HUMOR CRISTÃO

Humor ganha força entre os cristãos como forma de evangelismo ou de simples entretenimento

Você, que é crente, já deve ter ouvido esta: certo irmão, para provar que tinha a mesma fé que Daniel – o personagem bíblico que foi salvo por Deus de uma cova cheia de leões –, resolveu repetir a experiência narrada nas Escrituras. Sorrateiramente, esgueirou-se para dentro da jaula dos leões no zoológico e lá ficou orando, olhos fechados, pedindo o livramento de Deus e esperando a reação dos animais. Lá pelas tantas, como nada tinha acontecido, resolveu dar uma espiada e viu que um dos leões, justamente o maior, estava bem ao seu lado, orando também. Eufórico, comemorou o milagre e interpelou o bicho, perguntando por que estava orando. “Eu sempre costumo das graças antes das refeições”, respondeu a fera, antes de partir para cima do crente abusado. Embora se diga que com a fé não se brinca, anedotas como esta fazem parte do folclore evangélico e são repetidas à exaustão pelas igrejas, arrancando boas gargalhadas. E o mais curioso é que boa parte das piadas crentes debocha justamente de algumas práticas e costumes dos próprios evangélicos.

Como se diz por aí, rir de si mesmo não faz mal a ninguém. Que o diga o pastor e professor Jasiel Botelho, presidente da Missão Jovens da Verdade, com mais de 30 anos de atuação entre a juventude evangélica brasileira. Missionário, ele faz questão de viver a fé cristã de maneira descontraída e irreverente, e usa o humor como veículo de evangelização e – por que não? – entretenimento mesmo. Célebre por suas charges e cartuns, em que ridiculariza algumas mazelas do meio evangélico, Jasiel conta que começou esse trabalho ainda nos anos 1980, quando acompanhou a passagem do célebre teólogo britânico John Stott pelo Brasil. “Ele usava muitos desenhos engraçados para ilustrar seu evangelismo; então, eu também resolvi investir nesse tipo de atividade e o resultado foi muito positivo”, conta. “Até que, num congresso de missões, o diretor de uma editora viu a exposição de meus desenhos e sugeriu a ideia de lançarmos um livro.”

Assim nasceram No Tempo da Graça e Divina Comédia, ambos editados pela Mundo Cristão, de São Paulo. Além disso, Jasiel publicou também Rir é Coisa Séria (Editora Socep), e atualmente se dedica a uma nova publicação destinada a casais, outra vertente bastante importante em seu campo de atuação. O pastor conta que nem sempre os evangélicos aceitaram este gênero de expressão. “No passado, não havia muito espaço para brincadeiras nas igrejas tradicionais. Ao ingressar no Ministério Palavra da Vida, contudo, pude me soltar mais”, explica. O carro-chefe de seu trabalho são as tirinhas e cartuns, como alguns que ilustram esta reportagem. Mas Jasiel também pinta quadros – e ultimamente, influenciado pelo filho, mantém um blog praticamente todo dedicado ao humor cristão (http://jasielbotelho.blogspot.com), que tem tido cada vez mais acessos – prova de que os servos de Jesus não querem levar a vida assim tão a sério como se pensa.

Capacidade de se alegrar – O teólogo anglicano Robinson Cavalcanti acredita que o humor é uma excelente ferramenta para atrair mais a atenção dos fiéis, tanto que até o compara a uma espécie de manifestação artística. “Deus concedeu ao ser humano a capacidade de se alegrar, de rir de situações. Creio que o uso do humor, seja no teatro, na docência ou na pregação, é uma forma de arte, e deve ser usado como uma estratégia adequada para a evangelização”, salienta o religioso. Escritor e bispo da Diocese Anglicana do Recife (PE), Cavalcanti afirma, com orgulho, que o humor, tão latente em sua personalidade e costumeiramente usado em seus sermões e palestras, seja herança dos antepassados, principalmente por parte de seu avô paterno. Entretanto, ele admite que essa prática não é unânime entre todos os receptores. “Com os estudantes sempre foi muito bem aceito, já que o humor facilita até a comunicação; já alguns dos mais velhos, especialmente de determinadas denominações, não vêem essa abordagem com bons olhos”, reconhece. “Mas a alegria é uma marca forte da cultura brasileira.” Independente da esfera social e da circunstância em que ocorra, para a psicobiótica Silvia Helena Cardoso o riso é um elemento vital no repertório comportamental humano. “Precisamos dos risos e das brincadeiras para interagirmos como indivíduos com o grupo no qual nos inserimos, e também para aliviar as tensões do cotidiano”, diz a doutora em seu artigo O Poder do Riso (Revista Cérebro & Mente, junho de 2002).

