Liberação Sexual Feminina e denúncia em Novas Cartas Portuguesas

Cristiane Lima da Silva

RESUMO

Após algumas leituras da obra Novas Cartas Portuguesas, que é considerada metaforicamente caleidoscópica, por proporcionar uma maior liberdade de escolha por parte do leitor para começar a sua leitura. Sendo assim, decidimos fazer uma análise crítica de dois textos presentes nesta obra que, a nosso ver, são bastante ousados por tratarem de temas que possuem uma dimensão perigosa no uso das palavras, bem como nos vastos sentidos delas, considerando o contexto histórico bastante opressor e sufocante da época de sua publicação. Deste modo, este artigo propõe também, a partir de um olhar consciente a cerca do corpo feminino e de seus anseios, resgatar a posição da mulher na sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: opressão, liberdade sexual, corpo feminino.

ABSTRACT

After a few readings of Novas Cartas Portuguesas, which is considered to be metaphorically kaleidoscopic for it allows readers to choose from what point they wish to begin their reading, we have decided to make a critical analysis of two texts which are within this book and, in our opinion, are quite daring for they go about themes which have a dangerous dimension on the usage of words as well as in their vast meanings considering how suffocating and oppressor is the historical context in which the time of its publication is. Therefore, this article also aims to rescue the position of women in the contemporary society from a conscious view on the female body and its needs.

KEYWORDS: oppression, sexual freedom, the female body.

Novas Cartas Portuguesas trata-se de uma obra escrita em 1971, três anos antes da Revolução dos Cravos e da Independência das colônias portuguesas em África. Publicada em 1972, pelas escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Temos reunidos em NCP diferentes gêneros textuais que indicam o contraste entre o título e o conteúdo da obra, além de empregar, ora a língua portuguesa ora a língua francesa. Após sua publicação, a obra foi proibida pela censura portuguesa durante a ditadura de Marcelo Caetano, último presidente do Estado Novo, sucessor de Antônio de Oliveira Salazar. O livro possui textos considerados imorais e pornográficos e que, segundo a censura ditatorial, iam contra a moral da sociedade portuguesa católica da época. Mas o que chocou, na verdade, foram os relatos de mulheres/personagens livres que questionavam a sua identidade e expressavam o desejo de acessar a novas ideias sociais, políticas e religiosas. O tom presente nos textos é de revelação, com várias vozes narrativas, a saber: “As três Marias”, referência às autoras da obra; Mariana, Ana, etc. Essas mulheres e/ou personagens abordam assuntos que servem de grito denunciando a condição feminina, assim como denúncia de temas da retórica amorosa presentes nas cinco cartas portuguesas supostamente escritas por Sóror Mariana Alcoforado (texto com o qual NCP mantém uma intertextualidade e, por conta, podemos também denominá-lo de palimpsesto), mas com intenções políticas e uma crítica ferrenha contra a sociedade patriarcal e contra um governo cujas divisas eram: Pátria, Deus e Família. Apesar de o título conter a palavra “cartas”, conforme já dissemos, trata-se de uma coletânea de textos, um caleidoscópio contendo: contos, cartas, poemas, frases, páginas de diário pessoal, etc., deixando assim, bem claro, o desejo das escritoras de não incluir esta obra em nenhum gênero textual. Esse desejo de fuga ou de recusa de uma classificação dentro de uma nomenclatura textual expressa também uma rebeldia por parte das autoras. É uma reivindicação ao direito de não pertencer a uma estética acadêmica e/ou literária. Deste modo, essa obra também nos faz refletir sobre o estatuto da mulher, enquanto escritora, na literatura e se, realmente, estas tiveram uma verdadeira história literária.

Ora, por propor claramente uma retórica de emancipação com um tipo de discurso militante feminista assumido, NCP é considerado único livro verdadeiramente feminista da língua portuguesa. Podemos afirmar que nele estão inseridos diversos valores que percorrem desde o universo dos gêneros literários até o simulacro à denúncia de estereótipos culturais, tais como: o estatuto da mulher na sociedade (imagens da mulher construídas pela sociedade, tais como: a passiva, a rainha do lar, a sedutora, a mulher vítima, a demoníaca, a mais severa, aquela que leva o homem à perdição, a mulher objeto, etc.). Assim, para uma análise bem mais aprofundada de parte das NCP, escolhemos dois textos: Intimidade e O Pai. São textos curtos, mas que, se por um lado, exigem certamente grande capacidade de aceitação por parte do leitor pelo uso de metáforas para identificar o sexo e o erotismo presentes em todo conjunto textual. Por outro lado, é de fácil compreensão com relação ao objetivo da escrita, ou seja, identificar que tipo de denúncia da condição feminina é, efetivamente, proposta.

