FÉ E RAZÃO

“Tive de limitar o saber para encontrar lugar para a fé”

(Immanuel Kant)

“Se posso compreender Deus objetivamente, não acredito; mas porque não posso conhecer Deus objetivamente, tenho de ter fé; e se for firme na fé, tenho de estar constantemente determinado a agarrar-me à incerteza objetiva, para permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta mil braças de água, e continuar a acreditar.”

(Søren Kierkegaard)

A relação existente entre fé e razão é uma das mais antigas e mais controversas questões da filosofia da religião e da teologia e até hoje parece não estar completamente solucionada. Por um lado, sobretudo os ateus, mas também religiosos, defendem não haver relação entre fé e razão. Por outro lado, há os que alegam que fé e razão são como duas formas diferentes de conhecimento, ou que uma é extensão da outra. Tanto uma quanto a outra abordagem tem suas respectivas subdivisões. Assim, até mesmo os compatibilistas e incompatibilistas discordam sobre em que sentido a fé é compatível ou não com a razão. Este artigo é direcionado àqueles compatibilistas que defendem uma fé “baseada” na razão. No entanto, não nego que fé e razão possam ter alguma relação diferente dessa.

Comecemos pelo termo “razão”. Qual o sentido desse termo na questão levantada? Entre as várias propriedades do conceito de razão, a que vai nos interessar aqui é a de justificação. Uma crença é racional quando ela é justificada, isto é, dado a verdade fundamentos para essa crença, ela é necessariamente ou provavelmente verdadeira. E o que entendemos pelo termo “fé”? Ele vem do latim “fides”, que por sua vez é uma tradução do termo grego “pisthis”, que significa apenas “crença ou confiança na palavra do outro”. Logo se vê aqui o sentido os primeiros cristãos entendiam por “fé”: crença ou confiança nas palavras da Bíblia (ou na “palavra de Deus”). A crença na palavra de outro é, por si mesma, justificada? Obviamente não. O outro pode estar mentindo ou pode estar sendo sincero, mas mesmo assim suas crenças são falsas. Mesmo que a palavra do outro seja verdadeira, o simples fato de ele tê-las dito não é por si mesmo um bom motivo para crer nela. Não é sequer provável que o que ele diz seja verdade. Portanto, por esse critério, a fé não é uma crença racional.

No entanto, existem casos em que a palavra de outra pessoa justifica uma crença. Por exemplo, se leio um livro de um físico falando sobre física (e não sou físico), então minha crença de que o que o livro diz é verdade é justificada (mas não é justificada quando o tal físico fala sobre coisas que não são da sua área). Ora, se a Bíblia é a palavra de Deus, e este sabe de todas as coisas, é autoridade em todos os assuntos, então a crença na palavra de Deus é justificada. Sem dúvidas esse seria um bom argumento se suas premissas fossem verdadeiras, mas que motivos temos para crer que a Bíblia é mesmo a palavra de Deus? Temos apenas duas alternativas: ou (1) a Bíblia é a palavra de Deus porque ela diz que é a palavra de Deus ou (2) existem outras evidências que mostram que ela é a palavra de Deus. Como já foi dito, a fé é crença na palavra do outro, nesse caso, na palavra de Deus (Bíblia). Ora, (1) se sabemos que a Bíblia é a palavra de Deus porque a mesma afirma isso, então essa crença não é justificada, posto que é uma falácia de raciocínio circular. Contra o segundo argumento, sabemos que ela é a palavra de Deus porque existem evidências disso (2), então não temos fé, posto que não acreditamos na palavra de Deus, e sim nas evidências (seja lá quais forem, não nos interessa aqui avalia-las). O que o cristianismo exige é a fé, isto é, crer na palavra. Se eu digo à minha esposa que vou beber com os amigos e ela me segue para ter certeza de que vou cumprir o que foi dito, então ela não acreditou na minha palavra, ou seja, ela não teve fé. Ela acreditou porque viu. Por isso Cristo disse a Tomé que bem-aventurados são aqueles que creram e não viram.

