FERNANDO PESSOA E A DISPUTA DOS UNIVERSAIS

Título original: A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS NO POEMA XL DO “O GUARDADOR DE REBANHOS” DE ALBERTO CAEIRO/FERNANDO PESSOA

“que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si, de qualquer modo que se faça a sua comunicação com este”

(Platão)

Alberto Caeiro, um dos muitos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, é tido por muitos críticos como um poeta que representa, dentro da cosmovisão de Fernando Pessoa, uma filosofia mais voltada para os sentidos, quase que totalmente destituída de razão, apenas uma vivência pura e simples, como diz no poema II do “O Guardador de Rebanhos”: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos”. Talvez por conta mesmo disso, Fernando Pessoa escolheu dar ao seu heterônimo uma vida simples de pastor, porém sua poesia é profunda, o que muitas vezes surpreende a mais elaborada filosofia. O que mais surpreende, no entanto, é que esse poeta, quase que isento de qualquer metafísica, segundo os teóricos da literatura, apresenta uma visão de mundo aparentemente bastante metafísica no poema XL do “O Guardador de Rebanhos”, aproximando-se mesmo da filosofia de Platão. Isso por conta de uma questão que foi bastante debatida na Idade Média e que retornou à discussão graças ao trabalho de lógicos como Frege e Russell: os universais.

De acordo com Mary C. MacLeod (2005), “Universais são uma classe de entidades independentes da mente, geralmente em contraste com os individuais (ou os chamados 'particulares') postuladas para fundamentar e explicar as relações de identidade e semelhança qualitativa entre os individuais”. Dessa classe de entidades fazem parte conceitos os conceitos abstratos (como as cores), os números, as propriedades e as proposições. Desta forma, uma maçã e um rubi, que são particulares, seriam ambos vermelhos por manterem uma relação com com um universal, que seria a cor vermelha, e este teria propriedades bem diferente da maçã e do rubi, podendo estar em dois lugares ao mesmo tempo, ou manter uma relação com dois particulares instantaneamente. O estatuto ontológico dos universais e como eles se relacionam com os particulares foram causa de grandes debates, que começaram ainda na antiguidade clássica, entre Platão e Aristóteles, fortalecendo-se, sobretudo, na Escolástica medieval, e chegaram até a contemporaneidade. Filósofos de tradições mais ligadas à metafísica tendem a pensar nos universais como entidades possuidoras de existência real, quer sejam elas distintas das coisas, participando delas, mas independentes, como pensava Platão, quer sejam elas entidades que existem apenas nas coisas, sendo o intelecto apenas o responsável por extraí-las mentalmente, numa operação abstrativa. Já os filósofos de tradições mais empiristas, como Guilherme de Ockham, e depois dele, Hobbes, Locke e Hume, geralmente intitulados sob a alcunha de “nominalistas”, tendem a ver os universais como ideias que existem apenas na mente ou meros nomes dados à semelhanças encontradas entre os particulares, não havendo nenhum universal, quer seja na mente ou fora dela. Embora esse seja um debate em aberto e aparentemente distante de uma solução, o que mais nos interessa aqui não é analisar os vários argumentos contra e a favor de cada abordagem, e sim entender do que se tratam esses posicionamentos e como eles se relacionam com a obra de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa.

