A minha bondade

Sempre me achei uma pessoa boa. Isto é, nunca pratiquei nenhuma grande maldade. Estou certo de que nenhum motivo me faria matar alguém. Vou além: não imagino que eu seja capaz sequer de entrar em luta corporal com quem quer que seja. Também costumo deixar que a vontade dos outros prevaleça sobre a minha. Quando instado, tento ajudar as pessoas no que puder, mesmo a custa de muito sacrifício pessoal. Sou inofensivo e, em geral, as pessoas têm uma boa imagem de mim. Tenho características que imagino as de uma pessoa boa e sempre acreditei que elas pesarão a meu favor no momento em que for feita uma avaliação do meu desempenho durante essa passagem terrena. E, no entanto, também tenho razões para duvidar.

Avaliando-me com sinceridade, descubro que eu não sou exatamente bom, mas que em boa parte do tempo eu apenas me refugio na bondade. Sou bom apenas para evitar todas as chateações que me adviriam em consequência de ser mal. Quero fugir da controvérsia, e não há maneira mais eficaz para conseguir isso do que fazer aquilo que pessoa alguma terá argumento para me censurar: sendo bom. Uso, portanto, o medo como motivo para a minha bondade – como também posso usar o orgulho ou a vaidade. Há muitos motivos para se ser bom e nem todos são louváveis. Nem sempre a bondade é consequência do amor – e essa é uma distinção fundamental. Se sou bom sem amar, já não estou mais seguro de que eu seja tão bom quanto penso.

Porque tenho medo, não sou perfeito em amor. Se temo, mostro que estou preocupado com as consequências dos meus gestos. E o amor é necessariamente inconsequente, não está preocupado com o desempenho ou com a avaliação dos outros – não está preocupado, aliás, sequer em ser retribuído. Reconheço que o amor verdadeiro, fraternal e não fingido, não é conciliável com a displicência que, não raro, trato a necessidade dos outros. Há necessidades, inclusive, que eu sequer chego a perceber, tão preocupado estou com os meus próprios dramas. Sem falar que muitas das coisas que eu efetivamente faço em favor dos outros não me custam muito – eu as faço quase por automatismo. Preciso, pois, transformar a minha bondade em amor.

E cuidar para que ele não seja dirigido unicamente àqueles que também me amam (até os maus fazem isso). A singular mensagem cristã sugere que amemos qualquer desconhecido com a mesma intensidade que a nós mesmos. Por vezes, a crença de que sou bom me faz achar que eu já amo o próximo suficientemente. Prestando mais atenção, no entanto, percebo que eu nem ao menos cumprimento o motorista de ônibus quando vou ao trabalho pela manhã. Ora, não me sinto confortável para dizer que amo o próximo se ao entrar no ônibus eu não olhar para o motorista, considerar a dureza do seu trabalho e não tentar suavizá-lo com o meu bom dia. Certamente o amor é muito mais do que ser simpático, mas não imagino como amar sem sê-lo.

Se tenho alguma vantagem é a de ter essa consciência, mas com ela também passo a ter maior responsabilidade: quem sabe fazer o bem e não o faz comete pecado. E é preferível uma repreensão aberta a um amor encoberto.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 12/11/2014
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