Não é possível justificar racionalmente a fé cristã porque isso cairia num círculo vicioso ou porque, se for buscada fora da própria palavra, a fé perde totalmente seu sentido, deixando de ser fé propriamente dita. O que dizer, portanto, dos filósofos cristãos e dos argumentos teológicos de Santo Tomás de Aquino? Não forneceriam eles base racional para as crenças cristãs? Esse é um pensamento comum nos dias de hoje: de que Tomás de Aquino tentou provar racionalmente a fé cristã. Todavia, isso se trata de um equívoco cometido por pessoas que jamais leram uma linha sequer da obra do filósofo escolástico. Os primeiros pensadores do cristianismo tinham aversão à hoje tão comum associação entre fé e razão e eram bastante hostis à ciência e à filosofia grega. Tertuliano dizia que nada havia em comum entre Atenas e Jerusalém e que acreditava no cristianismo justamente porque era absurdo (credo quia absurdum est), posto que, de outro modo, ele poderia saber e não haveria nenhuma necessidade de crer. Mais radical ainda era a aversão de Lactâncio à racionalidade grega, considerada por ele como uma forma “mundana” de pensar, inferior à fé. Ambrósio dizia que “rejeitam-se os argumentos, quando se busca a fé” e Gregório afirmava que “onde a razão humana fornece alguma prova, a fé não tem mérito algum”. Paulo de Tarso, antes deles, dizia que a “palavra da cruz” era uma loucura para aqueles que não são salvos, que “agradou a Deus salvar aqueles que creem por meio da loucura da pregação” e que “destruirá a sabedoria dos sábios”. Não muito tempo depois começou a surgir pensadores cristãos que defendiam uma conciliação entre fé e razão, como Orígenes e Clemente de Alexandria. No entanto, eles jamais defenderam, como fazem muitos hoje em dia, que a fé poderia ser baseada na razão. A fé era a crença na palavra revelada, nada além disso. O papel da razão era apenas esclarecer pontos obscuros e confusos dessa mesma palavra, sem jamais se prestar a provar que o que ela diz é verdade. A fé sempre foi uma questão de escolha: crer ou não crer na palavra não depende nem pode depender de evidências ou justificações.

Nessas primeiras fases do cristianismo, a razão tinha o papel de interpretar corretamente as escrituras, combatendo opiniões não ortodoxas (as chamadas “heresias”). Também se preocupava em explicar a natureza de Deus e de Cristo, mas não provar que existe Deus ou que Cristo é seu filho. Isso era assunto de fé. O que eram, portanto, os argumentos de Santo Tomás de Aquino, as suas famosas cinco vias, se não bases racionais para a fé cristã? Pode parecer surpreendente, mas Aquino jamais pretendeu que seus argumentos pudessem servir de base racional para a fé. Seu objetivo, bem como de Santo Agostinho, era contestar a afirmação de Tertuliano de que a fé é absurda, (o chamado “fideísmo”*) mostrando que a crença cristã é possível, mas apenas possível. Ora, se é possível, então a fé cristã não é tão absurda quanto se pensava. Na sua “Suma Contra os Gentios”, Aquino declara que esses são argumentos apenas de probabilidade, e declara ainda que não são capazes de convencer ninguém (apesar de muitos cristãos atuais acharem que eles convencem) e só servem para aqueles que já são cristãos, com o único fim de encontrar tranquilidade e vencer debates. É isso mesmo que você leu! O próprio Aquino alega que tais argumentos só servem para os cristãos se sentirem mais confortáveis e para poder responder a objeções, mas não servem nem para fundamentar a fé, nem para convencer alguém a crer. Ainda na “Suma...”, Aquino afirma: “Não convém, portanto, insistir em tais argumentos, pois a própria insuficiência deles confirmaria ainda mais os adversários em seus erros, dando-lhes a impressão de que nós aderimos à verdade de fé estribados em razões tão pobres”. Aqui ele diz que seus argumentos são insuficientes e os chama de “razões tão pobres”. Afirma claramente que sua fé não se baseia neles.

