DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA: O PROCESSO DE TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS PARA OS MUNICÍPIOS BRASILEIROS

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CUNHA, Hugo Alves

Especialista em Gestão Hospitalar pela Faculdade Internacional de Curitiba/FACINTER

BEZERRA, Francisco de Assis Pinto

Mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA)

RESUMO: O artigo analisa o processo de transferência de recursos para as unidades da federação, derivado da descentralização da saúde pública. Esta proposta foi alcançada a partir da Pesquisa Bibliográfica, cuja leitura e interpretação dos autores elencados permitiram compreender os meandros, atores e conflitos que permeiam esta política de grande interesse social. As evidencias mostram que a descentralização da saúde contribuiu para acentuar as desigualdades sociais quanto ao acesso a saúde, pois parte da sociedade de certo poder aquisitivo tem suas necessidades atendidas pelo mercado privado, Revelou que os conflitos impõem mudanças na relação de Gestão dos recursos da saúde, resultando na substituição dos bons gestores por Gerentes de fundo Municipal, marcados pela visão mercadológica, reflexo da orientação política. Constatou-se ainda que o conflito resulta na instabilidade das transferências e na má gestão na saúde, como efeito da: falta de autonomia política/administrativa dos Municípios; disparidade social/regional; cultura do sistema político/administrativo; e da ausência de consenso entre os teóricos na explicação do conflito. Conclui-se que estes elementos, em combinação, se traduzem nos precários serviços prestados pelo sistema público de saúde no Brasil, cujo pouco acesso beneficia o setor privado.

Palavras-Chave: Repasse. Conflitos. Participação. Acesso. Serviços de Saúde.

ABSTRACT: The article analyzes the resource transfer process for the units of the federation, derived from public health decentralization. This proposal was reached from the Library Research, whose reading and interpretation of the listed authors allowed us to understand the ins and outs, actors and conflicts that permeate this policy of great social interest. The evidence shows that the decentralization of health contributed to accentuate social inequalities in access to health, as part of a certain income society have their needs met by the private market, it revealed that conflicts impose changes in the management interface of health resources resulting in the replacement of good managers by Municipal fund managers, marked by market vision, reflecting the policy direction. It was further observed that the conflict results in instability of transfers and mismanagement in health, the effect of: lack of political autonomy / administrative municipalities; social / regional disparity; culture of political / administrative system; and the lack of consensus among theorists in the conflict explanation. It concludes that these elements, in combination, result in poor services provided by the public health system in Brazil, whose little access benefits the private sector.

Keywords: Transfer. Conflicts. Participation. Access. Health services.

1 INTRODUÇÃO

O estudo aborda e discute o processo de transferência de recursos para os municípios brasileiros, a partir da descentralização da saúde pública. Esta - vista pelo plano político e institucional, pode ser concebida como desagregação do poder público, indo desde a desconcentração de atividades, perpassando pela descentralização de poder decisório até a transferência de competências, responsabilidades e de recursos financeiros da esfera Federal para as unidades municipais (LIMA, 2011; BLANCO, 1994).

Pela descrição acima, o objetivo do artigo é analisar a descentralização da saúde pública, abordando e discutindo o processo de transferência de recursos para os Municípios brasileiros.

Pela dimensão administrativa, a descentralização da saúde representa à transferência de competências e de funções entre unidades federadas, isto é, a delegação de funções/responsabilidades administrativas da União para os Municípios. Um dos instrumentos para isto foi a Norma Operacional Básica do SUS - NOB/93, aprovada pela Portaria Nº 545 do Ministério da Saúde que - além de regulamentar o processo de descentralização da gestão dos serviços de saúde, estabelece mecanismos de financiamento para este segmento (ELIAS, 1996).

A descentralização e transferência da Gestão administrativa do serviço de saúde revelam e justificam a grande importância tanto destas disciplinas, como para o profissional da Administração, dado a sua relevante contribuição para aumentar a eficácia e a qualidade na gestão do serviço público, em especial no campo da saúde, visto a sua essencialidade junto à sociedade.