Intimidade e O Pai: liberação sexual feminina e denúncia

Intimidade e O Pai são duas pequenas narrativas escritas respectivamente nos dias 12 a 23 de abril de 1971 e encontram-se presentes na NCP publicada em 1972. Lembrando que a obra toda foi escrita em sete meses (de março a outubro), quase o período de uma gestação. Cada narrativa trata de temas que aparentemente são diferentes, mas que acabam se encontrando em algum aspecto. Deste modo, analisaremos Intimidade (p. 140 a 142) em primeiro para logo em seguida partimos para a análise de O Pai (p. 165 a 167), sendo que no final de nossas considerações ambos serão tratados por igual, ou seja, de um ponto de vista que nos levará a perceber o quanto uma narrativa, de certo modo, está relacionada à outra.

Na primeira narrativa Intimidade, temos a voz de Mariana (referência ao famoso mito da freira Mariana Alcoforado) o que nos remete à questão do claustro. Porém, a Mariana, a mulher representada nesse texto é o reflexo de tantas outras mulheres que sofrem a repressão do claustro, do ostracismo. Não falamos aqui do claustro, ambiente fechado, mas sim, do claustro que é fechar-se em si mesma. Não poder ser livre sexualmente falando. Se observarmos o contexto em que foi escrito esse texto, perceberemos o momento repressivo por que passava a sociedade portuguesa da época e compreenderemos melhor o porquê de tantas críticas negativas à obra. Ora, até mesmo o vocabulário repleto de erotismo, muitas vezes traduzido por metáforas que fazem trabalhar a imaginação e ver o quanto as cenas se transformam em realidade no imaginário do leitor, e que, essas imagens contribuem, de certa forma, na provocação, no desassossego da sociedade portuguesa que é ainda extremamente católica e por consequência, muito preconceituosa.

A casa, a arca, a cama; a colcha, Mariana, em vão tecida, a franja lenta, caída, de um tom amarelecido, a roçar o chão, suspensa a madeira, a tocar ao de leve no cimo da madeira, a silenciar-se ao de leve na fímbria da madeira acontecida em vez de pedra comida pelo tempo, chão de tua cela, mordida pela nudez dos pés, que tu Mariana tens pequenos, a desdizer tua altura, medida ao longo da nudez do corpo sobre o qual ele desliza quando te monta, te habita, a morder-te ao de leve os mamilos brandos, às vezes nacarados ou quase tão castanhos como o louro roubado dos teus cabelos lisos ou encrespado púbis tão alheio.

Na passagem acima, verificamos que aparece um ele (representação do masculino) e um tu (o outro, ou Mariana, sujeito de si mesma). A representação da nudez feminina é marcada por elementos eróticos, tais como: o verbo “morder”, “deslizar”, “montar”, “habitar”; e partes do corpo feminino que estão extremamente ligados à sedução e ao sexo: cabelos, seios, mamilos, púbis. Há a referencia de forma implícita de que alguém “monta” sobre Mariana e a possui, porém, à medida que a descrição contida dentro da narrativa vai se esclarecendo, a nossa percepção é outra, o claustro citado como cela, pode também ser entendido como metáfora de uma prisão em si mesma.

(...) a língua leve a infiltrar-se já na fenda entreaberta que os dedos alargaram e por inteiro se expõe. O fruto entumecido se mostra erecto mesmo enfebrecido, em suco, em cheiro, em útero tão aceso.

O erotismo latente nessa passagem da obra nos recorda “a tentação”. O órgão sexual feminino é representado como fruto pronto a ser colhido, saboreado tanto por Mariana, ela mesma, ou por um homem. Esse fruto atrai a personagem. Ela tenta sair da “prisão”, da cela que representa o claustro. Pode ser que, através dele, Mariana consiga o que tanto almeja, ou seja, a liberdade alcançada pelo sexo. O sexo como algo libertador. Notamos que a intimidade feminina é colocada a nu através da descrição do sexo em estado de excitação. O prazer está acima de qualquer coisa. Ele é a única forma de fugir ao claustro. Logo, o sexo é a única forma de representar a “desclausura”.

