O que esconde “a festa da democracia”?

Nessas eleições municipais houve uma importante renovação política. No Rio de Janeiro, 41% dos 51 vereadores são novos, muitos exercendo seu primeiro mandato na Casa. A vereadora Amanda Gurgel, do PSTU, foi eleita com 32.819 votos em Natal. Ela representa um partido de esquerda que até então tinha uma intervenção exclusivamente extraparlamentar e representa a nova geração de lutadores, tendo se projetado inicialmente através do Youtube e das redes sociais. A candidatura de Marcelo Freixo, do PSOL, aglutinou a juventude e fortaleceu o seu partido no município, fazendo com que sua bancada na Câmara dobrasse (passou de 2 para 4 vereadores), sendo a maior bancada de oposição ao prefeito reeleito, Eduardo Paes. O PMDB, no entanto, continuou sendo hegemônico, com a maior bancada da Câmara Municipal do Rio e mantendo o Executivo municipal. A força do poder econômico e da grande mídia se impôs através de uma campanha eleitoral milionária e de uma campanha aberta dos grandes meios de comunicação, em especial a Rede Globo, para o atual prefeito. Os negócios da Copa do Mundo e das Olimpíadas estão assegurados e os recursos públicos serão direcionados especialmente para este fim.

Esse processo eleitoral foi marcado por muitas contradições. Houve um crescimento da oposição de esquerda na sociedade civil e na institucionalidade, mas a polarização PT versus PSDB foi reafirmada na principal capital do país, São Paulo. A população votou, mais do que com um sentimento de esquerda, com um sentimento de renovação. Também no campo da direita novos quadros puderam emergir e muitos antigos perderam seus mandatos. Velhos políticos como César Maia demonstraram um importante desgaste com uma votação que ficou muito aquém da esperada, com o fracasso da chapa de seu filho, articulada por ele, e pelo naufrágio do DEM no Rio. Apesar do voto pela renovação, que se expressou nos 28,15% dos votos de Marcelo Freixo e na eleição do primeiro prefeito eleito pelo PSOL, o ex-cortador de cana Gelsimar Gonzaga, na cidade de Itaocara, no estado do Rio de Janeiro, a abstenção revelou a outra face desse processo, a descrença no poder de mudança do voto. Os políticos profissionais, da direita e da esquerda, ao governarem todos de acordo com as recomendações dos organismos financeiros internacionais e com as bênçãos do imperialismo estadunidense, fizeram da democracia uma farsa. O povo vota, mas os burocratas é que governam e o fazem no interesse dos banqueiros e do grande empresariado. A corrupção generalizada e a retirada de direitos dos trabalhadores serviram para fomentar um sentimento anti-regime, que se manifestou na abstenção de 22 milhões de brasileiros. Por outro lado, essa também é a expressão de um sentimento contrário ao voto obrigatório (principalmente num país em que os políticos governam para si e não para os seus eleitores). O voto foi facultativo na prática. É preciso que se reconheça em lei o voto enquanto direito e não como obrigação. No Rio de Janeiro, a abstenção de 20,45% do eleitorado (965.214 votos), os 8,48% de votos nulos e os 5,03% de votos em branco, 318.461 votos e 188.862 votos, respectivamente, totalizando mais de 33% do total de votos, demonstraram a insatisfação de parcela significativa dos cariocas não só com o atual prefeito, mas com a política da cidade. Se somarmos esse número ao total de votos de toda a oposição de esquerda representada por Marcelo Freixo, do PSOL, Cyro Garcia, do PSTU, e Antonio Carlos Silva, do PCO, 28,15%, 0,39% e 0,03%, respectivamente, temos mais de 60% do total de votos contra a atual administração. Com isso, mesmo com seus mais de 2 milhões de votos, mais de 60% dos votos válidos e 55,87% do total de votos, uma votação expressiva, o prefeito Eduardo Paes não teve uma vitória que garantisse a legitimidade que ele esperava. Outro ponto positivo para a esquerda foi a reeleição de Heloísa Helena, do PSOL, para a Câmara Municipal de Maceió. Ela foi candidata à presidência da República pela Frente de Esquerda (PSOL-PSTU-PCB) em 2006, quando obteve 6,5 milhões de votos. E em Niterói, os vereadores mais votados foram Paulo Eduardo Gomes e Renatinho, também do PSOL.

