A MULHER ABANDONADA NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE: ENSAIO ESTILíSTICO
 

Este é mais um trabalho sobre o eu feminino na obra de Chico Buarque de Holanda, em que faço uma breve análise dos aspectos estilísticos presentes nos textos. Elegi para este estudo duas canções que tratam do mesmo tema – o fim de um relacionamento amoroso – São elas: "Bastidores" e "Atrás da porta".

“...Oh, metade afastada de mim,
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar...”.

(Pedaço de mim)

Texto I:
Bastidores


Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei o calmante, o excitante
E um bocado de gim
Amaldiçoei
O dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei
Me pintei, me pintei
Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão
Te vi pelo salão
A caçoar de mim
Não me troquei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar

Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo o cabaré
Me aplaudiu de pé
Quando cheguei ao fim

Mas não bisei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar

Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bêbados e febris
A se rasgar por mim

Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim.


     Essa composição apresenta isocronismo (paralelismo rítmico), os versos variam entre quatro, seis e oito sílabas, respectivamente, as rimas são todas soantes, agudas, com exceção do quarto verso da primeira estrofe que apresenta rima grave e interna (calmante-excitante).
     A repetição do fonema constritivo fricativo palatal surdo /x/ - chorei, chorei sugere o choro, anunciado pelo eu-lírico que nos leva a crer ter sido abandonada pelo homem amado. Ainda quanto ao nível fonológico, podemos destacar a frequência das consoantes oclusivas linguodentais /t/ e /d/, lembrando ruídos secos e violentos , das oclusivas velares /k/ e /g/, sugerindo ruídos demorados, retumbantes e as constritivas fricativas alveolares /s/ e /z/ lembrando vozes, assobios e sussurros.
     No segundo verso, até ficar com dó de mim, a presença do intensificador até, reforça o sentimento de autocomiseração vivido pelo sujeito do discurso, fato comprovado pelo emprego do substantivo e do pronome oblíquo mim.. Para realçar o estado depressivo em que se encontra o eu-lírico, o poeta cria uma imagem antitética perfeita entre calmante e excitante, ou seja, a mulher não sabe se é melhor acalmar-se, excitar-se ou ainda embriagar-se: tomei o calmante, o excitante/e um bocado de gim.
    É curioso observar que os substantivos calmante e excitante estão determinados pelo artigo definido, levando-nos a pressupor que se trata de elementos previsíveis na rotina de um cantor, antes de iniciar o espetáculo. Enquanto o sintagma um bocado de gim tem como determinante o artigo indefinido, sugerindo o desconhecido ou imprevisível, haja vista o emprego do substantivo bocado (porção que se leva de uma vez à boca), em vez de a dose de gim.
     O fato de ela trancar-se no camarim demonstra o desejo de fuga, de isolamento. Entretanto, o dever a espera e ela precisa cantar. O verbo amaldiçoar, no verso amaldiçoei o dia em que te conheci  sugere que para essa mulher, seria melhor não ter conhecido o amante, os momentos felizes que tanto lhe fazem falta. Ideia reforçada pelo emprego do artigo definido, determinante do sintagma nominal o dia. Ainda nessa estrofe, o emprego da metonímia: com muitos brilhos me vesti, enfatiza uma realidade superficial, ou seja, para não deixar que as pessoas (o público que pagara pelo espetáculo) notassem como estava abatida e triste, ela resolve vestir-se com roupas brilhantes e usa uma maquiagem excessiva, escondendo as rugas e as marcas deixadas pelo pranto. Ideia sugerida pela repetição do sintagma verbal: me pintei ,me pintei, me pintei, me pintei. Ainda com tal repetição, podemos inferir a indisposição de sair diante do espelho para enfrentar o público, como se o sujeito estivesse em estado de choque ou querendo esconder-se por trás da maquiagem.
