A despersonalização nos poemas de Ricardo Reis

Introdução

“Quanto mais eu sinto, quanto mais eu sinto com várias pessoas

Quanto mais personalidades eu obtiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir como todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Mais análogo serei a Deu, seja ele quem for,

Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,

E fora dele há só ele. Tudo para Ele é pouco.” Fernando Pessoa

O objetivo de nosso trabalho é buscar através de uma análise interpretativa de algumas Odes de Ricardo Reis, indícios que possam nos levar à comprovação de que esse poeta adquiria em sua poesia certo desprendimento de sua identidade, ou seja, que ele buscava sempre se manter distante, impossibilitando, assim, colocar traços de sua personalidade em sua poesia, cabendo ao leitor construir essa identidade. Ao longo de nossa análise, apoiar-nos-emos na obra de José Saramago O Ano da Morte de Ricardo, pois neste romance o narrador de certa forma tenta construir uma identidade para o poeta, ajudando, assim, o leitor das Odes a imaginar como seria esse tão misterioso heterônimo de Fernando Pessoa. É interessante ressaltar também o quanto é difícil tornar real e traçar uma suposta personalidade de um ser que já é resultado da criação de outro, ou seja, um ser que é ficcional, fruto da imaginação deste ser real, mas que, de algum modo, possui algumas semelhanças com o criador e até mesmo com outras criações.

Para tanto, antes de começarmos a análise das Odes de Ricardo Reis, vejamos o que o próprio Pessoa em um de seus textos escritos em prosa, diz o que pensa sobre a questão do dogma da personalidade:

A abolição o dogma da personalidade, isto é, de que temos uma Personalidade “separada” das dos outros. A personalidade de cada um de nós é composta (como o sabe a psicologia moderna, sobretudo desde a maior atenção dada à sociologia) do cruzamento social com as “personalidades” dos outros, da imersão em correntes e direções sociais e da fixação de vincos hereditários, oriundos, em grande parte, de fenômenos de ordem coletiva. Isto é, no presente, no futuro, e no passado, somos parte dos outros, e eles parte de nós. Para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o que com mais verdade possa dizer “eu sou eu”; para a ciência, o homem mais perfeito é o que com mais justiça possa dizer “eu sou todos os outros”. Devemos pois operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias, obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, Homem-Síntese da Humanidade”.

Nessa citação de Pessoa, percebemos claramente que o Eu não é nada sem o Outro, logo, na sua poesia acontece o mesmo, cada poeta não significa nada sem os outros, não existe uma personalidade individualizada, mas sim, coletiva. Traços estes bastante usados na poesia portuguesa modernista onde o poeta confessa a sua desfragmentação em múltiplos “eus”, revelando a sua dor de pensar, porque esta divisão provém do fato de ele intelectualizar as emoções; a sucessiva mudança leva-o a ser estranho de si mesmo (não reconhece aquilo que escreveu); metáfora da vida como um livro: lê a sua própria história (despersonalização, ou seja, distanciar-se para se ver).

No que diz respeito a Ricardo Reis, sabemos que ele é uma das muitas multiplicações de Fernando Pessoa, e que com suas odes neoclássicas e neopagãs, refletindo a influência de Horácio, de Píndaro, dos estóicos gregos, sempre num registro extremamente original, tenta afastar-se, distanciar-se de tudo que se refere à emoção, pois é através da exposição dela que podemos, de certo modo, poderíamos traçar uma personalidade. No entanto por sabermos que Ricardo Reis, assim como Alberto Caeiro e Álvaro de Campos são “personalidades parceladas da alma do poeta Fernando Pessoa” , é esperado que encontremos em Reis alguns traços deste último, assim como características de Caeiro em suas Odes. Lembrando também que foi Reis quem escreveu o prefácio do livro Obra Completa de Caeiro, considerado como um Mestre para o poeta.

O que sabemos sobre o poeta Ricardo Reis é o que o próprio Fernando Pessoa gostaria que soubéssemos: “ O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realizações , da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea.” E nessa revelação de como nasceu Reis, Pessoa continua: “ Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo.” Assim, constatamos que a forma escolhida para desenvolver o pensamento pessoano sobre a criação desse neoclassicismo científico foi por meio das Odes. Reis é considerado como um epicurista triste que vive isolado dos outros. Para esse poeta, cada um deve viver a sua própria vida dentro de uma sobriedade individualista sem procurar ter prazeres, porém buscando a calma, a tranqüilidade, abstendo-se do esforça e da atividade útil. Por outro lado, o poeta afirma também que essa busca é ilusória, pois são coisas inatingíveis ao homem, no entanto possíveis somente aos deuses. E quem vive sempre esperando a morte não pode ter a calma e a devida traquilidade para viver. Assim, a obra desse poeta expressa uma grande tristeza, daí o esforço lúdico e disciplinado para obter uma calma qualquer. Tudo isso é apoiado em uma crença nos deuses da Mitologia Grega e no fato de considerar Jesus Cristo como um deus a mais, conforme observaremos mais adiante na análise das Odes. Percebemos então o paganismo de Caeiro na construção da poesia de Reis.