Um dos marcos da preocupação com a saúde pública data dos anos de 1960, quando os Estados Unidos criaram a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan Americana de Saúde (OPS), que tinham como objetivo difundir projetos de saúde para os países em desenvolvimento (BARROS, 1995). Com a intensificação do processo global e a perda de capacidade de financiamento dos Estados Nacionais, o tema descentralização ganhou destaque como uma bandeira universal, na medida em que distintos atores, grupos e setores o tomaram como política em conjunturas diferentes (ABREU, 2002).

No Brasil a descentralização da saúde pública tem um dos marcos o período da redemocratização do país, a partir da Constituição de 1988, quando os entes Federados (União, Estados e Municípios) passaram ter maior alocação dos recursos, cuja idéia básica foi aumentar a capacidade de financiamento e ampliar os serviços sociais básicos. Este tema passou a ser discutido no meio intelectual por duas decorrentes predominantes: Uma que aborda a descentralização da saúde pública, dando ênfase à transferência de recursos financeiros (AFONSO, 1996) e outra discute esta temática questionando as implicações administrativas (ALMEIDA, 1996).

Além de provocar polêmica entre as disciplinas, dado o seu processo complexo, multifacetário e gradual (BAETA, 1999); a descentralização da saúde pública envolve situações, atores e linhas de pensamentos distintos, cujo embate resulta na defesa de interesses difusos, o que acaba por gerar um campo de conflitos. Este pode inviabilizar o verdadeiro propósito da transferência da Gestão da saúde da esfera Nacional para os municípios e, assim, pouco atender àqueles que dependem da saúde pública. Prova disto, que mais de 15 milhões de brasileiros não tem acesso a saúde pública, por um lado, e mais de 45 milhões de pessoas dependem de serviços médicos privados, por outro (LIMA, 2011).

Portanto, a descentralização da saúde pública para os entes municipais, além de pouco cumprir com o seu propósito, gera disputa e conflitos entre atores distintos por maior fatia de participação de recursos ou pelo maior pode do seu gerenciamento, impactando de maneira negativa na produção e oferta de qualidade dos serviços de saúde pública. Foi este problema de conflito, gerado a partir do processo de transferência de recursos para financiar a saúde pública nos municípios brasileiros é que nos chamou atenção e foi à fonte da motivação e do grande interesse em desenvolver esta temática na Faculdade Internacional de Curitiba.

Ao tomarmos como objeto de investigação e de estudo os conflitos gerados no contexto da descentralização e a transferência de recursos para as esferas municipais, elaborou-se o seguinte questionamento: De que maneira os conflitos, gerados no processo de transferência de recursos, impactam na oferta e no acesso na saúde pública nos municípios brasileiros? Ao incursionarmos pelo fator conflito nas relações de transferência de recursos entre os agentes governamentais, espera-se identificar os principais elementos que contribuem para isto e, por estes achados, dar uma explicação próxima às condições da saúde pública as quais a sociedade brasileira se defronta.

Como parte-se do principio de que a descentralização da saúde pública, bem como a transferência de recursos, produz conflitos entre os diversos atores que participam deste processo, impactando no acesso e na Gestão deste serviço; formulou-se a seguinte Hipótese:

A transferência dos recursos da saúde pública para as esferas municipais brasileiras, realizada por critérios não políticos, reduz os conflitos gerados neste processo, aumentando à qualidade da Gestão e o acesso a este serviço a sociedade em geral. Isto é possível devido seus princípios normativos e regulatórios abrem margem para que os recursos sejam distribuídos mediante as decisões políticas que, por sua vez, é inerente as contendas e conflitos de interesses e de poder.

