O INCONSCIENTE FREUDIANO
 
     Sigmund Freud, ao descobrir a existência e o funcionamento do inconsciente, é o responsável pelo terceiro golpe ao narcisismo do homem: “o eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa.”
     Freud afirmou que, ao longo do processo de modernização, três grandes descobertas abalaram o narcisismo, afetando a imagem que o homem tinha de si mesmo como ser consciente e racional. Imagem com a qual se encantou, durante séculos: Copérnico destruiu as ideias de geocentrismo e antropocentrismo, quando provou que a Terra não era o centro do Universo e que, consequentemente, o homem não era o centro do mundo. Darwin, com sua teoria da evolução das espécies, provou que o homem descende de um primata e que não é um ser especialmente criado por Deus. Freud, ao criar a psicanálise, mostrou que a consciência não é a essência da vida psíquica.
     No início de sua carreira como médico psiquiatra, Freud usava a hipnose e a sugestão para tratar os pacientes, cujos sintomas não tinham causa orgânica, mas os resultados obtidos lhe eram insatisfatórios. Foi a partir do seu encontro com Breuer, que Freud tomou conhecimento do tratamento de Anna O. (Berta Pappenheim):
 
Enquanto ainda trabalhava no laboratório de Brücke, eu travara conhecimento com o Dr. Josef Breuer que era um dos médicos de família mais respeitados de Viena, mas que também possuía um passado científico, visto que produzira vários trabalhos de valor permanente sobre a fisiologia da respiração e sobre o órgão do equilíbrio. Era um homem de notável inteligência e quatorze anos mais velho que eu. (...) Nossas relações logo se tornaram mais estreitas e ele se tornou meu amigo, ajudando-me em minhas difíceis circunstâncias. Adquirimos o hábito de partilhar todos os nossos interesses científicos. Nessa relação só eu naturalmente tive a ganhar. O desenvolvimento da psicanálise, depois, veio a custar-me sua amizade. Não me foi fácil pagar tal preço, mas não pude fugir a isso. (FREUD, Um estudo autobiogáfico, [1924], 1925) .
 
     Anna O. apresentava distúrbios físicos, identificados com a histeria, tais como: paralisias com contraturas, inibições e estados de confusão mental. O método utilizado por Breuer para o tratamento foi a catarse: a paciente, depois de ser induzida ao estado hipnótico profundo, dizia o que a estava oprimindo. Freud, em Um estudo autobiográfico, comenta a respeito desse tratamento que por “esse processo Breuer conseguiu, após longos e penosos esforços, aliviar a paciente de seus sintomas.” (FREUD, Um estudo autobiográfico, [1924], 1925).
     Do método catártico (hipnose) de Breuer à associação livre de Freud, que é a regra fundamental do tratamento psicanalítico, alguns anos se passaram.      Segundo Laplanche e Pontalis, não é possível saber a data precisa em que a técnica da as-sociação livre começou a ser utilizada por Freud, já que sua descoberta “se deu de modo progressivo entre 1892 e 1898, e por diversos caminhos.” (LAPLANCHE E PONTALIS, 2008, p.38).
     Freud, durante a utilização do método catártico de Breuer, substitui a hipnose pelo artifício de pressionar com a mão a testa do paciente, a fim de que ele começasse a falar e descobrisse a causa de seus sintomas.
     Paulatinamente, Freud descobre que, embora conscientemente os seus pacientes desejassem a cura, havia alguma coisa que fazia com que eles resistissem a esse desejo.
     Por fim, ele descobre que o esquecimento se articula diretamente com o recalque, cujo agente é o eu. Todavia, como não há recalque sem retorno do recalcado, o recalcado reaparece disfarçado nos sintomas.
     A associação livre é, então, o método que possibilitaria “a por em evidência uma ordem determinada do inconsciente” (LAPALNCHE e PONTALIS, 2008, p. 39).
     O conceito de inconsciente, na teoria freudiana, é elaborado em duas tópicas. A Primeira Tópica, exposta no capítulo VII do livro A Interpretação dos Sonhos (1900-1901), divide o aparelho psíquico em três sistemas, o inconsciente (Ics), o pré-consciente (Pcs) e o consciente (Cs). A partir dessa divisão, a psicanálise rompe com a psicologia e com as questões da consciência. Entretanto, insatisfeito com sua teoria, já que esta não dava conta da tendência de repetir o que causa desprazer, Freud, sentiu a necessidade de elaborar uma nova teoria sobre o aparelho psíquico.           Assim, a partir de seu trabalho metapsicológico Além do princípio do prazer (1920), fixou definitivamente o modelo estrutural ou dinâmico do aparelho psíquico, a Segunda Tópica, que divide o psiquismo em três instâncias: o id, o ego e o superego. O id [isso] é a sede das pulsões e dos desejos inconscientes; o ego [eu] é o núcleo da consciência, onde se encontram os pensamentos, ideias, sentimentos, e lembranças do indivíduo e o superego [supereu], instância responsável pelo imperativo categórico: tu deves..., tu não deves... Em A dissecação da Personalidade Psíquica, diz Freud:

Poderia dizer que a instância especial que estou começando a diferenciar no ego é a consciência. É mais prudente, contudo, manter a instância como algo independente e supor que a consciência é uma de suas funções, e que a auto-observação, que é um preliminar essencial da atividade de julgar da consciência, é mais uma de tais funções. E desde que, reconhecendo que algo tem existência separada, lhe damos um nome que lhe seja seu, de ora em diante descreverei essa instância existente no ego o superego [grifo do autor] (FREUD, ([1932], 1933).
 
