A violeira: uma mulher sonhadora na obra de Chico Buarque




Desde menina
Caprichosa e nordestina
Que eu sabia a minha sina
Era no Rio vir morar
Em Araripe topei
Com o chofer dum jipe
Que descia pra Sergipe
Pro serviço militar

Esse maluco me largou em Pernambuco
Quando um cara de trabuco
Me pediu pra namorar
Mais adiante num estado interessante
Um caixeiro-viajante me levou pra
Macapá

Uma cigana revelou que a minha sorte
Era ficar naquele norte
E eu não queria acreditar
Juntei os trapos com um velho marinheiro
Viajei no seu cargueiro que encalhou
no Ceará

Voltei pro Crato e fui fazer artesanato
De barro bom e barato
Pra mode de economizar
Eu era um broto e também fiz
muito garoto
Um mais bem feito que o outro
Eles só faltam falar

Juntei a prole e me atirei no São Francisco
Enfrentei raio, corisco
Correnteza e coisa-má
Inda arrumei com um artista em pirapora
Mais um filho e vim-me embora
Cá no Rio vim parar

Ver Ipanema foi que nem beber jurema
Que cenário de cinema
Que poema à beira-mar!
E não tem tira, nem doutor , nem ziguizira
Eu quero ver quem é que tira nós aqui
desse lugar!

Será verdade
Que eu cheguei
nessa cidade
Pra primeira autoridade
resolver me escorraçar?
Com a tralha inteira remontar a
Mantiqueira
Até chegar na corredeira e o
São Francisco me levar

Me distrair nos braços de um
barqueiro sonso
Despencar na Paulo Afonso
No oceano me afogar
Perder os filhos em Fernando de Noronha
E voltar morta de vergonha pro sertão
de Quixadá

Tem cabimento, depois de tanto tormento
Me casar com algum sargento
E todo sonho desmanchar
Não tem carranca, nem trator,
nem alavanca
quero ver quem é que arranca
Nós aqui desse lugar!


 
     Essa composição é construída por métrica irregular, predominando os versos heptassílabos (redondilha maior), as rimas são soantes, agudas e graves.
     O texto apresenta como sujeito do discurso uma mulher nordestina, jovem, sonhadora, determinada e impulsiva, capaz de fazer qualquer sacrifício para realizar o seu sonho: Morar no Rio de Janeiro. 
     Na segunda estrofe, a substantivação do adjetivo "maluco" determinado pelo demonstrativo "esse" , referindo-se anaforicamente ao "chofer do jipe" caracteriza a falta de responsabilidade sensibilidade e cavalheirismo daquele homem que a abandonara à própria sorte. Percebemos que, devido à pouca idade, à ingenuidade e à inexperiência, essa jovem é vítima da exploração sexual, tão comum em nosso país, principalmente no interior da região Nordeste, em que as pessoas imaginam que as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro são uma espécie de paraíso.      Portanto, essas meninas  são presas fáceis desses homens inescrupulosos, tornando-se mães ainda na infância. Essa ideia é reforçada pelo emprego do substantivo "broto" que, na linguagem popular, significa "jovem", "adolescente": "Eu era um broto", o sintagma oracional "[...] e também fiz muito garoto" "[...] eles só faltam falar..." Inferimos que o emprego do verbo "falar" sugere o desejo dessa  mulher de denunciar esses crimes contra a infância e a adolescência, ou seja, se essas crianças pudessem falar, certamente expressariam a dor e a indignação contra a indigência e o abandono.
     Para conseguir maior expressividade, no nível fonológico, Chico Buarque joga com as expressões "carranca" e "que arranca", e a aliteração do fonema constritivo fricativo velar surdo /k/ , dos fonemas oclusivos bilabiais homorgânicos /p/ e /b/ (predominantes no texto) reforçando o caráter explosivo e persistente dessa mulher que, nem mesmo a força bruta, é capaz de intimidá-la ou detê-la. O substantivo "carranca" pode representar as famosas carrancas do Rio São Francisco, usadas como amuletos contra os maus espíritos ou ainda "expressão sombria", "cara feia" das pessoas que não a queriam na cidade.
     Ainda no nível fonológico, destacamos a repetição dos fonemas constritivos fricativos alveolares /s/ e /z/ e palatais /x/ e /j/, sugerindo respectivamente, sibilos e cochicho. Vale destacar também o homeoteleuto (terminação igual em palavras próximas) e a aliteração: " Voltei pro Crato e fui fazer artesanato/De barro bom e barato".
 