Além desta introdução, que explana a proposta do estudo, o conteúdo do artigo se traduz na fundamentação teórica; que está distribuida em três partes: Uma que trata dos pontos de vista dos autores sobre a descentralização da saúde pública; a outra descreve as mudanças e trajetorias da saúde; a última mostrar os mecanismos de transferência de recursos para os Municipios. A isto, adiciona-se a conclusão e sugestões finais, além da referências.

2. MATERIAL E MÉTODO

Para se cumprir o objetivo do estudo, incursionou-se nos manuais especializados, que abordam e discutem o tema proposto, onde foi feita a análise e interpretação das literaturas dos autores, cujo material coletado foi submetido a uma triagem a partir da qual foi possível analisar a descentralização da saúde pública; abordando e discutindo o processo de transferência de recursos para os Municípios brasileiros. Estes autores serviram de fundamentação teórica ao estudo, caracterizando-se numa pesquisa bibliográfica, como recomendada por Antonio Gil (2002).

3. RESULTADOS

3.1 PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE

O processo de descentralização das funções básicas e vitais da União passou a ser discutido e teorizado por várias autoridades da Administração Pública no Brasil, com maior intensidade, a partir dos anos de 1990, quando a Saúde teve maior visibilidade neste questionamento, cuja responsabilidade gerencial foi transferida para os Estados e Municípios. Sobre esta questão, Abreu (2002) considera que a descentralização da saúde pública no Brasil foi resultado da reestruturação do Estado Nacional. No bojo deste processo, Elias (1996) ressalta que a implementação da política de Ações Integradas de Saúde (AIS) foi uma estratégia de extrema importância para fortalecer a descentralização da saúde no Brasil (ELIAS, 1996).

Nas suas análises, Abreu (2002) acredita que a descentralização representa um mecanismo de redução das funções básicas sociais do Estado, como também faz parte da concepção da democratização da Administração pública, reduzindo a burocracia estatal. Neste termo, a descentralização burocrática e administrativa se traduz na inserção social nos serviços de saúde.

Sobre o processo de descentralização dos serviços básicos na esfera Nacional, Abrucio (1998, p. 195) destaca que, após a promulgação da Constituição de 1988, foi verificado:

Por um lado, tentativas do Governo Federal em “desmontar”, bem como transferir responsabilidades administrativas e, por outro, os Estados e Municípios passaram a fazer pressão no poder executivo Federal, obtendo maior participação na elaboração das políticas públicas locais e, assim, os entes federados periféricos assumiram também maiores encargos governamentais.

Na avaliação ainda de Abrucio (1998) a descentralização dos serviços públicos, como a saúde, foi realizada sem a coordenação do Governo Federal, sendo considerada como um dos piores modelos do mundo. Esta situação, segundo o autor, foi resultado de dois fatores inerentes aos Estados/Municípios:

a) É uma unidade de governo com papel menos definido, em termos de distribuição de competências, não estando preparada com estrutura administrativa; e

b) Esta indefinição, durante o processo da descentralização, se manteve como estratégia para reduzir a pressão local, no que diz respeito ao aumento de responsabilidades administrativas governamentais.

De acordo com as alíneas acima, dada a incerteza dos Governos estaduais e municipais, é que o processo da descentralização das políticas públicas sociais na área da saúde ocorreu segundo conveniências políticas de cada governo. Por este ângulo, os próprios entes que seriam beneficiados (Estados/Municípios) tornaram-se obstáculos ao processo de descentralização.

Baeta (1999), por seu turno, visualiza a questão da descentralização como uma demanda universal, pois permite o envolvimento e participação dos atores e organizações sociais. Este autor, em suas colocações contundentes, ressalta que a participação social é um dos requisitos do desenvolvimento socioeconômico contemporâneo (Grifo do autor). Esta intima relação entre descentralização e participação social pode ser considerada uma das condições para aumentar a qualidade da saúde, na medida em que os atores/representantes sociais orientam a alocação e aplicação eficiente dos recursos.