Com relação à identificação de Ricardo Reis com a obra de Álvaro de Campos, temos o pensamento dele com relação à arte de Campos onde o que ele escreve sobre a poesia deste último é o que faz em sua própria obra: “ um poema é uma projeção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras.” Aqui ele reflete sobre a sua própria poesia: “ a poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras ( ...) quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso.”

Análise de algumas Odes de Ricardo Reis

Conforme comentamos acima, Ricardo Reis considera-se um restaurador do paganismo- seguindo os passos do Mestre Caeiro, no entanto, observamos que à medida que ele tenta segui-los, de certa forma, acaba distanciando-se. Na Ode abaixo verificamos a presença dos deuses greco-romanos, ausentes na obra de seu Mestre:

O deus Pã não morreu/ Cada tempo que mostra/ Aos sorrisos de Apolo/Aos peitos nus de Ceres/Cedo ou tarde vereis/Por la aparecer/O deus Pã, o imortal (...)

Os deuses de Ricardo Reis, como ele faz questão de enfatizar, qualificando-os de “claros e calmos, cheios de eternidade e desprezo por nós”, nos concedem uma única liberdade: a de submeter-nos ao seu domínio por vontade nossa. Entretanto, afirma a professora Aparecida de Fátima Bueno: “eles também são livres e estão sujeitos ao eterno Fado. E ela continua: “Uma saída encontrada por Ricardo Reis, já que os deuses nos desprezam- e eles, como nós, estão expostos à moira cruel- é o fingimento; fingir, do mesmo modo que os deuses, a quem pretende imitar, (de que é divina e livre a sua vida)”.

Quando lemos as Odes de Ricardo Reis, temos a revelação de um rosto, a imagem de um “alguém” em conflito. Essa pessoa imaginada por nós, leitores, prega a inutilidade de todo pensamento, ao passo que procura aguardar tranquilamente a chegada da morte. Percebemos também uma contradição, pois à medida que essa pessoa espera a morte, ela mantém-se lúcida. Esse conflito intensifica-se ainda mais em algumas odes, nas quais a consciência de si próprio aparece como um de seus desejos mais fortes:

Melhor destino que o de conhecer-se/Não frui quem mente frui/Antes, sabendo/Ser nada ignorando:/ Nada dentro de nada.

Neste trecho, percebemos que o desejo de conhecer-se é muito mais forte que o de abolir todo pensamento. O poeta não aceita perder o controle da própria consciência. Porém, de que adianta sermos conscientes, como conclui, se nada podemos contra o Destino, sempre alheio e invencível? Continua nos versos seguintes: “ Se sabê-lo não serve de sabê-lo ( pois sem poder que vale conhecermos?)/Melhor é a vida/ Que dura sem medir-se.” Como podemos ver, para o eu- lírico das Odes, ter consciência de nossa fragilidade insignificância só pode causar a infelicidade. Nesse contexto, entendemos que essa consciência que conduz à infelicidade é a da impotência frete à morte e à irreversibilidade do tempo, conforme explica Jacinto do Prado Coelho:

Mais pungente que a ideia da Morte é a sensação de que a vida consiste numa série de mortes sucessivas, de que o tempo é irreversível (...). O poeta deixa-se tentar pelo ópio da perfeita inconsciência. Mas a noção da dignidade humana, “o orgulho de ver sempre claro”, fa-lo arrepiar caminho, refluir ao eu consciente.

Assim, se quisermos compor um rosto para Ricardo Reis, devemos considerar que além dessa ambigüidade entre o desejo de ser consciente e o seu oposto, existe uma outra que o caracteriza: por um lado, reconhece a inutilidade de lutar contra o Destino e vê como única saída para essa impotência a vontade de ser como aquelas pessoas que nada mais pretendem, que vão no curso de um rio: “Sofro, Lídia, do medo do destino/A leve pedra que um momento ergue/ As lisas rodas do meu carro, aterra/Meu coração./ Tudo quanto me ameace de mudar-me/Para melhor que seja, odeio e fujo/ Deixem-me os deuses minha vida sempre/Sem renovar./ Meus dias, mas que um passe e outro passe/Ficando eu sempre quase o mesmo;indo/Para a velhice como um dia entra/No anoitecer.” Aqui , o sujeito poético teme o que o destino o prepara, ele tem medo do futuro, certo de que a morte o espera.