(...) os dentes despertando o grito que deixas, Mariana, escapar, jamais detido: teu orgasmo, teu espasmo, teu gemido. Tuas unas rasgando tua pele, a colcha, o lençol de linho onde te encontras: o chão, a pedra e novamente a colcha, que tua ama borda, a renda aberta, roxa, o pano verde, no tom macio onde te esvais agora, te transpões Mariana para além da cela onde o frio se sobrepõe em camadas duras, no escuro, sucedidas.

O orgasmo representa a liberdade. Essa liberdade tão desejada por muitas mulheres. Essa passagem nos faz lembrar uma das reivindicações do movimento feminista da década de 70 que era a liberdade sexual da mulher. Ora, pelo o uso do vocabulário acima, podemos ressaltar que as escritoras das NCP representam realmente o que é ter a coragem de expor, de transgredir o que é proibido, sobretudo, falar do que é proibido, do que não é tão comum nem mesmo em conversas entre mulheres. No caso do texto em análise: a masturbação feminina. A dimensão desse vocabulário perigoso, empregado no texto em estudo, não só pode chocar como também inibir a prosseguir a leitura dos outros textos. Exige-se, de certa forma, ousadia da parte do leitor, visto que este ao lê-los, estará, assim como as autoras e a personagem Mariana, cometendo também uma “transgressão”. Assim, verificamos na passagem citada a quebra de um “tabu” que é falar sobre a masturbação feminina. Ainda sobre o orgasmo obtido com a ajuda da colcha (palavra que aparece várias vezes e que podemos considerar como a representação do sexo masculino no jogo da masturbação), imaginamos que ele, o orgasmo atingido, pode ser considerado como o grito de fuga do claustro (agora representado pela hipocrisia e pelo preconceito, ou até mesmo pelo medo). No texto, a sociedade é representada pelo termo “além da cela onde o frio escuro se sobrepõe em camadas duras”. Essa mulher ao transgredir a norma do claustro, transgride também o que é comum fora dele, ou seja, o fato de o prazer feminino ainda não ser exposto, ainda não ser alvo de temas e debates na sociedade contemporânea, e por isso, algo obscuro, desconhecido e oculto. E ainda sobre essa transgressão do que é proibido, George Bataille nos esclarece a o seguinte.

Ce qui dans l’interdit sexuel est notable est qu’il se révèle pleinement dans la transgression. L’éducation en dévoile un aspect, mais jamais il n’est résolument formulé. L’éducation ne procède pas moins par des silences que par des avertissements feutrés. C’est directement, par la découverte furtive- d’abord partielle- du domaine défendu que l’interdit nous apparaisse. Rien n’est d’abord plus mystérieux. Nous sommes admis à la connaissance d’un plaisir dans lequel la notion de plaisir se mêle au mystère, expressif de l’interdit qui détermine le plaisir en même temps qu’il le condamne. (BATAILLE, 1957, p.119).

O fato de ser proibido não impede de que essa “proibição” seja praticada. Daí, termos diversas lendas e histórias que reprimem a masturbação feminina e a tornam um assunto misterioso e secreto. Uma das formas mais desumanas de reprimir e controlar a sexualidade feminina surgiu da visão patriarcal, machista e equivocada da sociedade como uma tentativa de impedir que a mulher sentisse prazer e não se masturbasse. Podemos citar entre esses textos: alguns manuais escolares, a Bíblia e testemunhos de mulheres mais velhas que são contra essa prática de forma a fantasiar diversos tabus ao seu respeito. Ainda hoje, em alguns países, existem também práticas que expõem o sexo feminino às mutilações e, entre as diversas razões alegadas, temos as seguintes: a garantia de que a mulher será fiel ao marido e a manutenção social da submissão feminina ao homem. O que de fato tudo isso demonstra um ato de violência da dignidade humana, além dos riscos de saúde, emocional e sexual que a mulher poder sofrer. Então, voltando ao texto em estudo das NPC, o que temos vai muito além de uma exposição de algo que ainda é considerado tabu, é uma denúncia que vai sendo concretizada à medida que lemos o texto. Portanto, percebemos que o objetivo maior que permeia dentro dessa narrativa é, sobretudo, expor a intimidade da mulher em um texto literário com intenção de iniciar um diálogo social, um debate sobre a feminilidade. Infelizmente, este tema proposto ainda nos choca bastante. Com efeito, pode-se afirmar, dentro de uma visão positiva da interpretação que, certamente, através do grito de Mariana, a mulher possa ter sua liberdade sexual desde que ela saiba vencer o medo, a submissão, a dependência financeira e, sobretudo, o preconceito. Talvez as autoras ao indicarem a força da palavra no texto literário, busquem incentivar essa força também fora dele.

