SERIA DEUS A CAUSA DO UNIVERSO?

Um dos mais famosos argumentos a favor da existência de Deus, e talvez aquele que é mais bem sucedido, o argumento cosmológico, conclui, de duas premissas, a saber, que tudo que tem começo tem uma causa e que o universo tem um começo, que o universo tem uma causa. Partindo dessa conclusão, adicionando outras premissas, o argumento esforça-se para provar que a causa do universo não poderia ser outra coisa que não Deus. O presente ensaio não pretende avaliar se as premissas do argumento cosmológico são verdadeiras, pois já existe uma vasta literatura a respeito disso, nem se a conclusão se segue logicamente das premissas, pois é evidente que ela se segue. Minha intenção aqui é analisar a definição do conceito de causalidade a fim de saber se tem sentido afirmar que Deus é a causa do universo. Desta forma, se for logicamente impossível que Deus seja a causa do universo, mesmo que o argumento cosmológico seja válido e tenha premissas verdadeiras, dele não se poderia concluir a existência de Deus.

Comecemos por analisar o que queremos dizer com causalidade. Primeiramente, é importante ressaltar que causa e efeito não são propriedades de coisas, mas de eventos. Desta forma, não tem sentido dizer que uma coisa tem uma causa, mas tem sentido dizer que sua fabricação tem uma causa. Quando dizemos que esta mesa tem uma causa, queremos dizer, na verdade, que sua transformação de madeira bruta em artefato, que é um evento, tem uma causa, que é outro evento. Assim, o que teria uma causa não é o universo, mas o surgimento dele. Embora essa observação possa parecer banal e até mesmo trivial, ela será de grande importância do decorrer do raciocínio. Sendo, pois, causa e efeito, propriedades de eventos, o que significa para um evento ser uma causa ou um efeito? A melhor definição de causa e efeito foi dada, talvez, por David Hume, segundo o qual, causa e efeito são eventos que geralmente se sucedem no tempo, sendo o primeiro a causa, e o segundo o efeito. Portanto, apenas dentro de uma relação temporal é que temos noção de causa e efeito. Quando levamos uma panela com água ao fogo, e depois de algum tempo a água começa a borbulhar e evaporar, observamos dois eventos que se sucedem no tempo. A constante observação desses dois eventos nos leva a concluir que existe uma relação entre tais eventos, que sempre que um ocorrer, o segundo também ocorrerá, disso nomeamos o primeiro como causa, e o segundo como efeito. Hume nega que exista alguma conexão necessária entre causa e efeito, mas isso não é relevante para nossos fins. O que importa aqui é entender mais claramente o que queremos dizer com tais termos. Desta forma, causa e efeito são eventos que geralmente se sucedem no tempo, onde, na ocorrência de um, ocorre o outro, e na ausência da causa, também é verificada a ausência do efeito.

Um dos problemas de tentar concluir que Deus, ou melhor, a vontade de Deus, é a causa do universo surge quando se tenta explicar como a vontade de Deus poderia ter causado o tempo. Se o universo é o conjunto de todas as entidades físicas existentes, e o tempo é uma entidade física, então Deus teria que ter criado o tempo também. Além do fato de que, de acordo com o próprio argumento cosmológico, bem como com renomadas teorias científicas, o início do universo também foi o início do tempo, isto é, não há tempo antes do Big Bang, e não faz sequer sentido em se falar em algo que tenha existido antes dele. Mas se causa e efeito são eventos que ocorrem no tempo, como Deus pode ter causado o tempo, se antes de causar o tempo, não existia o tempo? A causa, como vimos, é um evento temporalmente anterior ao efeito, sendo assim, a causa do tempo teria que ser temporalmente anterior ao tempo, o que é absurdo. É impossível ser temporalmente anterior a algo se o próprio tempo não existir. A objeção mais comum a esse argumento é alegar que não definimos com precisão o conceito de causa e efeito, e que tais conceitos podem ser mais abrangentes que a mera relação temporal, permitindo, assim, que a vontade de Deus seja uma causa genuína da existência do universo. De fato, existem outras concepções de causalidade que não incluem essa relação temporal, como, por exemplo, quando dizemos que a causa que leva um aluno a estudar é tirar boas notas. Nesse exemplo, a causa não é anterior ao efeito, ao contrário, parece ser posterior, embora possamos questionar se essa é realmente a causa. Porém, aqui o termo “causa” toma o sentido de motivação, e não é esse o sentido que damos a esse termo quando dizemos que Deus é a causa do universo. Portanto, para nossos fins, a definição de causa e efeito de Hume é apropriada e dá conta do que significa, neste caso, ser causa e efeito.

