AS MENTIRAS DOS RELIGIOSOS: UMA VIDA SEM DEUS É TAMBÉM UMA VIDA SEM SENTIDO?

“Os cientistas afirmam que o universo está fadado a morrer. Como ele está em expansão desde o Big Bang, tudo que nele existe está se tornando cada vez mais distante. Com o passar do tempo, as estrelas perderão seu calor e irão morrer. Deste modo, o universo se tornará cada vez mais frio, e sua energia irá se esgotar. O espaço ficará repleto de cadáveres estelares que serão tragados por buracos negros. E até mesmo os buracos negros serão consumidos e irão se evaporar. Assim, todas as coisas estão condenadas a desaparecer sob os escombros de um mundo agonizante. Tudo o que foi construído pelo homem desaparecerá sem deixar nenhum vestígio. ‘Tudo aquilo que já formou você, as montanhas, as estrelas e tudo o mais será uma coisa só: um mar escuro de energia. Um mar cada vez mais frio, inerte. Sem nada nem ninguém para acender a luz.’”

Wagner Kaba

“No que diz respeito às minhas próprias crenças, sou incapaz de discernir qualquer propósito no Universo, e ainda mais incapaz de desejar encontrar algum”

Bertrand Russell

O quadro catastrófico pintado acima é mais ou menos o que acredita a maioria dos ateus. Embora existam sólidas evidências de que o universo caminhe no rumo desta história, os teístas acreditam que, de certa forma, Deus irá intervir antes que tais desastres cósmicos aconteçam e restaurará a ordem, perfeição e harmonia de todas as coisas. Não apenas o universo estaria fadado à ruína e à destruição, mas todos nós individualmente. A maioria dos ateus não crê que exista uma vida após esta, um mundo depois deste, uma alma que sobreviva à morte do corpo ou uma reencarnação. Toda nossa existência estaria destinada a se extinguir num eterno dormir sem sonhos. Os teístas, ao contrário, acreditam que temos uma alma que sobrevive ao corpo (pelo menos a maioria deles acredita nisso), que após a morte Deus julgará os justos e os injustos dando-lhes o merecido tratamento, alguns crêem num inferno para os injustos e um paraíso de eterna alegria para os justos, outros crêem num eterno paraíso terreno para os bons e uma obliteração para os maus e há ainda os que crêem na reencarnação como expiação dos pecados.

É inegável que as teses teístas são mais aprazíveis que as ateístas, que soam demasiado desesperadoras, mas isso não as torna mais ou menos verdadeiras. Talvez apenas explique porque a religião ainda possui tantos adeptos, uma vez que os homens, pouco ou muito sensatos, mas geralmente os pouco sensatos, têm o hábito de aceitar como verdadeiro aquilo que mais lhes agrada. Aproveitando-se disso, os religiosos se empenham obstinadamente em mostrar o quão terrível é a visão de vida e de mundo do ateísmo e o quão deplorável é a posição do homem nestas circunstâncias (sem falar do parentesco entre homens e macacos). Ressaltam a inutilidade e o vazio da vida supostamente inerente ao pensamento ateísta e apontam para o teísmo como a alternativa mais viável (mas não muito racional) ao desespero ateísta de uma existência finita e de um mundo vazio de significado. Se Deus não existe, a vida seria totalmente desprovida de sentido. Seria inútil fazer qualquer coisa, seria inútil sem bom, pois não levaremos nada desta vida, sequer lembranças e todas as nossas conquistas serão destruídas quando enfim o planeta Terra for tragado pelo moribundo Sol ou o universo inteiro ruir sob a força de sua própria gravidade.

A crítica teísta não é totalmente falsa nem absolutamente infundada. No entanto ela é deficiente e superficial. Tampouco o ateísmo propõe algum sentido à existência. Nem deveria fazê-lo, uma vez que a ausência de doutrina é um dos fatores que faz com que o ateísmo não possa ser considerado uma religião (Não, o ateísmo não é uma religião. Isso poderia até ser tema do próximo artigo da série “Mentiras dos religiosos”). Os teístas se utilizam de uma falsa redução ao absurdo. Tentam mostrar que, por não assumir que a vida tenha um sentido, o ateísmo é falso, mas já passou pela cabeça deles que a vida pode realmente não ter sentido? Na verdadeira redução ao absurdo, uma conclusão diferente da proposta gera uma contradição, mas não há contradição alguma se assumirmos que a vida e o mundo não têm sentido. O que acontece é que esta tese é demasiadamente dolosa e indigna para os melindrosos corações dos religiosos. Ela é apenas sentimentalmente insustentável, sem ser racionalmente insustentável. Mas será isso mesmo que os ateus afirmam?

