Uma leitura do Fédon com vistas à causalidade.

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar a ocorrência de causalidade no Fédon. Esta análise parte da observação da presença de uma relação causal no argumento dos contrários, que, no tocante à relação vida-morte, se mostra ser do tipo cíclica e fechada, como também dualística. O argumento da reminiscência evidencia a alma como um princípio causal gerador de vida e morte, como também de conhecimento e sabedoria, identificando a alma como sendo a causa que anima o corpo e que conserva e carrega o saber puro e verdadeiro das coisas.

Palavras-chave: Princípio Causal. Causalidade. Tipos de Causalidade.

PRÓLOGO AO FÉDON

O diálogo socrático Fédon tem início quando Sócrates medita acerca do alívio que sentira ao ser livrado das correntes que lhe causavam dor e incômodo. A partir daí tem início a construção argumentativa da tese dos contrários, fundamental na elaboração do argumento das reminiscências e, por efeito disso, da crença na imortalidade da alma. A motivação da conversação entre Sócrates e seus amigos tem início com a observação e meditação acerca dos contrários e, por efeito, se envereda intensamente pela análise e discussão acerca da morte, da alma e da verdadeira sabedoria. Para Sócrates, a morte é algo bastante positivo; pois a associa diretamente com a sabedoria absoluta ao dizer que quem for sábio, deve segui-lo, já que todo homem que se interessa dignamente pela filosofia não deve temer a morte, mas desejá-la avidamente; ainda mais se for um amante e amigo do saber. Nas palavras de Sócrates, fica evidente que a verdadeira sabedoria está na morte e somente é alcançada através da morte. Por efeito disso, o verdadeiro filósofo deve buscar a morte sem temor, por isso que os filósofos devem estar prontos e desejosos de morrer.

Sócrates demonstra sentir felicidade e satisfação ao constatar que a morte se lhe aproxima celeremente, porque acredita que está indo para junto dos deuses sábios e bons, e, ademais, para junto de seres humanos que morreram e que são melhores do que os que aqui estão. Ademais, Sócrates se mostra esperançoso e otimista com a certeza absoluta da aproximação da morte: “não só não me angustio, como também nutro grandes esperanças de que haja algo reservado aos mortos e, como é dito há muito tempo, algo melhor para os bons do que para os perversos”. O posicionamento de Sócrates é completamente diverso do da maioria das pessoas, pois enquanto a maioria considera a morte algo negativo e ruim, chegando a abominá-la e temê-la, Sócrates a idolatra com grande entusiasmo e a considera algo bom e justo.

Nesse ponto, a maioria dos leitores do Fédon são tomados de espanto e admiração, porquanto se deparam com um homem que anseia pela morte, que a espera sem receios e que a identifica com um estado de virtude e plenitude. Por conta disso, aqueles que o escutam e dialogam com ele se mostram curiosos e desejosos de compreender melhor e mais a fundo os pensamentos de Sócrates acerca da morte e do pós-morte. A partir desse ponto, Sócrates argumenta de maneira a expor-lhes suas ideias e crenças, procurando convencê-los delas. A crença fundamental de Sócrates é a seguinte: “aqueles que se devotam à atividade filosófica corretamente limitam-se a estudar o morrer e o estar morto”. Portanto, Sócrates concebe a filosofia como sendo uma preparação para a morte; uma meditação acerca da morte. É em favor dessa crença que ele argumenta de maneira a convencer de sua verdade aqueles que o escutam.

