A mulher submissa em Chico Buarque de Hollanda

“Com açúcar e com afeto
fiz seu doce predileto
pra você parar em casa..."
Chico Buarque


SEM AÇÚCAR

Todo dia ele faz diferente
Não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente
Não sei se ele fica na sua

Talvez ele chegue sentido
Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
Ou nem me adivinha os desejos

Dia ímpar tem chocolate
Dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate
Dia santo ele me alisa

Longe dele eu tremo de amor
Na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor
E eu de noite sou seu cavalo

A cerveja dele é sagrada
A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
Sua risada me assusta

Sua boca é um cadeado
E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
Eu rolo sozinha na esteira

Ele nem me adivinha os desejos
Eu de noite sou seu cavalo
Eu rolo sozinha na esteira.

 
     Essa composição é construída por sete estrofes (seis quadras e um terceto), todos os versos são octossílabos (isocronismo rítmico), as rimas são todas alternadas ou cruzadas , soantes e graves.
     
O texto em estudo apresenta o queixume de uma mulher (o sujeito do discurso) em relação à indiferença do amante.
     
     Na primeira estrofe, a repetição anafórica da expressão "não sei", reforça a insegurança dessa mulher em relação à personalidade imprevisível do homem amado. Fato ratificado nos dois primeiros versos da segunda estrofe, em que o eu-lírico deixa clara a sua submissão, pois nem sequer toma a iniciativa de expor-lhe os seus sentimentos, de insinuar-se para ele. Está sempre pronta para acatar-lhe as decisões, esperar que ele adivinhe, por coincidência, os desejos dela. O paralelismo dos dois últimos versos evidenciam essa submissão.
     
     Na terceira estrofe, o substantivo "dia" em posição anafórica enfatiza a personalidade múltipla desse homem, ora carinhoso e gentil, ora indiferente e violento: "Dia útil ele me bate / dia santo ele me alisa..."

     Na quarta estrofe, essa mulher se declara apaixonada"Longe dele eu tremo de amor." O Emprego do advérbio "longe" reforça a idéia de que a passividade dela diante desse homem é tanta, que a impede de tomar uma iniciativa, declarar o que sente, realizar suas fantasias. Portanto, longe dele ela treme de amor (espaço da fantasia ) e na presença dele, ela emudece (espaço real).

     Na mesma estrofe, os dois últimos versos estabelecem um oxímoro "[...] sou sua flor/ ... sou seu cavalo", em que a mulher expõe mais uma vez a sua condição de mulher-objeto: durante o dia, fica em casa, enfeitando-se e preparando tudo para agradar ao amante: "Eu de dia sou sua flor..." À noite, ele chega cansado e ela deve suportar-lhe a “carga” do mal humor, resultante do  cansaço de um dia exaustivo. Portanto,em seu mutismo, ela age como um animal, deixando-se cavalgar por ele, satisfazendo-lhe,  os desejos sexuais: "Eu de noite sou seu cavalo".

     Na quinta estrofe, essa mulher descreve a personalidade egoísta do amado "A cerveja dele é sagrada/A vontade dele é a mais justa" ou seja, as vontades dele têm de ser satisfeitas a qualquer custo, enquanto a ela não é permitido o direito de falar dos seus sentimentos, porque ele os recebe com  o sarcasmo e as risadas de alguém que está alcoolizado ou perturbado mentalmente: "A minha paixão é piada/ Sua risada me assusta".

     Utilizando-se de uma linguagem metafórica, na sexta estrofe, a mulher lamenta a falta de diálogo e a insensibilidade desse homem incapaz de perceber que ela o deseja ardentemente: "Sua boca é um cadeado /E meu corpo é uma fogueira". Para completar o seu machismo egoísta e a falta de cavalheirismo, ele dorme sozinho (ou finge dormir), na cama, supostamente saciado com outras mulheres enquanto ela, insone, rola sozinha, na esteira, sublimando o desejo.

     No terceto final , a mulher ratifica , como num lamento, a sua condição de mulher-objeto, tratada como um animal que deve rolar solitária, numa esteira, sem ao menos ser notada . O verbo "rolar", sugere o desejo à flor da pele, impedindo-a de dormir.

     Qanto ao nível fonético-fonológico, destacamos a repetição dos fonemas constritivos fricativos alveolares /s/ e /z/, sugerindo uma confissão.

     Aqui, vale observar que a estrutura paralelística dessa composição é bastante semelhante às cantigas de amigo do cancioneiro medieval , em que a mulher apresenta sempre uma queixa sobre o amigo (amante/namorado).

     Curiosamente, em outra canção, cujo sujeito do discurso é um homem, Chico Buarque se utiliza do mesmo recurso (paralelismo rítmico) para retratar o cansaço do homem diante das atitudes rotineiras da mulher - - - "Cotidiano": “Todo dia ela faz tudo sempre igual”.

     Quanto ao nível semântico, é marcante o emprego da metáfora: "Sua boca é um cadeado/E meu corpo é uma fogueira" (penúltima estrofe) e da antítese: "Dia útil ele me bate/Dia santo ele me alisa".

     No nível sintático predomina a parataxe caracterizando a função emotiva do texto. A predicação verbal é predominante nas três primeiras estrofes, enquanto nas demais, prevalece a predicação nominal.

     Vale destacar o valor expressivo do pronome oblíquo átono "me" presente em quase todos os versos, conferindo ao sujeito do discurso a característica de objeto das ações praticadas pelo homem.

     É interessante que as duas ações que essa mulher tenta realizar (pelo menos no plano da imaginação) são frustradas pela presença castradora do homem: "falar", ou seja, declarar o desejo que está sentindo: " Na presença dele me calo" e “rolar”, no sentido de saciar esse desejo, de fazer amor com esse homem: "Eu rolo sozinha na esteira."

     Quanto ao nível morfológico, destacamos a adjetivação dos substantivos "cadeado" e "fogueira" , representando respectivamente o mutismo voluntário do homem em detrimento do desejo incontrolável da mulher.

     A temporalidade é marcada pelo presente do indicativo, revelando as ações rotineiras desse homem e, conseqüentemente, a insatisfação da mulher, sujeito do discurso.

     Do ponto de vista da língua, o autor emprega expressões típicas do registro informal, como:" rolo", " fica na sua" e a anteposição do pronome átono ao verbo: "me traz um presente", "me cobre de beijos", "me desmancha o vestido", "me adivinha os desejos", caracterizando a linguagem coloquial dessa mulher.

Imagem google.

Bibliografia:
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PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2ª ed. Rio de janeiro: Presença, 1985.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 15/09/2013
Reeditado em 16/01/2016
Código do texto: T4482148
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