O ateísmo não pode apontar um sentido para a vida, pois isso o caracterizaria como uma doutrina. No entanto, os ateus se dividem quanto a essa questão, desde os que acreditam que nós damos o sentido e direção das nossas vidas aos que negam que a vida possa ter qualquer sentido ou até mesmo que precise ter algum. Porém, dificilmente um ateu defenderá que a vida possui algum sentido a priori. Embora eu transite entre as duas primeiras concepções, familiarizo-me mais com a primeira. A vida não pode ter um sentido anterior a ela mesma, uma vez que não passamos de frutos de um feliz (ou não) acidente. Tampouco pode o universo ter algum sentido além do que damos a ele. É totalmente insensato procurar algum propósito real. Sentido está ligado à direcionamento, conseqüentemente, à finalidade. O sentido é o “para que” de alguma coisa, mas o “para que” só existe se algo for feito com aquela finalidade. Para existir finalidade é preciso existir intencionalidade, o que a natureza não possui por ser irracional. Procurar um sentido para as coisas da natureza é antropomorfizá-la. Somente homem age por intenção, até onde sabemos, por conseguinte, com finalidade.

Outro problema de assumir que a vida tem um sentido anterior a ela mesmo seria nos reduzir a meros instrumentos. O propósito, que a razão humana dá às coisas por ela fabricadas, é definido de acordo com a utilidade que esta coisa tem para quem a fabrica ou para outros. Assumir que minha vida tem um sentido é assumir que ela tem utilidade para alguém que não sou eu, uma utilidade que me é imposta por um outro, um ser estranho a mim. A utilidade da minha vida já foi fixada antes que eu pudesse nascer e eu nada poderei fazer para mudá-la, ou seja, não passo de um objeto. A diferença fundamental entre homens e objetos, o que faz com que a existência destes tenha sentido e a daqueles não, é que homens são livres. Quem quer que seja poderia dar um sentido para minha vida, mas sempre quem decidirá se vou seguir tal propósito serei eu. Uma faca não pode, de repente, escolher não seguir o propósito para a qual foi criada, mas o sentido da vida dos homens está sempre em suas mãos. Mesmo que houvesse um sentido para a vida humana diferente do que é construído pelo próprio indivíduo e estipulado por Deus, pela natureza ou qualquer coisa exterior ao próprio indivíduo, segui-lo seria negar nossa liberdade e se deixar coisificar. A capacidade de escolher o propósito, conseqüentemente a utilidade da nossa vida, é o que nos torna livres, por conseguinte, humanos.

Antes de analisar a resposta de alguns ateus (mas não do ateísmo, pois este não tem resposta alguma, uma vez que não é doutrina), analisemos o que seria o sentido da vida para os teístas? Eu levaria um longo tempo pesquisando e meditando em busca da resposta teístas para esta pergunta em vão, porque ela simplesmente não existe! Os teístas acusam o ateísmo de tirar o sentido da vida, mas eles mesmos não propõem sentido algum! Para não ser injusto com os teístas, posso dizer que eles tentam propô-lo, mas não são felizes nessa tentativa. O que conseguem fazer é apenas criar um falso propósito para a existência depositando-o em outra existência no além. O sentido desta vida seria chegar a uma outra, mas poderíamos jogar esta pergunta rasteira a um teísta: e qual o sentido da outra vida? Se ele disser que não sabe, poderíamos prosseguir: como você pode querer essa outra vida que você nem sabe pra que serve (se é que serve para alguma coisa)? A estratégia teísta responde apenas qual o sentido DESTA vida, mas não o sentido da vida como um todo. Na verdade, esta resposta demonstra um pensamento estreito e imediatista. Os teístas só sabem que o objetivo desta vida é chegar a uma outra vida, mas não sabem qual o objetivo da outra vida que perseguem, como alguém que sabe que se alimenta para sobreviver, mas não sabe a utilidade da sua sobrevivência.