A ALMA COMO CAUSA DA SABEDORIA ABSOLUTA

Sócrates inicia a defesa de sua crença indagando se há essa coisa que é a morte, para logo em seguida defini-la como sendo a separação da alma do corpo. Sócrates afirma que o corpo é um obstáculo e empecilho à aquisição do conhecimento pleno, pois limita, equivoca, engana e tira a atenção da alma das coisas que verdadeiramente interessam, de modo que toda vez que tenta examinar qualquer coisa em associação ao corpo, é claramente enganada por ele. Os sentidos corporais limitam e confundem a faculdade humana de aquisição do conhecimento, posto que não oferecem precisão, clareza e confiança, tampouco exatidão. Por conta disso, a alma encontra-se incapaz de alcançar a sublime verdade; incapaz de conhecer plenamente. Em suma, o corpo perturba a alma; os sentidos corpóreos inviabilizam e impedem que a alma atinja a suprema verdade das coisas. Dessa forma, seguindo a linha de argumentação socrática, conclui-se que enquanto a alma do filósofo estiver atrelada ao corpo, é impossível e improvável que ele conheça plenamente a verdade; obtenha o verdadeiro saber das coisas, de modo que se pretendemos algum dia obter um conhecimento puro de qualquer coisa, teremos que nos libertar do corpo e observar as coisas em si mesmas, exclusivamente com a alma.

É importante que se perceba no Fédon que a admissão ou aceitação da existência e sobrevivência da alma fora do corpo é fundamental para justificar a tese de que a verdade absoluta ou o conhecimento verdadeiro das coisas pode ser alcançado e experimentado em sua plenitude. Este tão almejado estado de saber completo e imaculado seria possível se, e somente se, a alma estivesse totalmente desligada do corpo; longe de tudo aquilo que é mutável, incerto, perecível e impuro, pois "quando a alma investiga independentemente e por si mesma, ela parte para o domínio do puro, do perpétuo, do imortal e do imutável, e sendo aparentada a estes sempre permanece com eles toda vez que está por sua própria conta e não é barrada; cessa o seu errar e permanece sempre a mesma, inalterável com o que é sem alteração, visto que está em comunhão com este. A esse estado da alma dá-se o nome de sabedoria".

Dessa forma, a plenitude da verdade e a pureza do conhecimento não são uma utopia. Platão, através de Sócrates, reconhece e admite as limitações e imprecisões dos sentidos corporais na investigação das coisas; na busca e aquisição da verdade e do conhecimento. Por efeito disso, Platão se volta para a alma em estado de liberdade; livre da prisão corpórea, pois, já que não é possível (ou sequer provável de) se atingir o saber puro e superior no mundo dos vivos, que se o busque então no Hades, haja vista que "na hipótese da impossibilidade do conhecimento puro enquanto estamos associados a um corpo, é necessário concluir uma de duas coisas: ou tal conhecimento não pode ser adquirido de modo algum, ou somente pode sê-lo quando estivermos mortos, que é quando a alma estará sozinha, separada do corpo, e não antes. Enquanto vivermos, penso que estaremos o mais próximo do conhecimento toda vez que evitarmos, na medida do possível, o intercâmbio e a parceria com o corpo, salvo o absolutamente indispensável, e não nos contaminarmos com a sua natureza peculiar, mas nos mantermos puros em relação a ele até que o próprio deus nos liberte. E desse modo, libertando-nos da insanidade do corpo e sendo puros, é provável que comungaremos com pessoas do mesmo tipo, e passaremos a conhecer, por nossos esforços, tudo que é puro, o que é, segundo se presume, a verdade".

Dessa forma, se com a morte há a libertação da alma do corpo e, somente a partir daí, a verdade e o conhecimento são plenamente alcançados, logo “aqueles que cultivam a filosofia da maneira correta se exercitam para morrer, a morte se afigurando para eles menos temível do que para quaisquer outros seres humanos”. Entretanto, esta afirmação socrática não deve conduzir ao anseio imediato de se morrer, tampouco a obrigação de se tirar a vida, pois, segundo Sócrates, a vida humana pertence aos deuses e, por efeito, só eles são providos do direito e poder de tirá-la, posto que “os deuses são nossos guardiões e que nós, seres humanos, somos umas das posses dos deuses”.

