IGREJA: EMPRESA DOS HOMENS OU FAMÍLIA DE DEUS?

“Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os discípulos, disse: Eis minha mãe e meus irmãos.” (Mt. 12:48-49)

Há algum tempo, passando por um templo evangélico, li a seguinte inscrição nos seus muros: “MAIS DO QUE UMA IGREJA, UMA FAMÍLIA”. Esta frase diz muito sobre como a comunidade dos crentes tem vivenciado atualmente a fé cristã e, como o mundo a tem percebido.

De um modo geral, a igreja tem se organizado e vivido como mais uma instituição moderna no mundo. Há reuniões programadas, líderes (que à vezes se apresentam como donos), prédios e uma quantidade variável de membros, que muitas vezes se comportam como clientes de produtos religiosos. E é só. Não há comunhão fraterna entre os membros, com real envolvimento afetivo entre eles. Somos expectadores de um espetáculo espiritual, mas não companheiros na jornada da vida cristã. Como diz o pastor Howard Snyder: “A igreja hoje sofre de uma crise de comunhão: simplesmente não está vivenciando ou demonstrando aquela ‘comunhão do Espírito Santo’ (II-Cor. 13:13) que caracterizava a igreja do Novo Testamento. Num mundo de instituições enormes e impessoais, a igreja muitas vezes parece apenas mais uma instituição enorme e impessoal.”[1]

Ora, a família não é mais que a igreja, porque esta é a família de Deus (Ef. 2:19; Gl. 6:10). A frase no muro do templo aceita o fracasso dos crentes em viverem como uma comunidade fraterna, em que todos se amam e se ajudam mutuamente. Não é a toa que mais de cento e trinta vezes o apóstolo Paulo usa o termo “irmãos” para se referir aos crentes em suas cartas.

Os crentes não são como irmãos, mas o são de fato, porquanto todos foram gerados pelo mesmo Pai (I-Jo 3:1). Viver em comunhão é refletir o caráter de Deus ao mundo, é pregar eloquentemente sem palavras. Gilbert Bilezikian afirmou com propriedade: “Comunidade é algo profundamente enraizado na natureza de Deus. Ela flui de quem Deus é. Porque ele é comunidade, ele cria comunidade. É o seu dom de si mesmo para os seres humanos. Portanto, construir comunidades não é algo que deva ser considerado opcional para os cristãos. Antes, é uma envolvente e irrevogável necessidade, um mandato divino inescusável para todos os crentes de todos os tempos.”[2]

Comunhão significa dentre outras coisas em compromisso, envolvimento e afetividade. Só assim poderemos cumprir diversos preceitos bíblicos como, por exemplo, chorar com os que choram, se alegrar com os que se alegram, praticar hospitalidade e compartilhar as necessidades uns dos outros (Rm. 12:9-15; I-Jo 3:17). O nosso laço é não apenas com Deus, pois Ele nos uniu a todos (I-Cor. 12:12-26). Não podemos, pois repetir a cínica interrogação de Caim: "Sou eu guarda do meu irmão?” (Gên. 4:9).

Quando a igreja foi formada viveu uma autêntica contracultura e impressionou o mundo de sua época. As barreiras sociais e étnicas caíram por terra e a comunidade cristã era uma grande família, em seu sentido mais profundo: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.” (At. 2:44). O historiador francês Paul Veyne afirmou que a sociedade romana foi impactada pelo comportamento amoroso da igreja, a qual ela chamou de “obra-prima”.[3] Embora haja discussão sobre a maneira como os discípulos administraram os bens, não temos como negar que entre eles havia um senso de comunhão muito forte, que era originado na graça de Deus (At. 4:33-35; II-Cor. 8:1-4 e 9:12-15). O teólogo Gottfried Brakemeier concluiu sobre a igreja primitiva: “Para os discípulos, a comunhão em que viviam era implicação e decorrência do evangelho, uma forma de atendimento do imperativo cristão e de vivência da fé.”[4]

No século XVI, os anabatistas tentaram viver o cristianismo de forma autêntica, recuperando o sentido de comunhão fraternal da igreja. Assim, o anabatista Ulrich Stadler escreveu em 1537: “Quando cada membro ajuda igualmente o corpo inteiro, o corpo cresce, e há paz e unidade, se cada membro cuida do outro”[5]. Outros grupos fizeram o mesmo esforço no decorrer da história como os quakers no século XVII e os metodistas no século XVIII.

Precisamos imediatamente restaurar o sentido bíblico da igreja, para que ela seja de fato aquilo que Deus planejou para ela: comunidade amorosa de homens e mulheres regenerados pelo poder do Espírito Santo.

[1] Vinho novo, odres novos: vida nova para a igreja. São Paulo-SP. ABU, 2005, p. 93.

[2] Citado em: Viola. Frank. Reimaginando a igreja. Brasília-DF. Ed. Palavra, 2009, p. 97.

[3] Quando o nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro-RJ. Civilização Brasileira, 2010.

[4] O “socialismo” da primeira cristandade. São Leopoldo-RS. Ed. Sinodal, 1985, p. 12.

[5] Selecciones teológicas anabautistas. Scottdale-Pensylvania e Kitchener-Ontario. Harold Press, 1985, p. 79.

George Gonsalves
Enviado por George Gonsalves em 23/07/2012
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