Outra falsa resposta dos teístas demonstra menos ignorância que baixa auto-estima, embora tenha as duas em altíssimas doses. Para alguns o sentido da vida, tanto esta quanto a próxima, é louvar a Deus (?!). Sem nos perguntar ainda que utilidade louvores teriam para um ser que é perfeito, ou seja, que não precisa de nada, e onipotente, isto é, que pode ter qualquer coisa, é interessante notar até que ponto o medo da morte e o desespero leva os seres humanos. Deixar-se tornar uma máquina de adoração com livre-arbítrio em troca da existência é algo demasiado deprimente e humilhante. Isso remonta ao que já foi dito no parágrafo quinto, onde afirmo que ter um sentido para a vida anterior a ela mesma nada mais é que coisificação, desumanização e instrumentalização do ser humano. Isso é algo sádico por demais para ser feito por um ser tão puro e bom. Eu, particularmente, preferiria mil vezes o inferno a me submeter a tal condição. Somente o medo da morte e do sofrimento seria capaz de fazer pessoas aceitarem condições tão deploráveis em troca de uma mísera existência. Isso só prova que a religião é a prerrogativa dos fracos, que são demasiado covardes para renunciar a uma vida indigna no paraíso dos tolos ou enfrentar o sofrimento eterno como um castigo injusto! E como bem disse Bertrand Russell: “Ninguém senão um covarde escolheria conscientemente viver no paraíso dos tolos”.

Voltemos nossa atenção agora para problemas de cunho mais lógico-metafísicos. Como foi dito no parágrafo quinto, o sentido ou propósito de alguma coisa é determinado pela sua utilidade. Se nossa vida tem um sentido, é a utilidade dela quem vai nos dizer qual seria. Nossa vida não poderia ter utilidade para ela mesma, uma vez que a utilidade é anterior à existência. Sendo assim, ela só poderia ser útil para algo ou alguém que nos fosse anterior, no caso dos teístas, Deus. Supondo que Deus seja perfeito, ele é pleno, isto é, completo. Desta forma, ele já possui e sempre possuiu tudo que precisa, e nada poderia acrescentar-lhe alguma coisa ou poderia fazer-lhe falta ou diferença. Com efeito, ele não precisa de adorações, pois existiu sem adorações por um tempo infinito antes de criar o homem e isso não lhe fez falta alguma, nem poderia fazer, já que ele é perfeito. Ora, se as adorações e louvores não são úteis para Deus, então nossa vida não tem sentido, pois não tem utilidade. Seria o mesmo que, como Sísifo, rolar uma pedra inutilmente sobre a escarpa de uma montanha apenas para vê-la rolar morro abaixo e depois repetir o mesmo trabalho eternamente. Foi esta a lição que Sísifo aprendeu por amar tanto a vida e querer se tornar imortal: uma vida efêmera é tão desprovida de sentido quanto uma vida eterna, mas esta é insuportável por ser infinita. Na verdade, os deuses devem invejar muito a finitude dos humanos.

Nós somos absolutamente inúteis para Deus. Sendo assim, para que ele teria nos criado? Com que finalidade e com qual sentido? Ora, como foi dito antes, apenas a razão age tendo em vista finalidades. Se assumirmos que Deus é racional, isso o deixará numa fatal contradição: Deus precisa ou não precisa de nós. Se precisa, então não é perfeito, pois o perfeito não precisa de nada além do que já possui. Se Deus não precisa de nós, não pode ser considerado racional, pensante ou inteligente, pois a razão sempre age tendo em vista as finalidades. É impossível imaginar, por exemplo, um homem construindo um artefato que não tenha nenhuma finalidade (nem que seja provar que é possível construir um artefato sem finalidade). Também é impossível imaginar um ser racional criar algo que não tenha alguma utilidade. Afirmar isso é igualar Deus às forças cegas e irracionais da natureza e, com efeito, retirar novamente qualquer sentido ou utilidade da existência humana e do universo.