A rejeição e recusa ao suicídio se deve a crença socrática de que, em vida, o ser humano deve instruir-se nas coisas boas, justas e virtuosas, para que, depois de morto, possa compartilhar da companhia e presença dos deuses, pois somente aqueles que foram bons e justos em vida sentarão ao lado dos deuses e usufruirão da sabedoria suprema. Dessa forma, seria a vida uma preparação para granjear o privilégio de estar próximo e diante dos deuses e compartilhar com eles o saber e o conhecimento pleno das coisas, de modo que “ninguém que não haja praticado a filosofia e que não esteja totalmente puro ao partir da vida será admitido à comunhão com os deuses, mas tão só o amante do conhecimento”. O argumento platônico presente no Fédon para justificar a não aceitação do suicídio, mesmo sendo a morte algo positivo, se mostra ser de dois tipos: religioso e virtuoso. É religioso porque Platão usa a intervenção divina, conferindo plenamente à divindade o poder e o direito de dar e tirar a existência humana; é virtuoso porque Platão prega uma existência humana baseada em valores e condutas que visam o bom e o justo.

Platão, ao afirmar que a alma assemelha-se ao divino e o corpo ao mortal, identifica a alma como sendo algo de natureza divina. Por efeito disso, Platão atribui a causa da alma aos deuses; identifica a divindade como sendo o princípio causal da alma. A relação entre alma e divindade é bastante evidente, já que Platão confere à alma atributos que são concedidos somente aos deuses, tais como imortalidade, invisibilidade, imutabilidade, incorruptibilidade e perfeição. Dessa forma, por ser a alma um ente dotado de atributos divinos, deve ser uma produção da ação geradora da divindade, algo que provém dos deuses. Por implicação disso, pode-se afirmar que a alma não é causa sui e tampouco é causa incausada; mas é causa causada, teve um princípio criador.

Segundo os argumentos presentes no Fédon, a sabedoria absoluta e o conhecimento puro das coisas têm causa na alma, pois advém dela via as reminiscências de todas as suas pré-existências. O saber pleno está contido e conservado na alma, porquanto, no princípio, antes de se ligar ao corpo, estava ela junto aos deuses, compartilhando e contemplando o saber supremo e imaculado. Dessa forma, quando a alma se conecta à matéria corpórea, esta sabedoria e conhecimento ficam latentes em seu âmago, como que adormecidos e anestesiados, de modo que com o passar do tempo e sob as operações dos sentidos e das percepções, vem à tona na forma de reminiscências. Dessa forma, é possível concluir que a causa da sabedoria e do conhecimento é a alma, que os conserva e os carrega em sua substância imortal ao longo das existências. Portanto, a alma é o princípio causal da sabedoria em sua plenitude e pureza.

A ALMA COMO CAUSA DA VIDA E DA MORTE

A análise da "tese dos contrários" conduz à observação de que há no Fédon a ocorrência de um modelo causal cíclico e fechado. Este modelo causal se mostra ser cíclico porque há uma repetição constante do mesmo percurso, vida-morte ou morte-vida. No primeiro percurso causal, parte-se da vida e se chega à morte e depois parte-se da morte e chega-se à vida, e, assim, mais uma vez, recomeça-se todo o processo vida-morte. Esse processo causal cíclico é circular porque independe do ponto de partida, de modo que se pode partir da morte como causa e chegar-se à vida como efeito, assim como também, de forma equivalente, pode-se partir da vida como causa e chegar-se à morte como efeito, recomeçando tudo novamente, de maneira que os percursos vida-morte e morte-vida são equivalente e arbitrários. Este modelo causal é fechado porque o processo causal segue sempre o mesmo percurso e se mantém ligado, limitando-se sempre a dois referenciais, vida e morte, de maneira que não sofre alteração de qualquer agente externo, mas depende tão somente do concurso da alma, já que é o movimento da alma que gera este percurso causal. Dessa forma, o que é causa pode se manifestar como efeito e o que é efeito pode se manifestar como causa. Dito de outra forma, os mortos se geram dos vivos, que por sua vez se geram dos mortos e vice-versa, mostrando que o efeito se confunde com a causa e a causa se confunde com o efeito. Portanto, uma das consequências da tese dos contrários é a ocorrência de uma relação causal cíclica e fechada entre coisas opostas e duais, em que causa e efeito se confundem totalmente de maneira a tornar arbitrária e relativa a escolha de um princípio gerador absoluto.