Nas pesquisas de Boisier (1991), este estudioso concebe a descentralização como um processo dinâmico e que envolve transferência de poder e que, em última análise, é um gerador de conflitos entre os atores participantes. Para o autor, esta conseqüência da descentralização impõe limitações nos argumentos a favor ou contra a este fenômeno no Brasil, o que restringe o próprio embate teórico sobre o tema. Conforme ainda este autor, o termo descentralização é usado de maneira equivocado, visto que a maioria dos Manuais especializados no assunto não estabelece uma relação contundente entre a descentralização e a democracia.

Bordeau (1980), ao se aproximar da opinião de Boisier (1991), teoriza a questão da descentralização, criticando a imprecisão conceitual, visto que a descentralização implica direta ou indiretamente em centralização. Para sustentar esta tese, o autor argumenta que a descentralização representa - como pano de fundo - uma reorganização do poder, sendo parte da formação dos sistemas políticos mundiais.

As colocações deste último autor são sustentadas nos estudos de Andrade (2003), quando diz que a dificuldade de se programar a descentralização é fruto do sistema político brasileiro, uma vez que a história republicana é marcada pelo predomínio de arranjos institucional centralizadores, o que deixou os governos estaduais e municipais em crônica e forte dependência de recursos da União.

Com base, então, nos estudos de Boisier (1991) e de Andrade (2003) a descentralização é uma estratégia dos sistemas políticos nacionais e internacionais (Grifo do autor). Neste ponto, dependendo das circunstâncias, a descentralização serve de “válvula de escape” para os Governos nacionais – como o Brasil, transferindo competências e responsabilidades administrativas públicas para Estados e Municípios, porém o poder político das operações continua no controle da União. Outro entendimento: É que “a descentralização por si só tem fundo político” (ANDRADE, 2003, p. 29).

Ao buscar construir uma teoria para a descentralização, Aquino (2001, p. 77) acredita que:

O grande problema para se construir um arcabouço teórico para descentralização reside na posição doutrinária dominante, que é apriorística, isto é, relaciona a descentralização a determinadas categorias, como a descentralização é bom ou mau, sem falar na polarização entre centralização versus descentralização.

Estudando a implantação da municipalização de políticas sociais no município de São Paulo, Arretche (1996) concluiu que não há uma relação necessária entre descentralização e democratização no processo decisório e muito menos entre descentralização e redução do clientelismo. Considera ainda que ocorreu uma profunda disparidade na implantação do processo da descentralização nos Estados/Municípios (ARRETCHE, 1996).

No Estado do Pará, por exemplo, o processo de habilitação municipal do SUS e a Municipalização do atendimento básico na Saúde apresentam índices inferiores à taxa Nacional – 58% e 54%, respectivamente, conferindo a esta unidade Baixo grau de Descentralização.

Com base nos autores analisados, o debate teórico sobre a descentralização da saúde, em particular no Brasil e, em geral, no mundo, é marcado por colocações distintas, cujos vários pontos de vista não permitem termos uma solução aproximada para o problema do conflito entre os agentes (União, Estados, municípios e Secretarias) que mantêm relação com as transferências governamentais. Cabe ressaltar, segundo o nosso entendimento, que esta ausência de consenso para com a descentralização da saúde é reflexo também da ausência de uma construção sustentável de um referencial teórico para este termo, cujo escopo contribua para superar as ambigüidades e contradições que a maioria dos manuais apresenta.

3.2 MUDANÇAS E TRAJETÓRIA NA SAÚDE

A centralização dos serviços públicos de saúde no Brasil data desde a Primeira República, constituindo-se em um traço marcante da estrutura da Administração Pública, o que possibilitou as tomadas e decisões concentradoras e burocráticas, modelo este que foi avesso a toda e qualquer tipo de consulta ou participação social (ALMEIDA, 1996).