Todas as tentativas teístas de estipular o propósito da existência humana esbarrarão inevitavelmente no paradoxo acima demonstrado. Não podendo ser útil para nós (uma faca não pode ser útil para ela mesma) ou para Deus, nossa vida volta a perder seu sentido. No entanto, mesmo que houvesse alguma finalidade em nossa vida para algo além de nós mesmos individualmente, somos nós que decidimos, em última instância, o sentido que queremos dar à nossa vida (ou se queremos dar-lhe algum). Se Deus tivesse nos criado com o único intuito de sermos meras máquinas de adoração com livre-arbítrio, seríamos nós que escolheríamos se cumpriríamos a finalidade pré-estabelecida, voltando novamente a responsabilidade para o próprio indivíduo, não para algo exterior a ele, provando que, embora alguém possa exigir de nós uma função, a escolha de exercê-la é nossa e sempre seremos nós quem definiremos o sentido de nossa vida e o seu sentido será sempre fundamentado na sua utilidade. Posso fazer com que minha vida seja útil, não para Deus, mas para outra pessoa, e isso não é outra coisa se não dar um sentido para a vida.

É tão somente nisso que acredita a maioria dos ateus. Que quando fazemos nossa vida ser útil para outros, estamos dando sentido a ela, quer seja em curto prazo, como educar os filhos ou estar na lembrança dos amigos enquanto estes viverem, quer seja em longo prazo, como descobrindo a cura de uma grave doença ou contribuindo para o amadurecimento intelectual de algumas pessoas . De toda forma, nossa vida será útil e é medindo a utilidade dela que descobriremos qual é o seu sentido e fazemos com que ela valha a pena “e a dor de ser vivida”. Nós não vivemos para nós, mas apenas para os outros. Não escolhemos vir para este mundo, mas podemos escolher fazer com que nossa curta permanência faça alguma diferença*. Acreditar em uma vida após esta pode até ser mesmo prejudicial, pois isso poderia fazer com que busquemos apenas nosso próprio bem e esqueçamos-nos de ser úteis para os outros ou que acreditemos que rezar é mais útil que ajudar diretamente.

Nós podemos escolher por quantas gerações queremos ser úteis (claro que nem sempre podemos realizar estes planos). Posso escolher ser lembrado por duas gerações, pelos meus filhos e netos como um bom pai e bom esposo, por exemplo, ou posso escolher ser lembrado por séculos e séculos como grande poeta, cientista ou filósofo. Claro que destes propósitos, uns são mais fáceis que outros e uns mais úteis que outros. Só não posso querer ser útil por toda eternidade, pois a humanidade não é eterna. Quando todos nós estivermos jazendo no silêncio da morte cósmica, tudo que construímos há de se acabar e o sentido de nossas ações também morrerão, mas isso não é motivo para deserção. É aqui que entra a crítica da “ala radical” do ateísmo: a vida não precisa ter sentido! As pedras não têm finalidade, os astros não têm finalidade, tampouco o têm os rios e os mares. Assumir um sentido para a vida seria tornarmo-nos objetos, que seja de Deus, ou da Seleção Natural ou dos outros homens. Aceito esta concepção com ressalvas. Digo que a vida não precisa necessariamente ter um sentido, mas que ela pode tê-lo dependendo da vontade do indivíduo. O sentido dado a ela não será de forma alguma ilusório. Ele será real, enquanto a motivação de nossas ações existir, quer seja nossos filhos ou toda a humanidade. Depois de um tempo, não sabemos se muito ou pouco, todos os efeitos dos nossos atos dormirão eternamente no limbo da ausência de propósito ou sentido. Talvez isso seja muito duro para alguns, mas encaro isso com grande tranqüilidade (diria até alegria). Uma vida com sentido pré-estabelecido nos igualaria a atores interpretando um personagem. A vida não ter sentido significa que podemos inventá-lo... ou até viver sem nenhum. Por que não?

* Isso evita também a visão de que ateus são depravados e hedonistas desenfreados. Que uma existência sem Deus aponta diretamente para a devassidão e para a libertinagem. Não é isso. A libertinagem, na verdade, retira o sentido da vida, em vez de dar-lhe algum. Quando morremos, são os outros quem ficam aqui. Nada levaremos dos prazeres dos sentidos. Eles só nos são úteis durante a vida. Não condeno os prazeres, mas sim achar que eles podem ser um sentido para a vida. Eles são úteis apenas para nós, para deixar esta vida menos insuportável, mas depois dela, nada deixaremos aos outros dos prazeres que sentimos. Mas eu gastaria muito tempo explicando minha opinião sobre esse assunto, e não disponho de tanto.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 14/11/2009
Reeditado em 26/07/2011
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