Ainda segundo Mary C. MacLeod, a principal distinção entre particulares e universais é que os particulares não são repetíveis, isto é, são únicos. Por exemplo, duas cadeiras, por mais que sejam parecidas, ainda são duas cadeiras. Mesmo que compartilhem propriedades bastante semelhantes, são objetos distintos, que ocupam lugares distintos no espaço. Por isso são chamas de individuais – cada uma é uma. Porém, os universais são repetíveis. Duas maçãs vermelhas, que são particulares, não são as mesmas, mas a cor delas, o vermelho, é a mesma cor, e isso é um universal. Também diz-se que os universais são eternos e indestrutíveis, numa acepção mais platônica, uma vez que não dependem das coisas para existirem, existindo por si mesmos. Desta forma, se uma das duas maçãs for destruída, o vermelho não o seria, e mesmo que todas as coisas vermelhas deixassem de existir, o vermelho, ou a vermelhidão, continuaria a existir de alguma maneira. Isso não ocorre na concepção aristotélica. Como, para Aristóteles, os universais estão intrinsecamente ligados às coisas, a destruição de um particular implica na destruição dessa sua propriedade. A distinção de pensamento de Platão e Aristóteles quanto aos universais foi muito bem ilustrada no quadro de Rafael Sanzio, “A Escola de Atenas”, onde temos Platão apontado para cima, para o mundo das ideias eternas, onde estariam os universais, dos quais as coisas deste mundo seriam apenas sombras imperfeitas, enquanto o Estagirita aponta para baixo, para este mundo, sub-lunar, transitório e efêmero, onde os universais existem numa íntima ligação com os individuais.

Além dessas duas grandes concepções acerca dos universais, existe outra, que nega a existência dos universais, ou pelos menos que seja útil pensar que eles existam, que é o que se chamou de nominalismo. Essa corrente de pensamento surgiu ainda no medievo, com Guilherme de Ockham, mas remonta às críticas que os antigos filósofos gregos fizeram à filosofia de Platão. Segundo Michael J. Loux (1998), “o nominalista nega a existência de entidades abstractas e tipicamente procura mostrar que o discurso sobre entidades abstractas é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares da experiência comum”. Segundo Guilherme de Ockham (apud REALE, 1990,p. 619),

“Nenhuma coisa externa à alma, nem por si mesma nem por outra coisa real ou simplesmente racional que se lhe acrescente, nem por qualquer forma que se a considere ou entenda, é universal, pois é tal a impossibilidade de alguma coisa externa à alma seja universal quanto é impossível que, sob qualquer consideração ou sob qualquer aspecto, o homem seja asno”

Os empiristas clássicos eram seguidores do nominalismo medieval (LOUX, 1998), assim como o eram aqueles filósofos de pensamento declaradamente anti-metafísico. Mesmo os neo-positivistas assumem essa aproximação com o nominalismo por conta desse caráter anti-metafísico, embora tratem a querela dos universais como um pseudo-problema de filosofia (CARNAP, 1988, p. 123) e Alberto Caeiro é, sem dúvida alguma, um poeta que contém traços bastante empiristas e anti-metafísicos, como declara o próprio Fernando Pessoa/ Alberto Caeiro:

“Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo, mas não penso nele

Porque pensar é estar doente dos olhos...”

Por conta dessa forte tradição empirista por trás do pensamento anti-realista é que talvez fosse de se esperar que um poeta que valoriza tanto os sentidos, como Alberto Caeiro, se aproximasse de algo mais parecido com o realismo aristotélico, ou com o radical nominalismo, mas é o mais surpreendente é que não é o que parece acontecer, aproximando-se, ao contrário, do realismo platônico, como fica claro no poema XL do livro “O Guardador de Rebanhos”:

“Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor”

Bertrand Russell, no seu “Os Problemas da Filosofia”, a fim de evitar possíveis confusões e ambiguidades, nomeia com o termo “universal” as mesmas entidades que Platão se referia com os termos “ideias” e “formas”. Os universais, como a “ideia” de justiça, é, segundo Bertrand Russell, “alguma coisa diferente das coisas particulares, das quais as coisas particulares participam” e prossegue dizendo que “Não sendo particular, ela mesma não pode existir no mundo dos sentidos. Além disso, não é efêmera ou mutável como os objetos dos sentidos: é eternamente ela mesma, imutável e indestrutível”. Por ser algo diferente dos particulares, os universais precisam ter, necessariamente, uma existência separada dos particulares, e é isso que lhes confere uma série de propriedades que poderiam ser chamadas de metafísicas. Os universais existem “em parte alguma e em tempo algum”, e mantém com os particulares alguma relação que o próprio Platão recusa-se a explicar no Fédon. No entanto, sabe-se que Platão postula os universais, ou as ideias, como a causa das coisas sensíveis, sendo aquelas a única e verdadeira realidade, das quais os particulares nada mais são que meras imitações imperfeitas. Essa relação obscura que os universais mantém com os particulares é ilustrada na fala de Sócrates, no Fédon, quando o mesmo afirma: “o que é belo é belo por meio do Belo”. Ora, quando Alberto Caeiro afirma que “A cor é que tem cor nas asas da borboleta” não está fazendo nada além de inverter a ordem do discurso de Platão sobre o Belo: assim como é a cor que se manifesta nas asas da borboleta, é o Belo que se manifesta nos particulares que são ditos como belos.