Segundo Platão, a morte dá-se quando a alma está livre do corpo, ao passo que a vida dá-se quando a alma encontra-se presa ao corpo. Na vida, o corpo encontra-se animado; ao passo que na morte, desanimado. Assim é porque a alma anima o corpo; é a força motriz da matéria corpórea, de modo que a alma que jaz no Hades, quando se liga a um corpo, ele ganha vida; logo a vida veio da morte, o vivo veio do morto. Já quando a alma separa-se do corpo, ele perece, pois fica desprovido da força que o animava. De forma argumentativa, evidencia-se que a morte gera-se a partir da vida e que a vida gera-se a partir da morte, sendo a alma o agente conservador e mantenedor da causação cíclica ora entre vida e morte, ora entre morte e vida. A alma, à medida que traz a vida consigo e não cessa de transmiti-la ao corpo, é causa imanente, porque enquanto estiver ligada ao corpo, seu efeito, a vida, não cessa de operar no corpo. O corpo usufrui da vida enquanto a alma permanece em seu interior, mantendo-se animado. Enquanto a alma estiver contida no interior dele, transferir-lhe-á vida incessantemente, seu efeito animador será ininterrupto; enquanto a alma habitar o corpo, ele perseverará na existência e não perecerá. Quando a alma abandona o corpo, o seu efeito animador cessa de operar, então a vida deixa o corpo e este deixa a existência; morrendo.

Porém, mesmo após a morte, a vida continua com a alma e esta persevera na existência e jamais perece, porquanto a vida é-lhe inerente, inseparável, imanente. Dessa forma, pode-se argumentar que a alma é a causa da vida. Dito com outras palavras, a vida é um efeito da alma, e este efeito sempre está presente e contido na alma, sendo-lhe imanente.

Ainda se referindo ao modelo causal circular ligado, pode-se ainda observar que esse processo causal que se conserva de maneira cíclica e fechada pode ser encarado como um tipo de causalidade dualística, porque causa e efeito são contrários um ao outro, ou simplesmente duais. Isso pode ser assim tomado e denominado porque vida e morte, morto e vivo, além de serem contrários e duais, são causas um do outro, como bem já foi exposto anteriormente. Portanto, a causalidade presente no Fédon, além de ser cíclica e fechada, é dualística, como bem está justificado acima.

Esse modelo causal sustenta-se em um argumento dualístico, posto ser as coisas causadas a partir dos seus contrários, de modo que vida e morte, assim como vivo e morto, são contrários. Dessa maneira, alicerçado e sustentado no argumento dos contrários, Platão justifica que a vida é necessariamente a causa da morte, assim como a morte é a causa da vida, gerando um sistema causal cíclico e fechado limitado a dois duais, mantido pelo concurso da alma. Consequentemente, Platão, pela boca de Sócrates, chega à conclusão de que os vivos são gerados a partir dos mortos, tal como estes a partir daqueles; e visto ser assim, parece-nos que Platão dispõe de uma suficiente prova de que as almas dos mortos necessariamente existem em algum lugar, de onde retornam à vida.

A causalidade cíclica e fechada satisfaz o argumento dos contrários, pois a vida principia da morte e a morte principia da vida, e, nesse movimento irrefreável de ida e vinda, ambas não cessam de principiar. É o principiar incessante e inesgotável que permite à alma perseverar ao longo das existências, justificando por si só a sua imortalidade e, sobretudo, o argumento das reminiscências. É importante observar e enfatizar que a ocorrência da causalidade circular conduz inevitavelmente ao argumento da reminiscência e, consequentemente, ao argumento da imortalidade da alma, de modo que a alma, por ser imortal, não acolhe a morte, porque “jamais admitirá o oposto daquilo que traz consigo”. A ocorrência dessa causalidade cíclica, fechada e dualística se justifica indubitavelmente nas palavras do próprio Platão: “De fato, se a geração não ocorresse de contrário para contrário e novamente retrocedendo, revolvendo como que num círculo, mas avançasse continuamente em linha reta sem retorno ou tortuosidade, compreendas que, em última instância, teriam a mesma forma e sofreriam ação do mesmo modo, acabando por não serem mais geradas de modo algum”.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PLATÃO. Fédon (ou Da Alma). São Paulo: EDIPRO, 2º ed., 2015.