     É interessante notar que essa mulher vive uma situação cíclica em que ela vai e volta ao mesmo lugar, enfrentando dificuldades cada vez maiores. Entretanto, ela não se deixa abater e segue a intuição da infância: "Que eu sabia a minha sina era no Rio vir morar". Essa viagem pelas Regiões do Brasil , faz-nos lembrar de que alguns compositores, também utilizaram esse mesmo recurso geográfico (pertinente à estilística literária) para enaltecer as belezas naturais do país. Entre eles , Benito di Paula e Silas de Oliveira.
   A expressão "naquele norte", referindo-se a Macapá, sugere além da Região, o rumo a ser tomado por essa mulher, ou seja, era naquele lugar que ela encontraria a felicidade. Todavia, como o nordestino tem a personalidade nômade, ela retorna a Crato (cidade cearense) e começa a trabalhar, utilizando-se de barro "bom e barato", um meio de conseguir recursos para novamente partir em busca do seu ideal.  
     A sétima estrofe apresenta uma recusa do sujeito do discurso em acreditar que alguém seja capaz de não acolhê-la nessa cidade que ela tanto admira e pela qual tanto lutou. Portanto, o emprego da expressão interrogativa: "será verdade"? Tal recusa é ratificada no primeiro verso da última estrofe com a expressão "Tem cabimento" e o uso do ponto de exclamação.   Quanto ao nível lexical, destacamos a expressividade do substantivo "tralha" (expressão popular), realçando a modéstia daquela bagagem. Intenção reiterada com o verso: Juntei os "trapos" com um velho marinheiro.
     O emprego do substantivo coletivo "prole" estabelece mais uma característica da mulher nordestina: tem muitos filhos e, normalmente não os abandona, apesar das dificuldades que enfrenta: "Juntei a prole e me atirei no São Francisco / Enfrentei raio, corisco, correnteza e coisa-má..." Essa Ideia é reforçada nos versos : "Mais um filho e vim-me embora... Perder os filhos em Fernando de Noronha..."
     Quanto ao aspecto sintático, as frases são longas, prevalecendo a hipotaxe, dando maior objetividade ao discurso dessa mulher.
     No nível semântico, destacamos a presença da homonímia: "tira" (Agente da Polícia) e "tira" (verbo tirar, terceira pessoa do singular), enfatizando a persistência e determinação dessa mulher. É importante destacar também o emprego das figuras: símile ..."foi que nem beber jurema", (alusão feita à bebida alucinógena feita com a casca do arbusto homônimo), da metáfora: "Que cenário de cinema! Que poema à beira mar!" (enfatizando o deslumbramento do eu-lírico, diante das belezas naturais do bairro carioca) , e da hipérbole: "Voltar morta de vergonha..." que marca mais uma característica do nordestino, o orgulho. Afinal, ao sair do nordeste, ela pretendia ascender socialmente e, se um dia regressasse, seria como uma mulher realizada.
  Na última estrofe, ela reforça a sua personalidade independente, quando questiona se vale a pena abandonar um sonho que conquistara com tanto sacrifício, por um casamento, mesmo que promissor: "tem cabimento, depois de tanto tormento /Me casar com algum sargento /E todo sonho desmanchar!"
     Do ponto de vista da língua, o texto é marcado pela linguagem coloquial, representada pelas gírias: "tira" (Agente Policial) e "ziguizira" (doença que não se pode nomear), "broto", (jovem bonita), "cara" (homem / rapaz), aférese de "ainda"/" inda", o uso de regionalismos: "pra mode de" (a fim de), "coisa-má" (diabo) emprego do pronome reto "nós" em vez do oblíquo átono "nos": " ..tira nós...", da expressão comparativa "que nem" , em vez de "como ", o uso inadequado da preposição "em", posposta ao verbo chegar ... "cheguei nessa cidade...." e do verbo "ter" em vez de "haver": "E não tem tira, nem doutor, nem ziquizira...". Essa escolha estilística define o perfil sociocultural da mulher, sujeito do discurso.

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ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 05/09/2013
Reeditado em 19/06/2017
Código do texto: T4467437
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