Todavia, a partir dos anos de 1930, a concepção da saúde sofre mudança, visto que esta passa a se associar à necessidade da integração dos pólos preventivos e curativos, reflexo do entendimento de que as ações da saúde não deviam apenas eliminar a doença, mas também promover a própria saúde (BLANCO, 1994). Coloca ainda este autor que foi adicionado a este avanço, o direito à saúde que passou também a ser incorporado ao conjunto dos direitos sociais, colocando em discussão o papel do Estado na oferta da saúde pública em nível Nacional.

Abrucio (1998) analisam as mudanças nas políticas públicas na área da saúde, abordando a influencia dos Organismos internacionais, como o Banco Mundial. Em seus argumentos, estes autores chamam atenção sobre o papel destas agências internacionais na construção de uma agenda de reforma nos serviços básicos sociais, com vistas à redefinição de um padrão histórico de intervenção do Estado Nacional na área social.

Barros (1995), discutindo a trajetória do serviço de saúde no Brasil, aponta que as políticas de saúde eram definidas conforme o entendimento e a conveniência do Estado Nacional. Por conta disso, é que a base da saúde pública no Brasil se desenvolveu nos moldes das categorias sanitaristas. Cabe salientar que esta estrutura organizativa teve como viés orientador os agentes internacionais, quanto ao papel do Estado na produção e oferta dos serviços de saúde no País (ALMEIDA, 1996).

Nas considerações de Arretche (1996), às mudanças e a trajetória da saúde pública no Brasil têm marca do Governo militar, visto que o golpe de 1964 representou o afastamento dos municípios no processo de tomada de decisões das políticas públicas de saúde. Para o autor esse regime de Governo foi pautado num modelo centralista e assistencial, onde a fonte de financiamento foram as Caixas de Aposentadorias e de Pensões.

Este modelo, segundo dados do Brasil (1994), vigorou até a instituição da Lei 6.229/75, que criou o Sistema Nacional de Saúde, onde foram separadas as ações de saúde pública (política) daquelas consideradas de atenção à saúde das pessoas (aplicação). No final da década dos anos de 1970, foi criado o Sistema Nacional da Previdência Social e, ao mesmo tempo, transformou o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) em Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).

No entendimento de Boisier (1991) a modernização da saúde pública representou um modelo fundado na tecnocracia, cuja lógica era a transferência de recursos públicos para o setor privado, porém gerenciados pelo INAMPS. Conforme ainda este autor, os equipamentos e instalações físicas das instituições de saúde privada foram financiados com recursos públicos.

Todavia, com a criação do Ministério da Saúde, em 1980, Almeida (1996) frisa que um dos mecanismos para desburocratizar a saúde pública foi à instituição do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV SAUDE). Este programa pretendia ampliar os serviços de saúde, através da descentralização assistencial e organizacional do modelo de atenção à saúde e da criação de mecanismos interministeriais, com o apoio gerencial da Organização Pan americana de Saúde (OPS). Dada a crise financeira da PREV, foi criado o Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), o qual tinha como propósito a contenção dos gastos da Previdência com a assistência médica, o que reduz ainda mais o acesso ao serviço de saúde.

Na Constituição de 1988 o caráter democrático desta Carta incorporou atores difusos, como partidos políticos, organismos sindicais e comunitários, prefeitos, governadores, com também parlamentares comprometidos com o resgate dos projetos das políticas públicas de saúde, como maneira de democratizar as decisões administrativas junto à sociedade brasileira (ANDRADE, 2003; AQUINO, 2001).

O SUS instituiu os Conselhos de saúde e os Fundos de Saúde como mecanismos para aumentar a eficiência da Gestão dos recursos, cuja proposta foi aperfeiçoar a contabilidade das fontes das receitas e das despesas realizadas, como também facilitarem o controle social e autonomia na aplicação dos recursos, exclusivamente no segmento da saúde (BRASIL, 1994; BARROS, 1995).

