidade partida, presença constante de analepses e prolepses, característica totalmente relevante na obra e que o faz assemelhar-se com o cinema, e a relação que essas anacronias têm com a mente embaralhada do narrador centenário. Para tal análise, usaremos como metodologia uma pesquisa qualitativa e descritiva com base na revisão e fichamento de livros e de resenhas críticas, sejam em meios impressos ou eletrônicos. Como fundamentação teórica, teremos como fonte principal Benedito Nunes com o seu “O tempo na narrativa”, além de outros teóricos, como Massaud Moisés, por exemplo.

1. O leite

“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher” (HOLLANDA, 2009. p.5).

O livro traz a história de Eulálio Montenegro d’Assumpção, com P mudo, como ele mesmo faz questão de lembrar, nascido em 16 de junho de 1907, que já centenário e em estado avançado de demência, narra a trajetória de sua família que vai desde um avô barão, passando por um pai senador da República Velha, um genro trambiqueiro, até o tataraneto traficante e sua namorada cheia de “piercings”, tudo isso tendo como cenário a cidade do Rio de Janeiro.

Internado num hospital público, Eulálio narra a história de sua vida e de sua tradicional família, hoje arruinada financeiramente, para um interlocutor mudo, que em certos momentos é sua enfermeira e em outros é sua filha, uma “jovem” octagenária (SILVA e MORAES, 2009).

Todos os fatos e todas as descrições de personagens aparecem na obra por intermédio do narrador, é a visão dele a única apresentada em todo o desenrolar da história. Entre os tantos fatos narrados por Eulálio, é constante a presença de momentos vividos com Matilde, sua jovem esposa de vestidos alaranjados, pele “castanha” e olhar de “pingue-pongue”. Matilde é alvo dos ciúmes do marido, que acreditava que ela tinha um romance com o arrogante engenheiro francês Dubosc. E esses ciúmes eram laranja, assim como a cor do vestido de Matilde que Eulálio tanto detestava. Numa cena de ciúme, ao ouvir a esposa chorar baixinho, Eulálio corre ao quarto pensando estar Matilde com um homem, mas ao chegar depara-se com a mulher diante da pia, onde derramado estava seu leite, fazendo a relação direta com o título da obra.

O final de Matilde é desconhecido. Eulálio destina três finais para a mulher quando conta sobre ela para sua filha: morte no parto, morte em desastre de automóvel na antiga Rio-Petrópolis e morte por afogamento, numa tentativa de explicar à menina a “desaparição” da mãe. O narrador ainda cita mais outros dois finais, um consequência do ciúme de Eulálio, fuga para França com Dubosc, e outro que parece ser o verdadeiro, morte por tuberculose num sanatório. (MOISÉS, 2009)

2. O derramar do tempo

“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, eu não sei.”

(Santo Agostinho)

Com base em Moisés (2008) o tempo no romance é dividido em três classificações. Primeiramente o Histórico (ou cronológico), tempo das nossas horas e minutos, onde os acontecimentos seguem uma linearidade com um antes e um depois; segundo, o Metafísico (ou mítico), tempo do ser, do coletivo, dos arquétipos; por último o Psicológico, aquele que ocorre no interior das personagens e não obedece à ordem do tempo histórico, o que acarreta na quebra da linearidade.

“O tempo não é apresentado senão através dos acontecimentos e suas relações”. (NUNES, 1988. p.24) Num romance cujo tempo é o psicológico e cuja característica é a subjetividade e, consequentemente, a quebra com as medidas temporais objetivas, os acontecimentos ocorrem no interior da personagem e esta escolhe a sua maneira de narrá-los, que podem seguir a ordem histórica, numa narrativa linear, ou ir contra esta ordem, partindo a linearidade temporal, causando as anacronias, palavra derivada do grego (ana = contra, chronos = tempo). Estas são, na verdade, alterações temporais entre a ordem dos eventos no discurso e a ordem dos eventos na história e são divididas em dois tipos: Analepses (Anacronia por retrospecção) – narração ou evocação de acontecimentos anteriores, ocorridos no passado e Prolepses (Anacronia por antecipação) – narração ou evocação de acontecimentos posteriores, ocorridos no futuro. (REUTER, 1996)