Para analisarmos O Pai, devemos antes de tudo nos imaginar em um contexto familiar de uma sociedade patriarcal, onde o pai é uma espécie de senhor e rei. Centro do poder de uma família pequena composta por três membros. A figura do pai é decisiva e dominadora, conforme veremos no excerto abaixo.

Era perversa:

Dormia toda nua, os peitos soltos e brandos muito brancos e expostos tal como os seus mamilos largos e róseos, distendidos. Durante o dia andava em casa com as blusas desabotoadas e sentava-se de qualquer maneira com os fatos a subirem-lhe sempre a meio das coxas, deitando antever entre as pernas uma escuridão macia, amolentada na sua meia penumbra.

Era perversa:

De um louro fundo, a pele penugenta, os olhos de um azul duro, sempre adormecidos.

Assim começa a narrativa. Apresenta de forma clara a figura da filha (era perversa) e outras descrições de sua descompostura que possui traços sedutores e eróticos. Ela representa a Eva, a sedutora, a que conduz à perdição e que certamente vai levar à ruína algum homem. Este último, considerado ao longo da história, como um pobre ser inocente que fracamente se deixa levar pelos encantos da beleza erótica feminina. Assim seria a justificativa para o que futuramente será revelado na narrativa. A mulher não tem culpa de sua beleza, de seus encantos e da sua doçura. Ela nasce assim naturalmente. A respeito dessa beleza e magia Simone de Beauvoir considera que “a magia feminina foi profundamente doméstica no seio familiar patriarcal. A mulher permite à sociedade uma integração de forças cósmica nela mesma.” (BEAUVOIR, 1976, p.282).

No contexto de O pai, toda essa beleza pode ter sido forjada pelo meio social ao designar o papel da menina na sociedade, além de formá-la uma boneca “repleta de pecados” só pelo fato de ter nascido mulher. Essa filha/mulher/personagem representa o “pecado da carne”, o inimigo tentador, as tentações da terra e do demônio. Como dizia Simone de Beauvoir “femme est un champ de pâturage mais elle est aussi Babylone” (BEAUVOIR, 1976, p.268). É aquela que tem a capacidade e o poder de produzir o mesmo e o diferente, segundo Françoise Héritier , e por isso, objeto do medo do que é desconhecido e que deve ser controlada pelo phallus. Esta é a posição masculina: dominar o que é desconhecido. A mulher é também vista como portadora da paz e do pecado; da vida e da morte.

Quando entrou no quarto o homem hesitou, a olhá-la, a fixá-la no seu sono, mas logo avança, silencioso, e de manso para junto à cama a hesitar novamente. Depois estende uma das mãos, desliza-a na curva suave do peito, na anca quente, doce, os dedos crispados a entranharem-se já nos pelos sedosos do púbis. Curva-se quando ela acorda e tapa-lhe a boca com força, brutal, mantendo-a deitada, firmemente, debaixo do seu corpo agora ao comprido sobre o dela.

Indiferente, Mariana sente que ele sai de dentro de si, sujando-a de esperma também por fora. Depois vê-lo que se levanta da cama, se veste à pressa e se vai embora sem a olhar. (...)

“Tens que deixar esta casa- disse-lhe ele numa voz neutra, monocordica- não podemos continuar a viver todos juntos na mesma casa depois do que se passou. Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, sou homem e tu és provocante, perversa. (...) uma mulher sem vergonha e sem pudor.

_Claro que sou uma puta, podes estar tranqüilo, pai, sou uma puta.

O tema levantado nessa pequena narrativa é o incesto. A questão da violência física contra a mulher e, claro, o abuso do poder patriarcal do adulto detentor de força física contra o mais frágil na esfera desse sistema familiar. Observamos que, em nenhum momento no texto, há a referencia à palavra Amor, comprovando assim, que a pessoa mais velha da família desfruta da ascendência sobre as mais jovens. Nesse sentido, a professora Heleieth Safiotti explica em seu artigo publicado no site do Ministério Público do Estado do Espírito Santo, Brasil.