Mesmo com a sua municipalização, Boisier (1991) e Almeida (1996) consideram que o acesso a saúde ocorre mediante aos mecanismos de mercado, isto é, a capacidade de pagamento dos usuários, visto que o poder público local não tem capacidade de ofertar este tipo de serviço a toda à sociedade, implicando num modelo excludente, o que legítima as desigualdades sociais e regionais.

Em síntese: As mudanças e trajetórias na saúde pública perpassaram por várias concepções tanto na oferta dos serviços, como na alocação dos recursos neste serviço. Porém, a História aponta que a saúde no Brasil sempre foi administrada de maneira centralizada e com pouca orientação das demandas sociais, representando, assim, um modelo excludente. Este legado – na nossa compreensão, certamente contribui para dificultar o processo da descentralização da saúde e a transferência dos recursos para as esferas municipais prejudicando grande parcela da sociedade que depende deste serviço para se reproduzir com vida.

3.3 MECANISMOS DE TRANSFERÊNCIAS DE RECURSOS MUNICIPAIS

As Normas Operacionais Básicas (NOB) fazem parte de um conjunto de instrumentos jurídicos voltados para regulamentar o processo de repasse de recursos financeiros da esfera Federal para os Estados e Municípios. A norma pioneira foi a de número 1/93, a qual introduziu alguns modelos de gestão para os municípios e estados, sendo que o critério para isto foi o grau de comprometimento e da estrutura administrativa, tendo embasamento à qualidade da gestão das prefeituras locais (ABREU, 2002; BAETA, 1999).

Nos estudos de Lima (2011) os fundamentos da transferência de recursos para os municípios estão inclusos na Legislação que instituiu o SUS, bem como nas NOB. Ela estabelece que os recursos sejam transferidos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais de Saúde que, por sua vez, repassam aos Fundos municipais de Saúde. Este repasse/transferência toma como critérios os seguintes fatores: Perfil demográfico e epidemiológico da população local; características da rede de serviços de saúde; níveis de participação da saúde nos orçamentos municipais e estaduais; previsão de investimentos; e o ressarcimento do atendimento prestado a outras esferas de governo (LIMA, 2011).

Além destes, outros critérios são considerados para a transferência de recursos federais para os municípios, dentre os quais Lima (2011) destaca os seguintes:

a) Critério per capita, que é utilizado para financiar ações de atenção básica da saúde pública;

b) Critério histórico da produção ambulatorial e hospitalar do SUS; e

c) Critério diverso, que visa financiar Programas de Atenção Básica (PAB), a exemplo dos Programas de saúde da família.

Além dos fundos, as transferências também ocorrem mediante aos mecanismos de convênios, que visam financiar os custeios das ações e serviços de saúde. Estes mecanismos são predominantes na medida em que não são regulados pelos dispositivos legais ou pela normatização do SUS, até porque cada convênio possui um dispositivo distinto. Neste ponto, prevalece a orientação política, cuja pressão das bancadas partidárias garante o repasse dos recursos para os municípios como maior poder político.

Então, basicamente, existem três mecanismos de transferência de recursos para os municípios brasileiros: Por Gestão, Fundos e Convênios. Para Abrucio (1998) estas modalidades de transferência de recursos para a saúde municipal vêm experimentando três dimensões conflitivas: Governo federal, Estados e Prefeitos, além das secretarias estaduais e municipais.

Pelo lado do Governo federal nota-se um recrudescimento da tendência recentralizadora; enquanto a Gestão estadual ainda tende a concorrer com os municípios em relação às competências de gestão e gerência dos recursos da saúde. Com os Municípios a contenda por poder financeiro não é diferente, o que gera atritos entre Prefeitos e Secretários, levando a substituição de bons gestores por gerentes do fundo municipal de saúde, que tem uma visão mercadológica e economicista da saúde (ABRUCIO, 1998).