     Essa nova maneira de entender o psiquismo (segunda tópica) surge com os problemas da psicose e foi exposta por Freud em 1923, no texto O ego e o id. Nesse texto, o autor admite que o conceito de inconsciente surgiu a partir da teoria do recalque, termo usado por ele para designar “o estado em que as ideias existiam antes de se tornarem conscientes [...]”(FREUD, 1976, p.38 ). Ele também estava convicto de que o inconsciente não coincide com o recalcado, pois, embora tudo que é recalcado seja inconsciente, nem tudo o que é inconsciente é obrigatoriamente recalcado. De acordo com Freud, assim como o ego, “o recalcado" também se funde com o id e é simplesmente uma parte dele. Ele só se destaca nitidamente do ego pelas resistências do recalque e pode comunicar-se com o ego através do id.” (FREUD, 1923, p.38).


[...] Assim, o ego, pressionado pelo id, confinado pelo superego, repelido pela realidade, luta por exercer eficientemente sua incumbência econômica de instituir a harmonia entre as forças e as influências que atuam nele e sobre ele; e podemos com¬preender como é que com tanta freqüência não podemos recalcar uma exclamação: ‘A vida não é fácil!’ Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em ansiedade — ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id. (FREUD, A Dissecação da personalidade psíquica, [1932], 1933).

      A partir da citação, entendemos que o eu é tiranizado pelo supereu, o mundo externo e o isso. A função do eu é equilibrar as pulsões do isso com as exigências do supereu e do mundo externo. 
     Em 1953, o psicanalista francês, Jacques Lacan, percebendo que alguns discípulos estavam equivocados quanto à interpretação de muitos conceitos freudianos, propõe um retorno à obra do mestre, a fim de recuperar, entre outros, o conceito de inconsciente que, segundo ele, ficou relegado a um segundo plano.
     A partir dos escritos de Freud, Lacan amplia a teoria psicanalítica, estabelecendo uma estreita relação desta com a Linguística de Ferdinand de Saussure e a Antropologia de Claude Lévi Strauss, em que se apoia para formular o axioma "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (LACAN, 1998, p.25), “por meio do qual Lacan trouxe a psicanálise de volta a seu campo específico; o da linguagem, do qual precisamente os analistas pós-freudianos haviam se afastado.” (JORGE, 2005, p.65).
     Para Lacan, portanto, são as leis da estrutura significante que regem o inconsciente. Sendo assim, o campo de ação da psicanálise situa-se na fala, onde o inconsciente se revela, através dos fenômenos que surgem nas lacunas das manifestações conscientes: o sonho, o lapso, o chiste, o ato falho, o esquecimento, denominados pelo psicanalista francês de "formações do inconsciente", e os sintomas.
     A partir da releitura de Freud, Lacan resgata os conceitos como Verneinung [denegação], Trieb [pulsão] e Verwerfung [foraclusão], sobretudo com a produção de novos conceitos (objeto a, real, simbólico e imaginário) que, embora inspirados na obra freudiana, tiveram o mérito de trazer para ela uma nova visão.
Assim como o conceito de inconsciente, a noção de pulsão é fundamental para a psicanálise e foi adotada por Freud, pela primeira vez, no livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Entretanto, deve-se a Lacan o resgate da diferença entre pulsão [Trieb] e instinto [Instinkt], que fora estabelecida pelo pai da psi-canálise, ao introduzir o termo pulsão para se referir essencialmente à sexualidade humana.

Referências:


FREUD, Sigmund. Conferência XXXI: A dissecação da personalidade psíquica. In: Edição ele­trônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 22 v. Rio de Janeiro, Imago, 2000.
 ______. O Ego e o Id. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de José Otávio de Aguiar.  19 v. Rio de Janeiro: Imago, 1976.  p.33 – 41 .

______. Além do princípio do prazer. In Edição Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 18 v. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.17 – 28 .


GARCÍA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 23 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 93, 94 .

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar , 2005. p .19, 20, 65, 142 .

LACAN, Jacques. O Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. p.148 - 166 .
______. O Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise; traduto­res: Marie Christine Lasnik Penot; com a colaboração de Antonio Luis Quinet de An­drade. Rio de Janeiro: Zahar,1985. 

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise/ Laplanche e Pontalis.4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.p. 522


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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 25/08/2016
Reeditado em 26/08/2016
Código do texto: T5740110
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