Quando um homem e uma mulher adultos, capazes, portanto, de discernimento, se amam, devem decidir, ainda que sejam parentes consangüíneos ou afins, se vale a pena estabelecer e preservar a relação amorosa mesmo enfrentando a reação negativa da sociedade. Em havendo convergência de vontades, pode ser compensador desafiar as convenções sociais. Mais do que isto, se ambos se amam, nenhum pratica violência contra o outro. Ao contrário, estão presentes as condições para a realização do encontro amoroso. Obviamente, será necessária muita força para enfrentar sanções sociais negativas, já que a sociedade tudo fará para configurar o incesto como infração a uma norma sagrada e contrária à natureza, na medida em que a justificativa do interdito se tece em nome do sagrado e da biologia. Pessoas enquadradas nesta infração serão, com muita probabilidade, estigmatizadas, o mesmo podendo ocorrer com seus progênitos. Isto representa sofrimento ao qual, muitos não conseguem resistir. Mas é bastante distinto das conseqüências geralmente provocadas pelo incesto numa relação díspar: desempenho sexual problemático, diluição da identidade, depressões, condutas destrutivas e autodestrutivas, psicoses, etc.(SAFIOTTI, 2009, p.1 )

A figura do pai nessa narrativa é a de um homem dominador e aproveitador, pois sabendo que a filha se mostra sedutora, aproveita-se da situação para logo em seguida colocar a culpa da sua transgressão na própria vítima. Isso é reflexo do que acontece no seio de várias famílias cujo medo ou o apoio à figura do phallus, do patriarca, deixa passar fazendo de conta que nada aconteceu ou excluindo do seio familiar a vítima, que em quase totalidade dos casos, trata-se de uma mulher. Ora, sabemos que o incesto é um ato bastante antigo, sendo assim citado em várias histórias envolvendo famosos personagens do Egito Antigo, da Grécia e da Roma Antiga, entre elas, podemos citar as seguintes: a de Édipo, a de Electra, a de Freda e a do imperador Caio César, também conhecido por Calígula. Por ser um ato que remota desde a Antiguidade e até mesmo a história bíblica, ainda hoje, o incesto é defendido por algumas sociedades patriarcais, onde não se contestam a vontade do dominador. Ora, tomando por base As Sagradas Escrituras, verificamos diversas contradições no que diz respeito ao incesto, pois embora em alguns livros da Bíblia ele seja objeto de condenação (ver Levíticos, cap.18); em outros casos, temos o mesmo ato como forma de assegurar a linhagem e também a geração familiar (ver o caso de Ló e suas duas filhas, após a destruição de Sodoma e Gomorra). Isso quer dizer que esse tipo de ato, de acordo com alguns contextos onde ele acontece, não é considerado “fora da lei”. Já em outras sociedades, o incesto é considerado crime e abuso de poder, assim como um ato de extrema violência. Intelectuais como Freud e Michel Foucault expressaram suas opiniões sobre esse tema, no entanto muitas delas divergentes ao ponto de crermos que há certo tipo de apoio intelectualizado a esse ato brutal que, muitas vezes é traumatizante por ocorrer dentro e/ou fora do lar. Por exemplo, Michel Foucault afirma que “ le violeur ne s’en prend qu’au corps de la femme; le séducteur, à la puissance du mari” (FOUCAULT, 1984, p.191). Isto quer dizer que a violação de uma mulher por um homem é intencionalmente ligada à figura patriarcal ou marital a que ela está submetida. Foucault se expressa de forma clara sobre a lei do incesto dizendo que esta é um exemplo de uma interdição da sexualidade que vale para todo indivíduo e toda a sociedade e que essa mesma lei provoca um certo recalque na personalidade do indivíduo. É um pensamento um pouco complicado de entender. Já em Radcliffe-Brow encontramos o seguinte ponto de vista sobre a proibição do incesto.

(...) é uma questão de lógica dos sentimentos, não da razão e isto é que alguns querem realmente apontar quando dizem que a repugnância ao incesto é instintiva, pois há uma determinada lógica das emoções igual para todos os seres humanos, portanto, inata e não adquirida. (RADCLIFFE-BROW, 1978, p. 143).