Este quadro da Administração pública municipal é tomado também como preocupação por Afonso (1996), cuja opinião é de que a forma como a saúde é financiada se constitui num dos principais obstáculos ao processo de descentralização, bem como na democratização da saúde, gerando conflitos e disputas entre as unidades de governos de toda a Federação.

Por exemplo, no Estado do Pará, notadamente no Município de Santarém uma das políticas para esta unidade se habilitar a receber recursos para a saúde local foi à criação de um grupo de trabalho, assessorado por docentes da Ufpa, cujo propósito foi monitorar o processo de municipalização da saúde, visando à transferência, alocação e aplicação dos recursos.

Com base nas diversas linhas de discussão, tomou-se o seguinte aprendizado: Não bastam apenas os mecanismos normativos para regular e estabilizar os repasses financeiros, sem gerar conflitos, seja pelo seu gerenciamento, seja pela maior fatia dos recursos; mas que isto: Tem-se que criar instâncias locais e com o envolvimento e participação efetiva dos próprios usuários dos serviços de saúde, fiscalizando a qualidade da aplicação dos recursos, por um lado, e instituir mecanismos alternativos de transferência, afastando as influências políticas, por outro. Neste outro cenário, a descentralização da saúde pode cumprir o seu verdadeiro papel, que é ampliar a oferta deste serviço e com qualidade para a parcela da população que depende deste essencial serviço.

4. CONCLUSÕES

Ao investigar o problema de conflito, gerado a partir do processo de transferência de recursos para financiar a saúde pública nos municípios brasileiros, a pesquisa apontou para as seguintes evidencias, como se discorre a seguir.

Uma evidencia central do estudo é que a descentralização - enquanto estratégia de reorganização do serviço da saúde no país tendeu a ficar sob a hegemonia da esfera Federal, reproduzindo um modelo excludente, dado a incerteza e vulnerabilidade dos Governos municipais. Esta situação fez com que o processo da descentralização ocorra segundo conveniências políticas de cada governo, sinalizando que as transferências dos recursos para a saúde têm orientação política. Além disto, constatou-se que as transferências continuam a reproduzir as fortes disparidades e desigualdades regionais e locais.

Esta constatação requer a participação social, orientando a alocação e aplicação eficiente destes recursos, possibilitando os grupos sociais se capacitarem para decidirem a equacionarem suas próprias demandas, fazendo ter validade a vontade coletiva na Administração Pública municipal.

O estudo revelou que a adoção dos mecanismos normativos para regular as transferências financeiras não é o suficiente para evitar a produção de conflitos entre a União, Estados, Municípios e Secretários. Por conta disso, recomenda-se que sejam criadas instâncias locais e com o envolvimento e participação efetiva dos próprios usuários dos serviços de saúde, fiscalizando a alocação e aplicação dos recursos, priorizando as demandas mais urgentes.

Para reduzir os conflitos do processo de transferência de recursos para financiar a saúde nos Municípios brasileiros, sugere-se que sejam instituídos mecanismos alternativos de transferência, escusos de influências políticas. Assim, a descentralização pode cumprir o seu verdadeiro papel, que é ampliar a oferta deste serviço e com qualidade para a parcela da população que depende deste essencial serviço, tornando-se um modelo includente.

Destarte, agora, podemos nos aproximar das três propostas do estudo:

- Objetivo do artigo: Analisar a descentralização da saúde pública, abordando e discutindo o processo de transferência de recursos para os Municípios brasileiros, conclui-se que: Mesmo com a municipalização da saúde, grande contingente da sociedade tem acesso a este tipo de serviço no mercado particular/privado de saúde, revelando que a descentralização fez apenas legitimar as desigualdades sociais e regionais; ou seja, a descentralização não cumpre o seu papel de aumentar a oferta e a qualidade da saúde pública, dados os conflitos entre os atores e instituições envolvidas no processo.

