Tudo por causa de uma tal PEC das domésticas

As manifestações populares caracterizadas como “Protestos de Junho”, ocorridos no final do primeiro semestre de 2013, trouxeram para as ruas um mundo de gente descontente. A intensa participação da classe média, curiosamente a maior beneficiada pelo progresso econômico e social experimentado pelo país na última década, pôs em polvorosa os analistas. Por que essa gente que faz parte de uma geração historicamente tão bem colocada, que vivencia o avanço dos indicadores sociais que dobram ou triplicam nesse período, segundo a Organização das Nações Unidas, invade repentinamente a rua com o lema “#OGiganteAcordou”?

Em grande parte a indagação permanece sem uma resposta satisfatória, até porque quem está dormindo não cresce em seus indicadores sociais mais sensíveis, como educação e saúde, em um ritmo tão impressionante. Da mesma maneira, o cenário econômico não é catastrófico, embora apresente uma certa desaceleração e o crescimento moderado da taxa de juros para desencorajar a pressão de uma inflação. Nada disso seria, portanto, caldo bastante encorpado para gestação de uma comoção popular nos moldes da ocorrida.

Excluídas as possibilidades decorrentes de crise social ou econômica agudas, os motivadores clássicos do descontentamento popular, resta analisar outras possibilidades normalmente desconsideradas. A partir daí a nossa investigação precisa ser cuidadosa, uma vez que as variáveis poderiam tender ao infinito. Se considerarmos o desfecho violento de muitas das manifestações então, sem a redução simplista a puro vandalismo disseminada pela mídia, a investigação teria de tocar o próprio comportamento humano. Mas não pensamos que seja assim tão difícil achar o fundo do saco.

A análise dos acontecimentos políticos marcantes do primeiro semestre de 2013, mas principalmente os desdobramentos dos acontecimentos do segundo semestre de 2012, no que pese o julgamento do chamado “Mensalão” e dos resultados das eleições municipais, parece nos dar pistas importantes da gênese do descontentamento. Vejamos por partes.

Primeiro, tomemos o julgamento do dito “Mensalão”, vendido pela mídia como fato histórico, uma vez que colocaria no banco dos réus pessoas pretensamente poderosas, membros do governo e de seu partido político. Transmitidas ao vivo pela maior rede de televisão do país, as sessões do Supremo Tribunal Federal tornaram o fato um espetáculo, marcando claramente os bandidos e os heróis da história. O desfecho, com a condenação dos réus, mas sem a sua prisão, formou na opinião pública duas convicções que embasaram os protestos: (1) Os políticos são corruptos e a justiça é impotente contra o seu poder; e, (2) o Governo é corrupto e formado por gente da pior espécie.

Terminado o espetáculo do “Mensalão”, veio o das eleições, as primeiras sob a égide da “Ficha Limpa”. E o povo foi às urnas pretensamente sabedor das lições do julgamento realizado pelo STF. Não poderia errar! Mas veio o resultado. O partido do governo mostrou um crescimento impressionante, superando todas as previsões. Além disso, muitos candidatos “ficha suja”, beneficiados por brechas na Lei e por expedientes de todo tipo, elegeram-se. Ademais, com a eleição para prefeito, alguns deputados deixaram os cargos de deputados e esses foram ocupados por suplentes que haviam sido réus condenados na Ação 470, o “mensalão”. E àquela convicção da opinião pública, juntou-se outra: o brasileiros não sabem votar e pela via eleitoral nada mudará.

Essas convicções passaram a povoar o universo ideológico. Nas redes sociais multiplicaram-se as manifestações contra um governo corrupto e pintou-se um país à beira do caos. Acontecimentos pontuais, repetidos estrategicamente até a exaustão pela mídia, como crimes horrendos, cristalizaram essa visão do “pior dos mundos”. O cenário internacional, onde a crise econômica tem provocado o desemprego, o empobrecimento da população e revoltas populares serviram de inspiração. Estava montado o barril de pólvora. Só faltava o estopim, aquele evento capaz de afetar a maioria da população, a classe média, alterando suas vidas de modo a converter o descontentamento em ação. E ele veio.

Historicamente, a figura da doméstica surgiu com a “bá”, aquela escrava trazida da senzala para a casa grande para cuidar dos afazeres domésticos e das crianças da senhora. “Da família”, a “bá” era uma espécie de agregada, com liberdades de que não dispunham os outros escravos, às vezes até alforriada pelo senhor como sinal de gratidão pelos serviços prestados. Essa visão ultrapassou a barreira do tempo e veio a democracia, a CLT e as constituições, sem que a doméstica tenha deixado de ser a “bá” em certa medida, uma vez que os seus direitos nunca se equipararam aos dos demais trabalhadores brasileiros. Mesmo a Constituição Federal de 1988, a “Constituição Cidadã”, não reparou essa injustiça.

Mas em 02 de abril de 2013 o Congresso Nacional aprovou e a Pesidenta Dilma Roussef sancionou a PEC nº 72, que teoricamente equiparou o emprego doméstico aos demais empregos no país. As repercussões foram enormes e as críticas incontáveis. Rapidamente as redes sociais repercutiam o descontentamento da classe média e um clima de terrorismo denunciava a possibilidade de desemprego em massa no setor. A firmeza do governo na manutenção da “PEC das domésticas” e a mobilização de sua bancada e aliados no sentido de manter os direitos garantidos pela lei, colocou-o em pé de guerra com a classe média, que se considerou a mais prejudicada pela medida. Era o estopim que faltava.

Afetada diretamente no bolso, essa classe média, que se beneficiou ao longo de todo os governos do PT com as medidas de aumento do consumo, experimentou seu primeiro revés. Sentiu, acusou o golpe e partiu para o revide. Foi fácil reviver todas as suas mágoas, relembrar o “Mensalão” e sua impotência diante do governo corrupto e de seu partido. O que se viu, com todos os argumentos que foram se juntando pelo caminho, foi só um desdobramento natural do descontentamento de uma classe que viu sua “bá” transformada em empregada e ainda teve que arcar com o ônus dessa metamorfose.