O 25 DE ABRIL ou A REVOLUÇÃO SEM HERÓIS

Ao ouvir o ronco dos motores de blindados, cerca das 3 e 30 da madrugada de 25 de abril de 1974, Natércia Maia correu a espreitar pelas frestas de estores postos para baixo nas janelas da sua casa, no centro da cidade de Santarém.

Tinha de ser assim porque lá por fora andavam uns «indivíduos estranhos», leia-se agentes da polícia política do regime, a PIDE/DGS. Mas a coluna comandada pelo seu marido, Fernando Salgueiro Maia, capitão de 29 anos, saía mesmo da Escola Prática de Cavalaria (EPC), na capital do Ribatejo, com destino a Lisboa e com o objetivo de derrubar a ditadura do Estado Novo, velha de quase cinco décadas.

Horas antes, ao ir para o quartel, Fernando disse a Natércia: «É capaz de ser hoje. Está atenta às rádios.» Deu-lhe conta das senhas para o arranque do golpe.

Às 22h55 da véspera, dia 24, os Emissores Associados de Lisboa deviam passar “E Depois do Adeus”, cantada por Paulo de Carvalho; e às 0h20 a Rádio Renascença emitiria a voz de José Afonso, cantando "Grândola, Vila Morena".

Salgueiro Maia saiu de casa à civil, com um pequeno saco contendo cigarrilhas e lenços de pano para se assoar, porque a sinusite não o largava.

Natércia sabia que o marido andava há largos meses em reuniões conspirativas do chamado Movimento dos Capitães. No final do dia 25, já Salgueiro Maia se encontrava no clímax do golpe transformado em Revolução, com a população a vitoriar entusiasticamente os militares sublevados.

No Largo do Carmo, defronte do quartel do Comando-Geral da GNR, onde o presidente do Conselho, Marcelo Caetano, e dois dos seus principais ministros estavam cercados, o capitão ia fazendo, de megafone em punho, a contagem decrescente para o fim da ditadura. Pelas 17h00 consumava-se a rendição da cúpula do regime. Posteriormente os três governantes embarcaram num avião, exilados para o Brasil.

Entretanto, no dia seguinte, Salgueiro Maia já começava a ser alcunhado de «herói do 25 de Abril», o que lhe desagradava profundamente. De temperamento difícil, chegou a ter atitudes deselegantes para quem na rua o saudava com aquele elogio, a ponto de Natércia lhe chamar a atenção e o repreender.

Posteriormente e com orgulho, reivindicar-se-ia «capitão de abril» em estado puro, recusando ofertas (um lugar no Conselho da Revolução, adido militar numa embaixada à sua escolha, governador civil de Santarém...), até um cancro lhe tirar a vida, a 4 de abril de 1992, aos 47 anos.

Apesar disso (ou talvez por isso mesmo...) seria marginalizado e humilhado pela hierarquia militar, a que nunca se rendeu.

Em jovem, Salgueiro Maia acreditou noutra causa, a do Portugal Salazarista, uno e indivisível, do Minho a Timor. Pegou convictamente em armas para defender o Império lusitano, «invejado» pelas potências donas do mundo.

A Guerra Colonial tinha começado em 1961 e a instituição, que fora elitista, abria agora as portas aos filhos da classe média.

Fez duas comissões de serviço, uma em Moçambique e a outra na Guiné.

Ano e meio após aquela data, o dia 25 de abril, Salgueiro Maia ainda participou nas operações do 25 de novembro de 1975, de «normalização democrática», às ordens do então Presidente da República, Costa Gomes. Mas posteriormente seria marginalizado e humilhado pela hierarquia militar. Foi sucessivamente «chutado», a partir de 1976, para funções burocráticas nos Açores, em Lisboa, no Presídio Militar de Santarém (onde substituiu um sargento-ajudante na chefia de uma secção de detidos...) e no quartel de Santa Margarida. Durante oito anos não lhe seria permitido regressar à Escola Prática. «Cumpri a pena sem saber por que me condenavam» dirá mais tarde. «Houve uma revanche da direita militar, uma perseguição administrativa feita com uma arma chamada caneta», argumenta um colega de abril, o também capitão Sousa e Castro.

Mantendo-se no Exército, para não se render à hierarquia, Maia dedicar-se-ia a outras realizações pessoais: concluiu a licenciatura em Ciência Sociais e Políticas, tirou uma pós-graduação em Antropologia, tornou-se dirigente da Associação dos Amigos dos Castelos, desdobrou-se em viagens de férias ao estrangeiro e, sendo a Natureza madrasta para Fernando e Natércia, o casal adoptou duas crianças Catarina e Filipe, nascidos respetivamente em 1985 e 1988.

Em vida apenas seria agraciado, em 1983, com a Ordem da Liberdade. Provocador, solicitou uma pensão por «serviços excecionais ou relevantes prestados ao País» só invocando a Operação Fim de Regime. Não juntou louvores de guerra e tinha-os, muitos, assim como aquilo a que na intimidade chamava «as merdalhas». Foi uma carga de trabalhos, a ponto de a tal pensão apenas lhe ser atribuída, quase ao mesmo tempo que a Ordem da Torre e Espada, a título póstumo, através da viúva.

O tenente-coronel Salgueiro Maia quis ser sepultado em campa rasa, em Castelo de Vide, ao som de “Grândola, Vila Morena”.

Morreu amargurado e revoltado.

Igualmente não lhe chegou a tempo o poema que Sophia de Mello Breyner lhe dedicou, publicado em 1994:

Aquele que na hora da vitória

Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância

Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso

Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi “Fiel à palavra dada, à ideia tida”

Como antes dele, mas também por ele

Pessoa disse.

Ferreira Estêvão, Texto baseado em artigo publicado na VISÃO História nº 23 e de 1 de março de 2014 - autor desconhecido.
Enviado por Ferreira Estêvão em 15/04/2024
Código do texto: T8042008
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