LEPRA - FERIDAS NO CORPO, MARCAS NA ALMA

Moléstia dos tempos bíblicos ainda faz vítimas e doentes lutam para superar o preconceito

Antes do advento da Aids, no início dos anos 1980, nenhuma outra doença carregou estigma tão forte de preconceito e intolerância quanto a hanseníase. Conhecida desde tempos imemoriais, a moléstia, que ao longo das eras causou mortes e mutilações em quase todas as latitudes do planeta Terra, é uma espécie de fantasma da humanidade. Tão antiga quanto os primeiros grupamentos humanos e tão repulsiva que, na Bíblia, é associada à maldição, a hanseníase – que durante muito tempo foi chamada de lepra, termo originado do grego e que significa “escamoso” – é uma doença infecto-contagiosa caracterizada, entre outros sintomas, pela perda de sensibilidade em partes do corpo e pela degeneração de tecidos. O sábio grego Hipócrates, considerado o pai da medicina, já a mencionava em seus estudos. No Antigo Testamento, e sobretudo no Pentateuco, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, há capítulos inteiros com regras de confinamento aos leprosos, que não podiam sequer se aproximar de pessoas sãs – tanto, que o diagnóstico era realizado por sacerdotes em vez de médicos, e o tratamento incluía sacrifícios, purificações e uma série de rituais, como a queima dos pertences pessoais do doente.

Enfermidade cruel que não poupa suas vítimas de muito sofrimento, a hanseníase hoje pode ser controlada graças aos modernos recursos de diagnóstico e tratamento. Mas apesar de erradicada nos países desenvolvidos, a doença é considerada, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como endêmica em muitas regiões. Atualmente, há cerca de 1 milhão de portadores de hanseníase catalogados em todo o mundo, a maioria deles na Índia e em seus vizinhos, como Nepal e Sri Lanka. Outras nações pobres, como Madagascar, Congo e Moçambique, na África, também apresentam casos expressivos. Mesmo no Brasil, entre os anos de 1990 e 2006, somente as regiões com maior índice de desenvolvimento humano, como o Sul e o Sudeste, apresentaram diminuição no número de hansenianos. A doença tem seu nome ligado ao do médico norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen, que, no século 19, conseguiu identificar o vírus causador.

Desde então, o tratamento aos doentes foi sendo humanizado, e a antiga prática de isolá-los em comunidades distantes, na maioria das vezes entregues à própria sorte, foi sendo abolida aos poucos. Aqui no Brasil, o termo lepra, considerado de conotação pejorativa, só foi oficialmente abolido dos documentos oficiais com a sanção da Lei nº 9.010/95, pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Mas o estigma de que a hanseníase só se propaga em ambientes sem condições de higiene nem sempre corresponde à realidade. “Dizem que a hanseníase é produto da miséria e da imundice, situações que nunca vivenciei; e que o contágio ocorre pelo contato íntimo com algum portador, o que também não aconteceu comigo”, conta a engenheira carioca Patrícia Neme, 57 anos, que hoje vive no Tocantins. Ela, que congrega na Segunda Igreja Batista de Palmas, sente literalmente na pele os efeitos da doença – mesmo sob rigoroso tratamento, anda com dificuldades, não consegue subir escadas e tem sua vida social praticamente restrita ao convívio social. “A tendência humana é julgar o que não conhece”, comenta a engenheira.

Embora encontre conforto e dignidade na fé que professa, Patrícia enfrenta muitos desafios devido à enfermidade, sobretudo em relação aos órgãos oficiais de saúde e previdência – o que a leva a concluir que as pessoas não estão preparadas para lidar com a hanseníase e suas vítimas. “O preconceito que tenho sofrido é enorme. A cada perícia a que compareço, os laudos médicos que apresento mal são lidos”, reclama. Por não compreenderem a extensão da doença, muitos médicos relutam em lhe conceder o benefício do auxílio-doença, como seria de seu direito.

Discriminação – Muitas foram as tentativas de cura para a lepra no início do século 19 – plantas medicinais, banhos de lama e em águas termais e até choques elétricos –, mas somente a partir da década de 1940 que a doença deixou de constituir um dos problemas mais graves de saúde pública no Brasil. Até então, as atenções eram voltadas para a tuberculose que, além de fazer um número maior de vítimas, era bem melhor tolerada no contexto social. A tuberculosa, também chamada de tísica, chegou a ser chamada de “doença dos poetas”, já que vitimou muitos compositores e literatos, como Noel Rosa, Castro Alves, Álvaro de Azevedo, Casimiro de Abreu, Augusto dos Anjos e Manoel Bandeira, só para citar alguns.

“A tuberculose não escolhia classe social. Fosse pela tal ‘vida boêmia’ ou má qualidade de vida, as vítimas eram indivíduos com o sistema imunológico debilitado”, explica o professor dos cursos de saúde Edwing Holguin Wilson, da Faculdade de Pato Branco (FADEP), do Paraná. Na contramão, e justamente pelas horrendas ulcerações da pele dos infectados serem acintosamente aparentes, a lepra causava pavor e nojo. Ficaram tristemente famosas, no Brasil, as chamadas colônias-asilos, eufemismo para designar verdadeiras prisões onde os doentes eram confinados.