Apesar de todos esses números e de todos os resultados eleitorais positivos para a maioria dos partidos de esquerda, tanto os do governo quanto os da oposição, a realidade objetiva do Brasil é outra. Enquanto “a festa da democracia” acontecia, manifestantes sofriam com a violência policial desmedida no Rio Grande do Sul em protesto em que foi esvaziado o mascote da Copa e da Coca-Cola. No ano passado, 13 pessoas foram presas arbitrariamente, contra as normas legais, em nome da segurança nacional, no ato contra Obama no Rio, indo para presídios e tendo os homens as suas cabeças raspadas como em Guantánamo ou nos campos de concentração nazistas. Centenas de bombeiros foram presos também a mando do governador Sérgio Cabral, numa repressão brutal a uma manifestação da categoria. Dezenas de estudantes da USP foram espancados, torturados e presos. No início de 2012, o massacre do Pinheirinho chocou o Brasil e o mundo com a remoção de várias famílias, estupros e assassinatos a mando do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do PSDB e da Opus Dei. As remoções de famílias pobres e o “Choque de Ordem” foram as marcas de toda a gestão de Eduardo Paes na cidade do Rio. A repressão do governo federal e dos governos Cabral, do PMDB, no Rio e Jacques Wagner, do PT, na Bahia à greve de policiais militares, policiais civis e bombeiros foi outro exemplo de criminalização dos movimentos reivindicatórios, inclusive com o uso das Forças Armadas. O boicote dos velhos colaboradores da ditadura militar à Comissão da Verdade e as UPP´s, estados de sítio inconstitucionais, compõem ainda esse quadro. O número crescente de assassinatos de pessoas negras e pobres e moradores de favelas por policiais tem indignado o mundo. O Brasil vem sendo questionado pelas Nações Unidas pelo desrespeito aos direitos humanos. Nós somos a quarta população carcerária do mundo, perdendo apenas para a China, os Estados Unidos e a Rússia. E, por fim, o atual julgamento do mensalão, que, independente da participação ou não de membros importantes da cúpula do PT desse fato, segue a dinâmica de uma Inquisição e mais parece uma vingança política e uma tentativa desesperada da direita de “ganhar no tapetão”. O Procurador-Geral da República afirmou que “as provas testemunhais também são provas”, deixando claro que não há provas suficientes contra todos os indiciados. Um dos ministros do STF afirmou que “os indícios podem ser considerados como prova penal”, ou seja, o ônus da prova para o acusador e a presunção de inocência foram princípios do direito ignorados nesse caso. Por que será que o mesmo tratamento não foi dado para Daniel Dantas, que obteve um habeas corpus dado pelo Supremo de imediato, ou para o Carlinhos Cachoeira, que zombou do Congresso Nacional e dos brasileiros com o seu “direito de permanecer calado”? É a ditadura do capital aberta e escancarada. O Estado Policial e o fascismo ameaçam os movimentos sociais brasileiros. É preciso reagir não só com votos, mas nas ruas. Os servidores públicos federais deram um importante exemplo com sua greve contra o governo Dilma, a maior desde o governo Sarney. Esse é o caminho.

A democracia brasileira está em perigo. Estamos espremidos entre o golpe da direita no Paraguai e uma ditadura bonapartista de esquerda na Venezuela. Mais do que nunca a luta deve ser pela democracia direta dos trabalhadores, mas para que possamos atingi-la, precisaremos defender primeiro as liberdades democráticas que temos hoje.