     No verso: como é cruel cantar assim, o poeta demonstra como a vida do artista é invadida, ele não tem sequer a privacidade de sofrer sozinho, tem de cantar, mesmo chorando por dentro. Principalmente, tratando-se de uma cantora de cabaré. Outra imagem brilhante utilizada  pelo poeta, caracterizando o estado de confusão mental dessa mulher abandonada, está nos versos: e num instante de ilusão/te vi pelo salão a caçoar de mim. Essa imagem sugere o desejo incontrolável de rever o amante, de que aquela visão, fosse realidade, mesmo que ele a ridicularizasse em público.
     É interessante observar que a cada intervalo das apresentações, o eu-lírico, numa atitude obsessiva, retorna ao lar, para certificar-se de que o amado nunca mais voltará. Aqui, ouso inferir que tal retorno pode dar-se apenas no plano psicológico (da fantasia). O sintagma oracional: Que tu nunca mais vais voltar sugere o contrário, ou seja, o desejo de que ele, dessa vez, não tenha ido embora, e fique com ela para sempre. Fato constatado pela repetição da perífrase verbal: vais voltar, vais voltar, vais voltar, afirmando (como num pensamento positivo) que seu desejo será realizado. O substantivo lar (em vez de casa), determinado pelo possessivo nosso denota a harmonia e a felicidade que eles conquistaram. Portanto, ela não quer aceitar a triste realidade da separação.
     Na segunda estrofe, o eu-lírico afirma não saber como conseguiu cantar tão bem, naquele estado, como se não sentisse o próprio corpo, ideia reforçada pelo emprego da metonímia só sei que todo cabaré / me aplaudiu de pé. O sintagma oracional cheguei ao fim, apresenta uma ambiguidade: um alívio por ter encerrado a sua missão daquela noite ou ainda que a sua vida como mulher e como cantora chegara ao fim naquele momento.
 Apesar de sentir-se reconhecida profissionalmente, ela não retribui o carinho do público: Mas não bisei, talvez por uma questão íntima, ou por querer livrar-se logo daquele palco e voltar ao lar, para certificar- se da ausência do homem amado.
     Finalmente, após constatar que o amado não voltara, (vivendo um conflito interno, um misto de emoção e revolta), esforça-se por cantar com mais graça e beleza, provocando o desejo daqueles homens que se rasgavam por ela.
     Vale destacar o valor expressivo do verbo rasgar, nos versos: Bêbados e febris/ a se rasgar por mim (imagem hiperbólica) dando a impressão de que aqueles homens fariam qualquer loucura (morreriam ou matariam) para tê-la nos braços. Enquanto ela, de modo paradoxal, se rasga por  física e moralmente por um só. Assim, com o seu pranto copioso ela reafirma, a autocomiseração Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim.
     Do ponto de vista da língua, o poeta mantém o tratamento na 2ª pessoa do singular, sugerindo a intimidade existente entre o casal. O emprego da próclise (anteposição dos pronomes átonos me e te) nos versos: me tranquei no camarim / me pintei, me pintei/ te vi pelo salão / me aplaudiu de pé... demonstra uma opção do autor pelo registro informal da língua, realçando o estado emocional do sujeito que, curiosamente, se mantém elíptico em todo o texto, revelando o desejo dessa mulher de esconder-se, exceto no segundo verso da terceira estrofe Nem sei como eu cantava assim. Como se ela estivesse espantada consigo mesma, não reconhecesse a si própria.
     O texto estabelece uma antítese entre os verbos cantar e chorar, na terceira pessoa do singular, pretérito perfeito do indicativo, revelando os sentimentos conflitantes da mulher, sujeito do discurso, ao constatar que fora abandonada pelo homem amado.

Texto II:
Atrás da porta

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus,
juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua.