Uma delas, e que resiste até hoje, é a colônia-asilo de Pirapitingui, atualmente chamada Hospital Doutor Francisco Ribeiro Arantes, localizada no interior paulista, entre os municípios de Itu e Sorocaba e considerada uma das maiores instituições do gênero no país. Logo na entrada, um prédio em ruínas parece reconstituir historicamente o que foi a casa na época de sua fundação. Suas ruas tranqüilas e bucólicas causam a mesma impressão de uma pacata cidade do interior, e é justamente essa calmaria, aliada à fartura de águas e às excelente condições climáticas, que faz do pequeno vilarejo um lugar dos mais propícios para um tratamento adequado.

Se para alguns doentes a fundação da colônia, pelos idos de 1930, significava o início de uma nova vida livre de preconceitos e abandono, para outros não passava de um confinamento permanente. Tanto que muitos eram, literalmente, perseguidos e caçados como verdadeiros criminosos pela polícia sanitária caso se atrevessem a sair dali. Muitas pessoas que foram internadas ainda na juventude acabaram sepultadas ali mesmo, depois de anos de sofrimento. Muitas também foram as tentativas de fugas e os casos de suicídio, perpetrados por alguns que não agüentaram os tratamentos desumanos a que eram submetidos.

Atualmente, o hospital vive uma outra realidade, como atesta a sanitarista Mary Lise Carvalho Marzliak, do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Ela acompanhou de perto essas mudanças. “Meu pai foi diretor lá em 1955, ano em que nasci”, conta. A médica diz que, como fruto do trabalho de reestruturação dos hospitais-colônia do Estado, a partir de 2000 foi instituída a Gerência Social, que é responsável pela parte comunitária e por todos os problemas pertinentes à área. “A última direção, assim como a atual, têm feito um bom trabalho”, elogia. Ainda segundo Mary Lise, o maior problema são os próprios preconceitos que os doentes são obrigado a superar. “O ideário da hanseníase é descolado do da lepra. Quando essa ponte é estabelecida por antecedentes familiares, então a discriminação é sentida mais intensamente”, aponta.

Dor e solidariedade – A comunidade fincada em Pirapitingui serviu de inspiração para o livro Cidade dos Esquecidos (Editora Ottoni), escrito pela pesquisadora e historiadora Kátia Auvray. Na obra, composta também por uma série de imagens e documentos, ela recompõe a saga dos portadores da doença, desde a fundação da entidade até os dias atuais, relatando o cotidiano dos que viveram atrás dos altos muros, bem distantes dos centros urbanos. Kátia valeu-se de uma intensa pesquisa de campo que durou cerca de dois anos, período em que conheceu de perto a vida, as dores e a intimidade dos hansenianos de Pirapitingui. “No início, o contato foi difícil, até que eu consegui que eles acreditassem no meu profundo respeito por suas histórias de vida. Na seqüência, nossas relações tornaram-se extremamente cordiais e, muitas vezes, afetuosas”, lembra. E é com orgulho que ela afirma que o período que passou na instituição foi suficiente para conquistar amigos e um grande aprendizado social. “Com resistência pessoal, o ser humano pode conservar sua dignidade independente de condições adversas. Ficou a paz na minha alma ao ver meu dever cumprido”, conclui.

Professor aposentado do Departamento de História da Universidade de Campinas, a Unicamp, Ítalo Tronca, de 71 anos, também escreveu um livro sobre o tema, As Máscaras do Medo: Aids e Lepra (Editora da Unicamp). Nele, Tronca faz mais uso de uma narrativa literária com resquícios artísticos e referências filosóficas. Apesar de as doenças abortadas no livro terem surgido em diferentes períodos, o autor consegue extrair inúmeras semelhanças, exceto sob a ótica biológica, como ele mesmo alerta. “Há muitos aspectos em comum entre hanseníase e Aids, se as analisarmos sob um ponto de vista moral, histórico e cultural. Um deles é o preconceito que havia em relação à lepra num passado distante, e em relação à Aids há bem pouco tempo”, compara. Além disso, ele faz menção também à exclusão social, ao racismo, à profanação da sexualidade e até à intolerância da Igreja. “Durante séculos, a Igreja foi uma espécie de ‘caixa de pandora’ dos males da humanidade, especialmente a lepra. Juntamente com o mal biológico, ela jogava uma pecha moral sobre os doentes – ou seja, além de carregar as chagas pelo corpo, eles também levavam a culpa da imoralidade”, atesta.

Há quem veja a questão com olhos menos acadêmicos, mas cheios de sentimentos. Afastar de vez o passado de dores e levar conforto físico e espiritual aos doentes de Pirapitingui é mais que uma questão de fé – trata-se, também de uma demonstração de desprendimento. Essa é a missão de um grupo de crentes da Igreja Internacional da Graça de São Paulo, liderado pelo evangelista Francisco das Chagas Batista. Pelo menos uma vez por mês, eles se dirigem à vila dos hansenianos, levando bíblias, alimentos, presentes e muito calor humano. “No começo, vínhamos apenas quatro pessoas e um carro; em seguida alugamos uma van e agora precisamos vir de ônibus”, brinca, satisfeito, o evangelista. Ali, eles realizam cultos, cantam, oram, pregam a Palavra, conversam muito e suprem uma lacuna dura de suportar: a solidão. Tudo é feito com a colaboração da igreja, que ajuda o grupo a arrecadar doações para os internos. Já as despesas com o transporte são divididas entre os próprios missionários. Mas ninguém reclama. “No tempo em que muitas dessas pessoas foram trazidas para cá, a lepra ainda era considerada uma maldição divina”, diz Batista. “Estamos aqui para amparar os carentes”, anuncia.

Agradeço se puder deixar um comentário.

JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 05/09/2008
Reeditado em 04/10/2022
Código do texto: T1163191
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.