A definição dada acima é coerente com nossas intuições sobre causalidade e sobre o sentido que queremos dar a esse termo na relação entre Deus e o universo, portanto, atacar a definição parece ser algo infrutífero. Outra objeção, no entanto, não tentar falsear a definição, mas acrescentar a ela outros conceitos, como o de simultaneidade. De acordo com essa objeção, a relação temporal é sim um conceito necessário para o conceito de causalidade, porém não seria necessário que a causa seja temporalmente anterior ao efeito. Não faria sentido dizer, por exemplo, que o atentado terrorista do 11 de Setembro foi a causa de o Brasil ter ganho a copa de 94. Nesse exemplo, parece intuitivo que a causa tem que ser temporalmente anterior ao efeito, e que algo que ocorreu em 2001 não poderia causar um evento em 1994, mas os objetores defendem que a causa pode ser simultânea ao efeito. Costumam citar como exemplo a deformação que uma bola maciça causa em uma almofada, ou a sombra que um poste projeta como exemplos de causa simultânea ao efeito. Nesses casos, argumentam, não existe sucessão temporal: o poste, que é a causa, e a sombra, o efeito, existem simultaneamente. Aqui existe um erro categórico. Como disse no segundo parágrafo, causa e efeito não são propriedades de coisas, mas de eventos. Assim sendo, o poste não pode ser uma causa, e a sombra, não pode ser um efeito. O que pode ser causa é a ação de projetar sombra, e o efeito a sombra ser projetada. Isso parece que não muda muito as coisas, mas esse pequeno esclarecimento nos faz ver que é falso que, nesse caso, causa e efeito são simultâneos. O que causa a projeção da sombra é a emissão da luz, e como sabemos, a velocidade da luz é finita. A impressão que temos de que os dois eventos são simultâneos é apenas uma limitação dos nosso sentidos. Eventos que se sucedem com uma velocidade muito alta são vistos para nós como simultâneos, mas não são. A mesma refutação é válida para o exemplo da bola e da almofada: a causa é um evento, isto é, o ato de colocar a bola sobre a almofada. Depois que isso é feito, leva-se um tempo até esta deformar-se, mas como esse intervalo de tempo é muito curto, não somos capazes de percebê-lo.

Outras objeções podem ser levantadas contra a crença de que causa e efeito podem ser simultâneos, como a de que isso levaria a absurdos. De acordo com o que defendemos até aqui, causa e efeito são fenômenos que se sucedem no tempo, sendo o primeiro anterior ao segundo. Se fosse possível que uma causa C fosse simultânea a um efeito E, não seria mais possível determinar o que é causa e o que é efeito, e perderia todo o sentido se falar de tais coisas. Por que, nesse caso, dizer que C é a causa, e não o efeito de E? Não haveria nenhuma razão particular para essa distinção. Tanto faz dizer que C é causa quanto que é efeito nessas condições, pois não há nenhum critério aqui para separar uma coisa da outra. Como já foi dito anteriormente, se um evento C é causa de outro evento E, e se C não ocorre, então E não ocorre. Assim sendo, se a vontade de Deus é um evento C, isto é, é uma causa, e a existência do universo é um evento E, e ambos são simultâneos, se E não ocorresse, C não teria ocorrido, o que significa dizer que E é a causa de C, o que é absurdo. Uma resposta para essa objeção é dizer que C poderia ter ocorrido e E, não, mas isso contradiz a onipotência de Deus, pois é impossível que Deus tenha vontade de criar o universo e o universo não seja criado. Outro absurdo que surge ao se pensar que causa e efeito podem ser simultâneos é que algo pode ser causa de si mesmo. O que impede esse absurdo é a noção intuitiva de que a causa é sempre anterior ao efeito, pois, nesse caso, para algo criar a si mesmo ele teria que existir antes de si mesmo, o que é impossível, mas se causa e efeito puderem ser simultâneos, então não existe nenhuma contradição real na afirmação de algo que cria a si mesmo. Um objeto poderia passar a existir, que é um efeito, isto é, um evento E, no mesmo instante em que causa a si mesmo, um evento C, e isso significa que algo pode dar existência a si mesmo, no exato instante em que passasse a existir, o que é um absurdo. Mesmo que se admita que na prática isso é impossível, pelo menos seria possível na teoria, isto é, é possível imaginar uma situação como essa se causa e efeito pudessem ser realmente simultâneos. A única forma de evitar absurdos como esse é admitir que a causa é sempre anterior ao efeito.