Uma das objeções que Bertrand Russell levanta contra o adversários do Realismo, que serve até mesmo como uma explicação do porque os próprios realistas fracassaram tanto diante dos nominalistas, é que eles voltaram suas atenções para determinadas classes de universais, como os adjetivos, que, numa terminologia humiana, expressam ideias abstratas, mas se esqueceram que verbos e relações também são universais, e seria algo bastante complicado negar que tais conceitos são reais. Todavia, esse fato não escapou ao olhar atento do poeta Alberto Caeiro, como escapara dos olhos de grandes filósofos. Os verbos, que expressam ações, não podem ser meras abstrações mentais, argumenta Russell. Portanto, só podem ser reais, e como verbos são expressões de universais, então os universais são reais. O que Alberto Caeiro quer dizer no sexto verso do poema XL, “No movimento da borboleta o movimento é que se move”, parece uma atenta observação de que o movimento, como toda e qualquer ação, também é um universal, como afirmou Bertrand Russell, e como tal, tem existência independente dos particulares, sendo, de certa forma, causa do movimento dos particulares, como em Platão. O movimento da borboleta seria apenas uma manifestação, uma instanciação do movimento universal. Outros versos que nos fazem crer que Alberto Caeiro se refere aos universais são os dois últimos, que neste nível da análise já parecem óbvios: “A borboleta é apenas borboleta/ E a flor é apenas flor” não fala de outra coisa se não dos particulares. Ora, se o poeta afirma que a borboleta é apenas borboleta e a flor é apenas flor, em contraste como que antes dissera sobre o movimento, a cor e o perfume, fica claro que ele pensa os particulares e os universais como entidades distintas, afastando-se, assim, do aristotelismo, ao mesmo tempo que concede existência real aos universais, negando assim o nominalismo e aproximando-se do realismo platônico.

A dificuldade do aristotelismo quanto aos universais era justamente a de manter uma postura realista quanto a existência de conceitos abstratos e ao mesmo tempo manter uma postura mais empirista e materialista, voltada para este mundo, e não para um mundo de ideias eternas. A dificuldade aumenta quando se tenta adotar uma postura radicalmente empirista, como a de Caeiro, e ao mesmo tempo assumir a realidade dos universais de uma maneira tão profundamente metafísica, como na perspectiva platônica. Todavia, não convém a um poeta dar conta de explicar seus poemas, quanto mais sua filosofia. É pouco provável que o próprio Alberto Caeiro fosse capaz de eliminar essa aparente incoerência, mas é muito menos provável que quisesse fazê-lo, pois como já disse o mesmo no poema V do “O Guardador de Rebanhos”

“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas”.

REFERÊNCIAS

MacLeod, Mary C. Universals, <http://www.iep.utm.edu/universa/>. Acessado em 29 de Novembro de 2011.

Loux, Michael J. Nominalismo, <http://criticanarede.com/met_nominalismo.html>. Acessado em 29 de Novembro de 2011.

Bigelow, John C. Universais, <http://criticanarede.com/met_universais.html>. Acessado em 29 de Novembro de 2011.

Russell, Bertrand. Os Problemas da Filosofia, <http://www.cfh.ufsc.br/~conte/russell.html>. Acessado em 29 de Novembro de 2011.

Platão. O Banquete – Fédon – Sofista- Político. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1991.

Schlick, Moritz; Carnap, Rudolf. Coletânea de Textos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 05/01/2012
Reeditado em 05/01/2012
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