 
    Os versos dessa composição apresentam métrica bastante variada, as rimas são soantes, agudas, graves, e algumas rimas internas. Somente na última estrofe, elas são emparelhadas. Encontramos alguns versos brancos.
Podemos dividir o texto em três movimentos, cada um representado por uma estrofe.
     O primeiro movimento apresenta o momento da separação, quando a mulher percebe que está perdendo o homem amado: Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus.
O segundo movimento estabelece uma recusa do eu-lírico em acreditar que tudo aquilo estivesse acontecendo. Tal atitude é anunciada pelas formas verbais: estranhei, duvidei, reclamei.

     O terceiro movimento mostra as reações da mulher após o abandono. Aqui, o eu-lírico, movido pelo sentimento de perda e pelo orgulho ferido, começa um processo de afastamento definitivo do homem amado, com atitudes extremas: maldizer, sujar, humilhar e vingar que, no entanto, são atenuadas pelo desejo de aproxima-ção, representado por te adorando pelo avesso.
     Considero essa composição a mais fiel à alma feminina quando se sente rejeitada. O poeta consegue captar o sentimento da mulher abandonada, a dor da perda, o apego ao lar, utilizando-se da gradação dos verbos: arrastei, arranhei, agarrei, reclamei e dos substantivos: cabelos, pelos, pijama, pés, ...
    Quanto ao nível sintático-semântico, predomina a parataxe, caracterizando o discurso lírico e a função emotiva presentes no texto. O emprego do polissíndeto reforça a atitude de desespero do sujeito do discurso para tentar comover o homem amado: e duvidei, e me arrastei, e te arranhei e me agarrei...
     A substantivação do verbo olhar, (derivação imprópria ou conversão) em: olhar de adeus, encerra um animismo, em que o substantivo está representando a própria pessoa e ainda uma metáfora, visto que, naquele momento, as palavras eram desnecessárias. Os verbos jurar e estranhar reforçam a resistência dela em acreditar que tudo acabara de forma inesperada: juro que não acreditei / eu te estranhei...
     Na última estrofe, o autor emprega o verbo dar com o sentido de passar a fazer algo, caracterizando a transformação ocorrida na personalidade dessa mulher, movida pelo desespero e a revolta: Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço.
 
  Desse modo, com tais atitudes, ela o afastaria definitivamente de outras mulheres, (ninguém o quereria mais) amando-o de forma paradoxal: Te adorando pelo avesso. O emprego do transpositor pra (síncope de para, no registro informal): pra provar que inda sou tua/ pra mostrar que inda sou tua enfatiza a finalidade dessas atitudes: provar que é capaz de destruí-lo moralmente, se for preciso, para tê-lo consigo e mostrar que ainda pertence a ele. Fato comprovado pelo paralelismo nesses dois últimos versos.
       A expressão atrás da porta, (penúltimo verso da segunda estrofe) dá-nos a sensação de isolamento e abandono. Ainda nesse verso, a expressão reclamei baixinho denota a carência e a dor dessa mulher, agindo como uma criança carente e indefesa, escondendo-se atrás da porta.
     Os pronomes possessivos estão centrados no masculino, estabelecendo a sensação de aconchego e segurança que ela sente em contato com o homem amado. O emprego do pronome oblíquo te reforça a importância desse homem como o objeto da ação.
   Do ponto de vista da língua vale comentar o emprego rigoroso dos verbos flexionados em segunda pessoa (registro formal). Entretanto, verificamos alguns empregos correntes no registro informal: o uso da aférese de ainda inda, a próclise dos pronomes me e te e o verbo dar com outro sentido. Tal procedimento demonstra a explosão de sentimentos do eu-lírico.
     As expressões sem carinho e sem coberta remetem-nos a uma situação de abandono no plano afetivo e no plano físico, respectivamente.

     Curiosamente, Chico Buarque utiliza a mesma expressão nosso lar nas duas composições (Bastidores / Atrás da porta) mostrando que, para as mulheres, o que mais dói em uma separação, é a perda do lar, da família.
                    

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BIBLIOGRAFIA:

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SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Desconstrução/construção no texto lírico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

 
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 20/05/2013
Reeditado em 20/06/2017
Código do texto: T4300274
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