O ARGUMENTO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Não é muito difícil encontrar quem diga ter tido algum tipo de experiência íntima, única e indescritível com Deus. Ao mesmo tempo em que essa experiência é inexplicável, ela é mais certa que qualquer outra que possamos imaginar. Não se trata aqui de ver ou ouvir Deus. Sons e imagens podem não passar de meras ilusões, coisas criadas pela própria mente do sujeito. Esta experiência é diferente, é indubitável, impossível de estar errada, como a sensação de que estou vivo ou de que sinto dor. Nas palavras do padre Copleston, seria a consciência de “algum objeto que pareça à pessoa que está vivendo a experiência algo irresistível, algo que transcenda a ele mesmo, algo que transcende a todos os objetos normais da experiência, algo que não pode ser visualizado nem conceitualizado, mas de cuja realidade a dúvida é impossível”. Isso é o que eu chamarei aqui de “Argumento da Experiência Religiosa”.

Como o padre Copleston bem observa, isso não se trata exatamente de um argumento. Argumentos são construídos para provar a uma terceira pessoa que uma dada proposição é verdadeira. No caso da experiência religiosa, ela não serviria para provar para qualquer pessoa que seja, além do sujeito da experiência, que Deus existe. Ela só serviria para a própria pessoa que a vivencia e seria uma prova mais forte que qualquer argumentação, posto que tal experiência não pode ser colocada em dúvida. Eu posso sempre duvidar da existência daquilo que vejo ou ouço, posto que podem não passar de meras ilusões, mas não posso duvidar, por exemplo, que sinto dor quando eu de fato a estou sentindo. Não existe nenhuma dor ilusória. Crer que está sentindo dor já é estar sentindo dor. Por isso, a experiência pessoal seria mais confiável que argumentos baseados em evidências oriundas dos sentidos. Como, portanto, sustentar que Deus não existe, quando inúmeras pessoas relatam ter tido experiências com algo transcendente e poderoso? Como provar que tais pessoas não tiveram em contato com nenhuma divindade? Isso é, obviamente, impossível, mas vou argumentar aqui através de outra via: não tentando mostrar que tais pessoas não tiveram experiências com Deus, mas que, mesmo que tivessem tido, elas não poderia saber que se trata de um Deus. Em outras palavras, não faz sentido falar em “experiência religiosa”.

Para ilustrar o problema, usarei um argumento que encontrei na internet. Ele é fraco e bem mal elaborado, mas minha argumentação servirá para qualquer caso do mesmo tipo. Ele usa um tipo de experimento mental, onde duas pessoas estão conversando e uma pergunta à outra como ela sabe que Deus existe. A segunda pessoa responde com uma pergunta: se eu estivesse chupando uma laranja, e disse que ela é doce, como você saberia que ela é doce? Ao que a primeira pessoa responde prontamente: eu teria que experimentá-la. A segunda pessoa responde triunfante: o mesmo acontece com Deus; para saber que ele existe, é preciso experimentá-lo. Isto não é nada mais que uma ilustração do AER. No entanto, pretendo mostrar que isso funciona para laranjas, mas não funciona para Deus, por conta da maneira como aprendemos a usar o termo “doce”.

Primeiramente, precisamos entender como aprendemos o nome das coisas, para depois mostrar que ninguém pode saber o que é uma “experiência religiosa”, nem mesmo aqueles que alegam ter tido alguma. A forma como aprendermos o nome das coisas é bastante simples: alguém nos mostra um objeto, por exemplo, uma pedra, e nos diz que aquilo se chama “pedra”. Depois disso, associamos o nome “pedra” ao objeto-pedra. Este se chama “conhecimento por contato”. Se o leitor nunca tivesse visto um computador na sua vida, a melhor maneira de compreender do que se trata seria lhe apresentando algum e dizendo “Isto é um computador”. Na ausência de um computador, podemos tentar fazê-lo visualizar através de coisas que ele já conhece. Poderíamos dizer que ele tem um monitor, que se parece uma televisão, tem um teclado como de máquina de escrever, etc. Este se chama “conhecimento por descrição”. Como, então, aprendemos o que são estados subjetivos como a dor ou o sabor doce? É certo que ninguém pode nos mostrar um sabor e dizer: “veja, isto é o sabor doce”. Portanto, não poderíamos conhecê-lo por contato. Da mesma forma, não se pode descrever um sabor. Só quem o sente sabe como ele é. Ele não se parece com nada que eu já tenha visto. Sendo assim, não poderíamos conhecê-lo por descrição. Quando experimento algo doce, alguém não pode dizer “isto que você está sentido é o sabor doce”, pois apenas eu posso saber o que estou sentindo. A outra pessoa não pode ver ou sentir o mesmo sabor que eu. Então como aprendemos o que é o sabor doce?

