A METÁFORA DO CAÇADOR E A CAVEIRA: a língua mata!

Por Marcio Rabelo

O advento da modernidade levou Nietsche a afirmar que “o deserto cresce: ai daquele que oculta desertos!”. O deserto se refere à transmutação dos valores que acelerariam o triunfo do niilismo. Heidegger interpretou essa afirmação como prova de que a devastação seria maior que a destruição e mais nefasta que o extermínio. Essa devastação atingiu a gênese de nossa cultura, estamos caminhando para um discurso do nada. Eis o motivo de tantos discursos serem classificados como não éticos.

O discurso político foi profundamente atingido por essa devastação, sendo o período eleitoral seu principal celeiro. Dessa forma, devemos ter cuidado com os discursos de alguns candidatos. É um momento que se fala bastante, muitas coisas boas, importantes, viáveis. Mas também tolices, besteiras, coisas sem sentido, puras demagogias. Muitos desses discursos lembram o povo grego em época clássica, onde muitas vezes eram iludidos com os belos discursos dos sofistas, mas sabe-se filosoficamente que nem todo discurso belo é verdadeiro, assim é hora de discernir os emaranhados de palavras.

Para os políticos que entendem só escrevo que devemos ter cuidado com a língua. Um discurso me eleva, me exalta, mas também me derruba, e às vezes me humilha. Meu pai na sua sabedoria sempre me diz: filho, a língua mata!. Nunca tinha entendido bem isso, até certa vez ele contar uma metáfora maranhense que eu gostaria de compartilhar com vocês: o Caçador e a Caveira.

Certa vez um caçador de um grande reinado andava em busca de feras selvagens em uma grande floresta. Chegando a um local onde a mata fechada escondia as luzes do sol, encontrou uma caveira. Perturbado com aquilo, o caçador perguntou quem teria matado essa pessoa aqui? Quem? Então a caveira respondeu:

- Foi a língua, caçador! Quem me matou foi a língua, pois a língua mata!

Imediatamente o caçador voltou para o reinado e começou a espalhar para todos que teria encontrado na floresta uma caveira falante. Essa notícia se espalhou por todo o reinado chegando aos ouvidos do rei, que mandou chamá-lo ao castelo real. Chegando aos pés do Rei, foi inquirido sobre o que teria acontecido. Então o rei mandou sua legião junto ao caçador buscar aquela ilustre caveira, pois queria vê-la e falar com a mesma. Ao chegarem com a caveira, buscaram reunir todo o reinado. Estavam em clima de festa, ansiosos para ver o fato sobrenatural. Ao entrarem no palácio, as tropas colocaram a caveira na sala do castelo real. Quando anoiteceu, o caçador bastante alegre perguntou à caveira em meio a um silêncio que alastrava todo o castelo:

- Caveira, quem foi que te matou?

A caveira nada falou. E perguntou mais uma vez:

- Quem foi que te matou, caveira? Diz para nós todos!

E nada da caveira falar. Então o povo passou a caçoar da cara daquele infeliz caçador. Ele por sua vez, apavorado com aquela situação, repetiu várias vezes para que a caveira falasse e nada da caveira falar. Indignado com aquela situação, o Rei deu sentença de morte para o pobre caçador pelo fato de não ter falado a verdade diante daquele reinado. Bastante desalmado o rei exclamou:

- Que seja imediatamente enforcado e condenado à morte, ao lado dessa maldita caveira!

O rito de enforcamento foi iniciado com uma grande lamentação. Muitos diziam:

- Esse é louco, caveira não fala!

Já outros diziam:

- Ele procurou morrer. Ele merece já que é um mentiroso!

Depois de o caçador ter sido enforcado e ter seu corpo trucidado, a caveira começou a sorrir dando altas gateadas. Gritando, ela falou:

- Ha, ha, ha! Ha! Ha! Eu não te disse, caçador, que quem me matou foi a língua! A língua mata, mas tu não entendeste isso! Feliz daquele que escapa da sua própria língua! Pois em boca calada não entra mosca!

A multidão ficou espantada com aquilo e não sabia o que dizer ou o que fazer. O Rei que assistia a tudo se arrependeu. Mas já era tarde demais. Assim, a notícia se espalhou por todos os reinados sobre aquela história do caçador e a caveira. É por isso que até hoje dizem os antigos aos seus filhos: muita coisa que a gente vê, ouve e sabe é melhor guardar para si do que contar aos outros, pois a língua mata!

Somos resultados de nossas interpretações, o mundo é resultado da linguagem, daquilo que dizemos, ouvimos e entendemos. Eu sou aquilo que leio, aquilo que faço, aquilo que vejo. Ainda não criamos um discurso verdadeiramente ético na política brasileira. Nem poderia, pois Maquiavel desvinculou a ética da política: posso ser político sem ser ético. Que legal! Isso anima o Brasil, principalmente seus políticos ou politiqueiros como preferem alguns.

Acontece que às vezes falamos demais, mas não praticamos o que falamos. Escrevemos demais, mas não praticamos o que escrevemos. Somos como o caçador, perdemos a vida por causa da linguagem ou da língua.

Acredito na filosofia da linguagem ao dizer que o grande problema da humanidade é a linguagem. Através dela falamos, ouvimos, entendemos e vemos o mundo e o transformamos. Deixa-me inquieto, e muitas vezes me apavora quando Wittgenstein diz “sobre aquilo que não podemos falar, devemos calar”.

Não sei de nada, talvez eu concorde com Heidegger quando diz que a devastação atingiu a linguagem, já que para o filósofo o mundo é o destino da língua. Mudamos o “destino” ou não seremos capazes de impedir o deserto crescer.

Marcio dos Santos Rabelo
Enviado por Marcio dos Santos Rabelo em 26/07/2010
Código do texto: T2401352
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.