Considerado por José Saramago o mais “alienado” dos heterônimos de Fernando Pessoa por sua indiferença diante do mundo, Ricardo Reis é um exilado por determinação intrínseca de sua poética, conforme Dal Farra:

Reis é o lugar do retiro e aqui o “abdica e sê rei de si próprio” indica a natureza desse espaço. Sua ação consiste em penosamente fazer versos que cantem uma das maneiras possíveis de resistência à realidade, assim como o ato de Pessoa, na medida em que flexiona o verbo “outrar”, é o de compor compactamente, na densidade estilística de cada um dos heterônimos, diferentes atitudes de uma mesma resistência.

Nos versos a seguir, percebemos o quanto o poeta tenta um certo distanciamento de si mesmo, colocando-se como ser coletivo: “ Não quero recordar nem conhecer-me/Somos demais se olharmos em quem somos/Ignorar que vivemos/Cumpre bastante a vida/ Tanto Quanto vivemos, vive a hora/ Em que vivemos, igualmente morta(...).” Verificamos o processo da fuga de ter sua própria identidade, sua individualização. O poeta é completo se possuir a identidade dos outros heterônimos de Pessoa e do próprio Pessoa, conforme já afirmamos anteriormente, cada poeta não significa nada sem os outros. Outra característica observada nesta Ode é a reincidência do medo da Morte, fato que aparece constantemente na poesia de Reis. Esse medo é uma contradição do seu ideal epicurista, pois o poeta tem plena consciência de que a morte é a única certeza na vida. Esse medo talvez possa estar ligado ao fato de que, segundo a interpretação filosófica e religiosa, a morte esteja relacionada a uma passagem para o vazio, para o nada; ou uma passagem para outra existência. Lembrando que essa temática também é abordada na construção da personalidade de Reis e de Fernando Pessoa por Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis onde a morte é usada para explicar as atitudes que Pessoa tem no interior do romance. Ela assinala uma nova fase na sua “vida” pos-morte.

Há sempre na poesia de Reis uma ligação entre morte e destino: “ O sono é bom, pois despertamos dele/Para saber que é bom/Se a morte é sono/despertaremos dela/Se não, e não é sono/Com quanto em nós é o nosso e refusemos/Enquanto em nossos corpos condenados/Dura, do carcereiro/A licença indecisa/Lídia, a vida mais vil antes que a morte/Que desconheço, quero;as flores colho/Que te entrego, votivas/De uma pequeno destino.” Verificamos aqui que o sujeito poético é o homem que sonha. Essa temática faz-nos lembrar Mario de Sá-Carneiro que sempre relacionava o sono, ou melhor, o último sono à morte ou o “deixar-se morrer”. Talvez em Ricardo Reis, essa temática possa justificar o seu total desprendimento à sua identidade. Lembrando que também foi em Caeiro que a temática da despersonalização dramática foi bastante desenvolvida em sua poesia, pois quanto mais ele tenta se distancias de Pessoa, é o que mais dele se aproxima. Porque é nele onde se realiza, onde se concretiza o sonho de Pessoa em não ser Pessoa. Já em Reis essa concretização acontece, porém se focaliza mais a disciplina mental.

Nesta última Ode, podemos perceber a união de todas as temáticas já citadas por nós no decorrer deste artigo: “ Feliz aquele a quem a vida grata/Concedeu que dos deuses se lembrasse/E visse como eles/Estas terrenas coisas onde mora/Um reflexo mortal da imortal vida/Feliz, que quando a hora tributaria/Transpor seu átrio porque a Parca corte/O fio fiado ate o fim/Gozar poderá o alto prêmio/De errar no Avento grato abrigo/Da convivência/Mas aquele que quer Cristo antepor/Aos mais antigos deuses que no Olimpo seguiram Saturno/O seu blasfemo ser abandonado/Na fria expiação -até que os deuses de quem se esqueceu dele se recordem (...)” . Distanciar-se na crença de um Deus único e verdadeiro (Cristo), apoiando-se na existência de outros mais importantes, exemplo, os da mitologia greco-romana, possa também ser outra forma de tratar a morte como “forma de gozo, de prêmio”. Ver que na vida, tudo é efêmero e, portanto, valorizar cada momento. Valorizar a existência desses deuses como um ideal humano de vida simples. Assim, ter a consciência de que o Eu é passageiro, e incentivando consequentemente a dispersão dele, faz do poeta um SER, fragmentado, sem ambição de futuro, acreditando tão somente no alento que os deuses podem oferecê-lo.

Em suma, com essa breve pesquisa, tentamos analisar em algumas Odes de Ricardo Reis a temática da despersonalização ligada à morte e à brevidade do tempo. Tentamos também construir, metaforicamente, uma “unidade” dentro dessa multiplicidade que é a problemática da heteronímia em Fernando Pessoa, concluindo que em Reis há um pouco dos outros poetas (heterônimos) e do próprio Pessoa.

Cristiane Grandinot
Enviado por Cristiane Grandinot em 24/02/2012
Reeditado em 24/02/2012
Código do texto: T3516701
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