Uma última objeção é a que defende que Deus é um tipo especial de causa: uma causa atemporal. Isso se adéqua bem às definições clássicas de Deus, como um ser metafísico, transcendente, imaterial e atemporal. Essa objeção evita os constrangimentos decorrentes de se pensar numa causa simultânea ao efeito ou de se pensar em uma causa “antes” do tempo, isto é, em um tempo inexistente. Ela evita também as complicações de se pensar em um tempo infinito, ou negativo, que se estenda infinitamente antes do Big Bang. Para que o argumento cosmológico faça sentido, é preciso que o tempo tenha um começo, pois, caso contrário, não haveria nenhum problema assumir que a cadeia de causa e efeito se estende infinitamente no passado, não havendo necessidade alguma de uma causa primeira, ou ainda que, se o tempo existia antes do Big Bang, essa causa poderia ser algo físico, uma vez que o tempo é uma condição para a existência de entidades físicas. Em suma, um tempo que se estenda para além do Big Bang torna Deus uma hipótese dispensável, ou pelo menos uma hipótese muito ruim, utilizada apenas para preencher lacunas da nossa ignorância quanto aos acontecimentos. A tese que afirma ser Deus, ou a vontade de Deus, uma causa atemporal para a existência do universo preserva a finitude do tempo no passado, e ainda postula uma causa para ele. Mas será mesmo? Os defensores dessa tese são incapazes de explicar o que exatamente querem dizer com causa atemporal. Não utilizamos os termos “causa” e “efeito” para nos referirmos a causas atemporais, apenas para eventos dentro de uma relação temporal. Isso nos leva a crer que “causa atemporal” é algo destituído de sentido, apenas termos que, unidos, não querem dizer coisa alguma, ou, na melhor das hipóteses, algo muito distante do que queremos dizer quando afirmamos que Deus é a causa do universo, sendo algo próximo de causa no sentido dado no exemplo do estudante que estuda para tirar boas notas. Se falar em causa antes do tempo é falsidade necessária, causa fora do tempo é algo sem sentido, que não se pode dizer que é falso nem verdadeiro. A frase “Deus é uma causa atemporal” não é sequer uma proposição, assim como não o é a frase “O número três é verde”.

Por último, gostaria de retornar ao que falei no segundo parágrafo, que causa e efeito são propriedades de eventos, e não de objetos ou coisas. Se existe alguma relação entre Deus e a existência do universo (e vimos que isso é muito difícil sustentar), não se trata de ser Deus uma causa, uma vez que Deus não é um evento, mas a causa seria sua vontade de criar o universo. Porém, é um tanto incerto se se pode chamar a vontade de Deus de um evento, uma vez que eventos também pressupõem a existência do tempo. Uma maçã não é um evento, mas a queda de uma maçã, sim. Nossas vontades também certamente são eventos, embora não seja tão fácil determinar quando começam e quando terminam, mas, se Deus é atemporal, como a vontade de Deus pode ser um evento? Se eventos mantém uma relação com o tempo, mas Deus não mantém nenhuma relação com o tempo, portanto, sua vontade não pode ser um evento. Mas, se a vontade de Deus não pode ser um evento, também não pode ser uma causa, uma vez que ser uma causa é propriedade de eventos. Poder-se-ia alegar que Deus não é atemporal, e nesse caso, sua vontade seria um evento, mas isso gera grandes complicações, inclusive para a ideia de que Deus é imutável e perfeito: ora, se Deus está sujeito ao tempo, então ele não é imutável, consequentemente, não é perfeito. Poder-se-ia, inclusive, algar que Deus é atemporal, mas sua vontade é temporal, mas isso parece ser destituído de sentido. Embora me pareça claro que a vontade de Deus não é um evento, portanto, não pode ser uma causa, confesso que não refleti o bastante sobre esse argumento. No entanto, penso que mesmo sem ele, ainda existem motivos para descartar Deus como causa do universo. Todavia, se esse argumento estiver correto, mesmo que se encontre formas de relacionar a vontade de Deus e a causalidade do tempo, isso resultaria inútil, pois estaria provado que a vontade de Deus não pode, em hipótese alguma, ser uma causa.

De tudo que foi dito, pode-se concluir que concluir a existência Deus como causa do universo é uma falsidade lógica, pois não é possível haver causa antes do tempo nem simultânea ao efeito, ou uma afirmação que carece de sentido, no caso de uma causa atemporal. Existe também a dificuldade (ou impossibilidade) de se conceber a vontade de Deus como sendo um evento, e como apenas eventos podem ser causas, a vontade de Deus não poderia ser causa do universo. Não foi nosso intuito aqui analisar se o argumento cosmológico é correto ou não, mas provar que, mesmo ele estando correto, não se pode concluir dele que Deus é a causa do universo. Também não foi nosso intuito provar a inexistência de Deus, mas mostrar que a criação do mundo por Deus, se de fato ocorreu, não pode ser defendida racionalmente. Talvez a relação de Deus com o universo seja de outro tipo, que não a de causa e efeito, mas apenas como uma inteligência ordenadora. Embora eu considere os argumentos a favor dessa tese tão fracos quanto o argumento cosmológico.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 24/10/2011
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