Voltando ao contexto literário de O Pai, essa narrativa é um tipo de denúncia de que, apesar de tanta luta pela igualdade entre os sexos, ainda há o apoio familiar nesse tipo de situação que atenta aos direitos da mulher. Assim, constatamos que o corpo feminino foi quase sempre considerado como objeto de violação, de “descarga dos desejos masculinos” e com fins de procriação, manter a espécie. A mulher deve lutar para adquirir o direito de ser a dona do próprio corpo, exigindo, assim “um basta à colonização do seu corpo”. Sabemos que esse direito vem, pouco a pouco, sendo adquirido com o advento da pílula anticoncepcional, mas ainda temos que vencer a degradação explícita do corpo feminino nas mídias atuais que defendem essa falsa “liberação sexual feminina” na pós-modernidade. A mulher/personagem, isto é, a filha/personagem que foi violada, conforme o texto é a culpada, é aquela a quem o pai chama de puta. O pai “transforma” a filha em puta após manter forçadamente relações sexuais com ela e tudo isso com a aprovação da mãe, figura que geralmente no seio social protege o filho. Temos então, o retrato fiel de uma sociedade falocêntrica que julga, mas que também dá o veredito e, logo em seguida, marginaliza. O pai é o dominador das duas mulheres da casa. E o pior, a vítima não encontra apoio nem mesmo da mãe, figura do mesmo sexo, mas que está em total dependência financeira do patriarca da casa. Parece-nos que esse sistema patriarcal está sustentado por concepções bastante fortes. Desse modo, a mulher, ou melhor, o sexo feminino, é visto segundo a abordagem bíblica como portadora do mal, conforme explica Simone de Beauvoir.

Le mal est une réalité absolue; et la chair est le péché. Et, bien entendu, puisque jamais la femme ne cesse d’être l’Autre, on me considère pas que réciproquement mâle et femelle sont chair : la chair qui est pour le chrétien l’autre ennemi qui ne se distingue pas de la femme. C’est en elle que s’incarnent les tentations de la terre, du sexe, du démon. (BEAUVOIR, 1976, p.279).

Assim, podemos afirmar que nossa personagem tem algo em comum com a Marina de Intimidade. Pelo simples fato de serem mulheres, elas provaram da triste experiência de viver em clausuras sociais, que são estigmatizadas e marginalizadas. Mulheres tentadoras, sedutoras, ambas cercadas pelo medo que as impede de viver, de buscar a liberdade. Porém, a primeira Mariana, a da narrativa Intimidade, alcança essa liberdade, mesmo que momentânea, nos prazeres do seu próprio corpo. Ela conquista o que de fato lhe pertence: o direito de ser dona de si. Em contra partida, em O Pai, temos o papel de total violência do corpo feminino. A personagem passa ao leitor uma ideia de poder, de sedução, mas que, na verdade serve somente para esconder a fragilidade diante da força e do poder dominador masculino. O ponto em comum desses dois textos é a capacidade de passar ao leitor um desejo, um grito a pedir a liberdade. É uma denúncia do que ainda acontece na atual sociedade, cujo centro ainda é o patriarcalismo. Ainda há uma busca em esclarecer a atual condição feminina e, ainda a melhor forma de expressá-la, é através dessa escrita ousada que compõe o conjunto de textos em NCP. Desta forma, finalizamos nossa análise desses dois belíssimos textos que dizem muito em tão poucas palavras, ressaltando mais uma vez que a subalternidade sexual da mulher é a sua subalternidade em geral, logo a luta contra a alienação sexual deve ser a luta pela emancipação humana, a luta da mulher pelos diretos de seu próprio corpo. É essa a grande mensagem contida nessas duas belas narrativas.

Bibliografia Ativa

Livro estudado: Novas Cartas Portuguesas, Lisboa: Editora Futura, 1974.

Autoras: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa

Bibliografia Passiva

BATAILLE, G. L’érotisme, Paris : Editions de Minuit, 1957.

BAUVOIR, S. Le deuxième sexe, Paris : Gallimard, 1976.

FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité : l’usage des plaisirs, Paris : Gallimard, 1984.

HERITIER, F. Masculin/féminin, Dissoudre la hiérarchie, Paris : Odile Jacob, 2002.

RADCLIFF-BROW, A organização social das tribos australianas. In: Melatti, São Paulo: Ática, 1978.

SAFIOTTI, H. Incesto e abuso incestuoso, São Paulo: MPES 2009. Disponível em: http://www.mpes.gov.br . Acesso em: 03/03/2011.

Cristiane Grandinot
Enviado por Cristiane Grandinot em 24/01/2012
Reeditado em 26/01/2012
Código do texto: T3458684