3. O leite e o tempo derramado

Leite Derramado, por se tratar de uma obra que apresenta um narrador ancião prestes a falecer e em elevado estado de demência, tem como característica marcante uma linearidade temporal partida, recheada de anacronias. Este uso constante de anacronias, que faz com que Eulálio, narrador em 1ª pessoa, ao contar toda a sua trajetória de vida, num mesmo capítulo esteja narrando um fato no passado, no auge dos seus vinte anos e noutro volte, rapidamente, ao leito do hospital em que está internado, já com seus cem anos, é perfeitamente justificado pelo já adiantado da idade do narrador, que acarreta numa memória falha e embaralhada, reclamada pelo próprio Eulálio:

“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório.” (HOLLANDA, 2009. p.41).

Toda a narrativa é feita por Eulálio para um interlocutor mudo, a fim de que este interlocutor anote tudo que o narrador conta, para que posteriormente escreva suas “memórias”:

“Antes de exibir o que lhe dito, você me faça o favor de submeter o texto a um gramático, para que seus erros de ortografia não me sejam imputados” (HOLLANDA, 2009. p.18).

“Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça. Vai parecer coisa de maluco (...)” (HOLLANDA, 2009. p.155).

Em grande parte da obra os capítulos são iniciados com o tempo verbal no presente, uma vez que o narrador está “conversando” com o interlocutor e, à medida que o capítulo vai crescendo e a memória chega, o tempo verbal no passado vai predominando, caracterizando a narração dos fatos vividos por Eulálio. “Não sei porque você não me alivia a dor. Todo dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga sol no meu rosto” (HOLLANDA, 2009. Cap. 2, p.10). “Sua mãe nunca tinha visto um navio de perto, depois de casada ela mal saía de Copacabana” (HOLLANDA, 2009. Cap.2, p.11).

Por se tratar das memórias, a narrativa é construída num tempo Psicológico, uma vez que a grande maioria das ações narradas por Eulálio ocorreu no passado e, neste momento da vida dele, estas só acontecem mediante as lembranças, permanecendo no plano interior da personagem, imersas no labirinto mental dela.

Essa linearidade temporal partida presente na obra de Buarque, onde o narrador alterna os fatos ocorridos no passado, no presente e no futuro, sem seguir uma ordem temporal cronológica, é o que Moisés chama de fabulação:

“(...) baseada na memória, ela se constrói por acúmulo de cenas mais ou menos ao sabor do acaso, em que o antes e o depois diz mais respeito à ordem de colocação dentro do romance que à ordem temporal dos acontecimentos” (MOISÈS, 2006. p.209).

E é exatamente esta fabulação que acontece em Leite Derramado. Eulálio conta os fatos de sua vida baseado na memória dele, e esta funciona ao acaso, o que o faz narrar, por exemplo, acontecimentos de quando tinha trinta anos como se tivessem ocorrido antes dos de quando tinha vinte anos. Essa passagem rápida de tempo que permite ao narrador contar fatos que em seu tempo cronológico duraram algumas dezenas de anos em poucos minutos, é o que Nunes chama de “feitiço hermético da arte de narrar”. (NUNES, 1988). Este “feitiço” está muito presente na obra analisada, uma vez que em poucos minutos Eulálio narra fatos que duraram anos. E, ainda de acordo com Nunes (1988), a narrativa moderna, mais especificamente o romance, ao narrar acontecimentos, que num tempo cronológico duraram gerações, em episódios de pouca duração, num tempo histórico dilatado, sofre uma forte influência da temporalidade cinematográfica.

Esta influência cinematográfica é retratada na estrutura temporal da narrativa, com suas analepses e prolepses, que acaba provocando um efeito de suspense no leitor, já que uma vez que o fato não é narrado até o final, em virtude da memória embaralhada do narrador, cria-se a expectativa sobre a sua continuação (NUNES, 1988). As analepses ocorrem na obra quando o narrador volta anos no passado para recordar uma situação, uma pessoa, um fato, e as prolepses podem ser caracterizadas quando o mesmo volta deste passado para o presente, ou quando vai do presente para o futuro.