Os cristãos atuais confundem a função dos argumentos de Tomás de Aquino. Como já foi dito, as cinco vias serviam apenas para mostrar que a existência de Deus é possível, que não é um absurdo, que não é contraditória com a “razão natural”, mas o próprio autor declara que sua fé não se baseia neles e que, além do mais, eles não poderiam convencer ninguém da verdade da fé cristã. A concepção de que a fé é única e exclusivamente crença na palavra revelada não mudou até aqui. O que diferencia é o papel que a razão pode assumir em relação à fé, transitando entre aqueles que defendem que a razão de nada serve, como Tertuliano e Lactâncio, e aqueles que defendem que ela tem função de esclarecer os artigos da fé, que não podem ser demonstrados ou baseados na razão e são fruto de uma escolha entre crer ou não crer. O próprio Tomás de Aquino confirma essa tese na sua “Suma Teológica”, quando diz que “a doutrina sagrada utiliza também a razão, não para provar a fé, o que lhe tiraria o mérito [Concordando com Ambrósio. Comentário meu.], mas para iluminar outros pontos que essa doutrina ensina”. Também na “Suma Teológica”, Aquino declara que “a doutrina sagrada não se vale de argumentos para provar seus princípios, a verdade da fé” e que “os artigos da fé não podem ser demonstrados”. Uma fé baseada na razão, como defendem muitos cristãos, era uma aberração para esses pensadores do cristianismo. O domínio da razão era apenas o de esclarecer as crenças cristãs, não de provar a verdade delas. Além do mais, eles jamais aceitariam submeter a fé aos exames da razão, uma vez que para eles essa era inferior. Santo Agostinho dizia “Não queiras entender para crer, mas crer para entender” e Tomás de Aquino defendia que “convém que a razão natural sirva à fé” e que “se uma proposição científica contradiz uma verdade da fé, o erro certamente está do lado da ciência”.

Como foi mostrado, uma fé baseada na razão é absurda, e os filósofos cristãos sabiam disso. Tanto que jamais defenderam uma ideia tão estapafúrdia. De onde então surgiu essa ideia? Peço licença agora para especular, sem me ater a métodos mais rigorosos de pesquisa e validação. Segundo minha tese, ela surgiu na modernidade, em consequência do sucesso das ciências naturais. Não sei precisar ao certo, mas creio que o pensamento moderno, principalmente o iluminista, colocou a fé em profundo descrédito. A racionalidade científica provou seu valor e seus resultados, mostrando ser a melhor forma de encarar os fatos do mundo. A fé, a ingênua crença numa palavra revelada que ninguém sabia se era verdade ou não, viu-se esmagada pela poderosa racionalidade científica. O que fazer, então, para que ela não desapareça? Alegar que ela também se baseia na razão, oras! Alguns passaram a entender a fé não mais como a simples crença na palavra de outro, mas como uma crença baseada em fatos verídicos, observáveis, verificáveis cientificamente. “Fé” passou, portanto, a designar a simples crença em Deus, em Cristo, na Bíblia, não importando de quais fontes essa crença deriva. Perdeu-se o sentido original de escolha que era tão caro ao cristianismo. Se existem evidências (irrefutáveis, como dizem alguns) da existência de Deus, então eu não posso escolher entre crer ou não, apenas me render ao peso esmagador das evidências. Isso é totalmente contrário ao que pensavam os cristãos da antiguidade e da Idade Média. Seria uma fé vazia e sem sentido. Mas é essa fé vazia e sem sentido que se reproduziu na contemporaneidade, uma concepção de fé que surgiu simplesmente da vergonha diante dos avanços científicos e da suspeita de sua ingenuidade. Como diz Kierkegaard, o maior filósofo cristão dos últimos séculos, “quando a fé começa a ter vergonha, como uma rapariga para quem o amor deixa de ser suficiente, que secretamente tem vergonha do seu namorado e tem por isso de confirmar junto de outros que ele é realmente notável, quando a fé vacila e começa a perder a sua paixão, então a prova torna-se necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente”.

Está claro que a “fé baseada na razão” é um fenômeno moderno. Os primeiros cristãos não pensavam que isso fosse possível e pela análise do termo, a “fé baseada na razão” mostra-se logicamente contraditória. Todavia, concordo que possa haver alguma relação entre fé e razão quando se trata da relação explicativa ou clarificadora já defendida pelos primeiros filósofos cristãos. O que não concordo é que se possa fornecer alguma base racional para a fé, isto é, dizer “eu acredito porque as evidências confirmam”. Não creio, porém, que essa separação desmereça a fé. Não creio que a crença cristã seja irracional, e nisso concordo com Tomás de Aquino. Em tese, um cristão pode crer em algo e depois esse algo ser confirmado cientificamente, por exemplo, mas o cristão não acredita PORQUE foi confirmado cientificamente. Ele acredita independentemente disso, o que é a verdadeira essência do que chamamos de fé.

*Senti necessidade de escrever uma nota sobre isso pois existe muito mal entendido sobre esse conceito. Muitos julgam que fideísta é justamente quem defende que a fé não pode ser baseada na razão, mas não é o caso. Se fosse assim, Aquino seria fideísta. O que diz o fideísmo é que a fé não tem nenhuma relação com a razão, não carece dela nem como explicação e que, inclusive, a fé pode ser absurda e contrária à razão.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 22/01/2014
Reeditado em 22/01/2014
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