Esse é um dos problemas dos chamados qualia: estados mentais que possuem qualidades que são pessoais, privadas e intransferíveis. Por serem essencialmente privadas, outras pessoas não podem ter acesso a esses estados mentais. Sendo assim, como alguém pode ter me ensinado que determinada coisa é doce, se ele não tem acesso aos meus estados mentais e, portanto, não sabe se o que eu estava sentindo era realmente doce e não salgado? E se por acaso tudo que A sente como doce, B sente como salgado e vice-versa? Como A, experimentando a mesma laranja que B, poderia dizer que B sentiu que a laranja é doce? A resposta é simples: ele não pode. “Doce” não é o nome de alguma sensação particular que A ou B sintam ao experimentar, por exemplo, açúcar. “Doce” é a sensação, qualquer que seja ela, que A ou B sintam ao experimentar açúcar. Eles não precisam sentir a mesma coisa, mas o que quer que sintam, isso será chamado de “doce”. Fomos educados a chamar de “doce” o sabor do açúcar, independentemente de qual sabor específico tenhamos sentido, e sabemos se uma laranja é doce se o sabor de se parece mais ou menos com o do açúcar. Sabemos, pois, por analogia: temos um parâmetro para comparar com a laranja, isto é, o sabor que sentimos ao comer açúcar. Podemos, portanto, saber o que é o doce por contato, como quando alguém nos mostra pela primeira vez o açúcar e nós o experimentamos.

Chegamos agora ao “x” da questão: como alguém aprende o que é uma “experiência religiosa”? Ela é conhecida por contato ou por descrição? Ela é, sem dúvida alguma, um qualia, mas como vimos, o nome das sensações não são o nome de algum qualia específico. Quando experimento açúcar e alguém diz “Isto que você está sentindo é doce”, ele sabe disso não porque ele sabe o sabor que eu estou sentido, mas porque ele sabe que, qualquer que seja o sabor que estou sentindo, ele se chamará “doce”. No entanto, como as pessoas que alegam terem tido uma “experiência religiosa” aprenderam do que isso se trata? É certo que alguém não chegou para elas e disse “você está tendo um contato com Deus”, pois ninguém pode conhecer os estados mentais qualitativos de outra pessoa. Sendo assim, deve haver alguma situação específica em que seja possível saber que alguém está tendo contato com Deus. Assim como definimos “doce” como “aquilo que alguém sente, o que quer que seja, quando experimenta açúcar”, podemos definir “azul” como “a cor que se vê quando olha pro céu do dia, qualquer que seja ela”, e “dor” como “aquilo que se sente quando leva uma pancada forte, não importa que sentimento seja esse”. Poderíamos definir a experiência religiosa como “aquilo que alguém sente, o que quer que seja, quando ora” ou “aquilo que alguém sente, o que quer que seja, quando jejua”, ou ainda “aquilo que alguém sente, o que quer que seja, quando lê a Bíblia”? Duvido que algum religioso defina tal experiência a partir de coisas tão prosaicas. E, obviamente, qualquer um recusaria a tese de que ter uma experiência religiosa é o que se sente quando lê a Bíblia, está em um culto, ouve uma oração, etc. pois algumas pessoas aparentam não sentir nada em especial. A pergunta, portanto, não é se alguém pode ter contato direto com Deus, mas sim como essa pessoa sabe que teve uma “experiência religiosa”, sendo que ninguém, nem mesmo ela, seria capaz de citar uma situação em que alguém saiba que está tento tal experiência? É preciso responder: “experiência religiosa” ou “contato com Deus” é “aquilo que se sente quando...”? Simplesmente não há resposta! Se não existe um parâmetro a partir do qual possamos dizer que alguém teve uma experiência religiosa, o que quer que ela tenha sentido nessa suposta experiência, então a expressão “experiência religiosa” é desprovida de sentido e não significa coisa alguma.

Assim sendo, sabemos que uma laranja é doce porque alguém, em algum momento da nossa vida, nos mostrou o açúcar e nos disse que o sabor daquilo era “doce” (mas aqui não importa a qualidade dessa sensação, isto é, o que quer que tenhamos sentido, será chamado de “doce”) e esta laranja tem o sabor mais ou menos parecido com o do açúcar (embora, de fato, ainda precisemos experimentá-la para saber se é ou não doce). Por outro lado, como não é possível saber o que estou sentindo, ninguém pode dizer se estou ou não tendo um contato com Deus. E se eu não posso descrever o que eu sinto, como outras pessoas vão saber se estão ou não tendo contato com Deus? Indo mais além: como eu sei que estou tendo contato com Deus? Fica muito claro que a tal “experiência religiosa” é apenas uma expressão vazia de sentido, posto que, se ninguém pode dizer quando outra pessoa está tendo uma experiência religiosa, então ninguém sabe do que se trata isso.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 18/10/2013
Reeditado em 18/10/2013
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