“Eu fazia de tudo para trazê-la de volta à vida, agora mesmo comprei uma braçada de antúrios a fim de alegrar a sala de visitas. Matilde adorava as folhas do antúrio, tão rubras, lembravam-lhe corações de matéria plástica” (HOLLANDA, 2009. p.134).

“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina” (HOLLANDA, 2009. p.5).

Com todo esse uso de anacronias, o romance cria um clima de suspense, tornando-se dinâmico, pois as idas e vindas no tempo dão a idéia de cortes, o que resulta numa postura parecida com a do cinema, como dito acima, onde as analepses têm o nome de “flash-backs”, volta ao passado, e as prolepses recebem o nome de “flash-foward”, ida ao futuro. E segundo Nunes, há uma relação muito próxima entre essa forma moderna de fazer romances e o cinema, tendo como elemento de aproximação entre as duas artes a quebra da linearidade temporal.

“Há entre o desenvolvimento da forma romanesca, que se relaciona coma quebra da ordem cronológica da narrativa e a conquista pelo cinema de uma linguagem própria (cortes, planos, angulações), uma impressionante convergência” (NUNES, 1988. p.52)

Todo esse uso de anacronias nos permite observar e constatar que Leite Derramado é um romance construído na sua totalidade num tempo psicológico, uma vez que todos os acontecimentos se tornam presentes na obra através da mente do narrador, lugar onde se encontram suas recordações. E a linearidade temporal partida, característica relevante da obra, em virtude da memória falha do narrador, acarreta o uso constante de analepses e prolepses, cuja intenção é a de fazer com que o leitor compreenda e faça a ligação do uso desses recursos com as lembranças confusas do seu narrador.

Considerações finais

O tempo, o que segundo Moisés (2008) é um dos aspectos mais relevantes da narrativa, se não o mais, é ainda apresentado pelo autor como a finalidade do narrador, ou seja, “ (...)o fim último, consciente ou não, de qualquer narrador consiste em criar o tempo” (MOISÉS, 2008. p.130). E, baseando-se nesta afirmação, podemos concluir que a obra, através da figura do seu centenário narrador, cria um tempo linearmente partido com a intenção de mostrar ao leitor, e aos futuros leitores das memórias de Eulálio, que as analepses e prolepses presentes na obra são resultado de uma mente já confusa e de uma memória embaralhada.

É esta ruptura temporal um dos elementos que faz de Leite Derramado um grande romance, já que “todo bom romance tem seus próprios padrões e valores temporais e adquire a sua originalidade pela adequação com que são veiculados ou expressos” (MENDILOW, 1972, p.69). E isto Chico Buarque fez com exímia perfeição. Toda a narrativa e todo uso de elementos que quebram com a linearidade temporal foram inseridos de uma forma tão brilhante no texto que o leitor não se perde com as idas e vindas ao passado e ao futuro. Buarque soube muito bem a hora de frear e de acelerar com o tempo sem que confundisse a mente de quem lê a obra.

O uso do tempo e de seus elementos, com o intuito de fazer com que o leitor compreenda que são resultado da mente equivocada de um ancião, o que resulta numa ação cinematográfica, nos leva a concluir que a narrativa, assim como as outras obras publicadas de Buarque (Estorvo, Benjamim e Budapeste) será “adaptada” para o cinema, se é que será preciso uma adaptação, uma vez que ao ler a obra o leitor consegue ver as cenas passando em sua mente da mesma forma em que assiste a um filme.

Referências

HOLLANDA, Chico Buarque de. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MENDILOW, Adam Abraham. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972.

MOISÉS, Leyla-Perrone. Sobre o livro. Rio de Janeiro, mar. 2009. Sobre o livro. Disponível em: <http://www.leitederramado.com.br/wordpress/>. Acesso em: 28 ago. 2009.

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 17ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2008.

_________ Massaud. A criação poética – prosa I. 20ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

NUNES, Bendito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

REUTER, Yves. Introdução à análise romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SILVA, Álvaro Costa e; MORAES, Reinaldo. Leite derramado, memórias quase póstumas de Chico Buarque. Rio de Janeiro, mar. 2009. Jornal do Brasil. Disponível em <http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/28/e280327996.asp>. Acesso em: 21 set. 2009.

Roberta Cavalcanti
Enviado por Roberta Cavalcanti em 06/09/2011
Código do texto: T3204109
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