- Pergunta norteadora: De que maneira os conflitos, gerados no processo de transferência de recursos, impactam na oferta e no acesso na saúde pública nos municípios brasileiros?

Os conflitos, oriundos na esfera da União, ao gerar também contendas nos Estados, impõem mudanças na relação de competências de gestão e de gerenciamento dos recursos da saúde nos municípios, resultando na substituição dos bons gestores Administrativos por gerentes de fundo municipal de saúde, cuja visão mercadológica e economicista faz aumentar a exclusão no acesso ao serviço de saúde. Esta situação é produto do enfrentamento conflitivo entre atores distintos, que disputam a maior fatia das dotações financeiras, deixando em segundo plano as demandas sociais urgentes de saúde pública, reflexo da orientação política.

- Hipótese do estudo: A transferência dos recursos da saúde pública para as esferas municipais brasileiras - realizada por critérios não políticos, reduz os conflitos gerados neste processo, aumentando à oferta e o acesso deste serviço a sociedade em geral; visto que seus princípios normativos abrem margem para que os recursos sejam distribuídos mediante decisões políticas que, por sua vez, é inerente as contendas e conflitos de interesses e de poder.

Considera-se esta Hipótese como verdadeira, pois é o fator conflito ser o responsável pela instabilidade das transferências municipais e pela má qualidade da gestão na saúde pública.

Como produto deste estudo, conclui-se que: O serviço de saúde pública no Brasil sempre foi administrado de maneira centralizada e com pouca orientação das demandas sociais, legado este que certamente dificulta o processo da transferência dos recursos para as esferas municipais, prejudicando – na ponta da cadeia, grande parcela da sociedade que depende deste serviço vital para se reproduzir com vida. Para piorar esta situação, a discussão teórica sobre o tema em questão é marcado por colocações distintas, não permitindo a construção de um referencial teórico consistente e que explique o problema dos conflitos entre as diversas instancias políticas administrativas, reduzindo as ambigüidades dos manuais.

Como titular deste artigo, toma-se a posição de que a interferência política no processo de transferência de recursos para a saúde pública não é algo inerente ao fenômeno da descentralização, como muitos autores pensam; mas, contudo, faz parte da cultura política centralizadora e dominadora do próprio sistema capitalista, cujo embate pela manutenção do poder não permite reconhecer a autonomia das demais esferas e, muito menos, da participação social que, cronicamente, sempre foi excluída de todo e qualquer processo decisório.

Ao investigar e estudar o problema de conflito, gerado a partir do processo de transferência de recursos para financiar a saúde pública nos municípios brasileiros, a pesquisa identificou os seguintes elementos que alimentam e contribuem para (re) produzir esta problemática, dentre os quais: A falta de autonomia política e administrativa no contexto da transferência dos recursos, bem na própria descentralização; A crônica disparidade social e regional, que se reproduzem na alocação Nacional dos recursos; A cultura do sistema político/administrativo brasileiro, que descentraliza apenas responsabilidades, sem transferir poder; e a ausência de um consenso entre os teóricos, dando uma explicação sustentável para o fenômeno dos conflitos no bojo das transferências dos recursos. Estes fatores, além de ser uma sinalização as políticas da saúde – em parte, explicam o péssimo quadro da saúde pública no Brasil.

Por fim, desenvolver este artigo foi de extrema valia, pois contribuiu, de modo preponderante, para agregar-me valor profissional nesta área, gerando competências e habilidades para discutir no meio intelectual a referida temática, atributos estes de grandes exigências no mercado de trabalho altamente competitivo. E, para finalizar as minhas considerações, a idealização, realização e conclusão do Curso de Gestão Hospitalar aumentaram a minha formação, possibilitando-me equacionar problemas de Gestão de transferência de recursos entre as diversas instancias das unidades da Federação.

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ASSIS BEZERRA e Hugo Alves
Enviado por ASSIS BEZERRA em 08/05/2015
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