Ao longo da história da Igreja, contudo, o riso foi exceção, e não regra. As duras condutas de fé e comportamento ditadas pelas autoridades eclesiásticas sempre apontara no sentido da dor e do sofrimento, e não da alegria. Assim foi durante toda a Idade Média e na Inquisição, época em que religiosos mais saidinhos podiam até ser condenados à fogueira. O Tribunal do Santo Ofício, órgão eclesiástico que controlava toda a vida em sociedade, proibia o riso, então considerado manifestação do diabo. “O riso mata o temor e sem temor não pode haver fé, pois, se não se teme ao demônio, não há mais necessidade de Deus”, diz um velho monge numa das cenas finais do filme O Nome da Rosa – adaptação do romance homônimo do italiano Umberto Eco, cuja história se passa no século 14 num mosteiro beneditino da Europa medieval.

No mesmo longa, o monge franciscano William de Baskerville – papel interpretado pelo veterano Sean Connery – argumenta que o riso é particular dos humanos, inclusive dos personagens bíblicos. “Até os santos usaram de comédia para ridicularizar os inimigos da fé”, dizia ele. Nem mesmo o mais astuto inquisidor, seja no cinema ou na vida real, poderia imaginar que, num futuro distante, aquilo que o tribunal católico condenava como pecado se tornaria um atributo essencial para a vida em sociedade no mundo contemporâneo – talvez essa percepção tenha ocorrido somente ao grego Aristóteles, muitos séculos antes disso tudo.

Para Robinson Cavalcanti, embora os tempos do “fogo santo” já tenham ficado para trás, o preconceito em relação ao humor continua fazendo parte do meio religioso. “Lamentavelmente, ainda há muita seriedade em alguns segmentos cristãos. O humor pode não ser mais visto como algo do demônio, mas muitas vezes ainda é tido como sinal de carnalidade, de falta de espiritualidade, respeito e reverência”, observa.

Para o ex-gerente de banco Lineas Dominicano, agora líder da Igreja da Família, em Jaraguá do Sul (SC), felizmente os tempos são outros e, atualmente, o humor evangelístico é essencial para que o Evangelho alcance um número cada vez maior de pessoas. “É muito difícil alguém demostrar alegria sem rir, e a Palavra de Deus diz que o Senhor é a nossa alegria. Uma pitada de humor no momento adequando, certamente fortalece as pregações e as palestras”, afirma o pastor que, naturalmente, também se utiliza desse recurso, colocando em prática, como ele mesmo diz, o aprendizado obtido no mundo secular. “Entretanto, não devemos esquecer que o humor deve sempre estar voltado para o evangelismo, e nunca o evangelismo para o humor”, adverte.

Sem perder a piada – Mas ninguém hoje discorda que uma boa piada faz bem à mente e à alma. O riso corre solto, contribuindo significativamente, segundo médicos e psicólogos, para a melhoria da qualidade de vida, além de espantar medos interiores e ainda promover interação e empatia social. “O riso é a menor distância entre duas pessoas”, disse, certa vez, o comediante dinamarquês Victor Borge, com uma precisão quase aritmética. Falecido há cerca de oito anos nos Estados Unidos, Borge fez bastante sucesso como pianista e humorista, tanto que ficou conhecido como o “rei dos palhaços da Dinamarca”. Faz coro à síntese do comediante uma grande leva de neurologistas, como Robert Provine, especialista em estudos relacionados ao riso da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. “O riso representa a comunicação mais direta possível entre as pessoas – de cérebro para cérebro –, com nosso intelecto pegando carona no que pode ser chamado de um engate límbico", explica, cientificamente – sem lá muita graça, diga-se de passagem.

Definitivamente, o humor cristão parece, a cada dia, estar conquistando mais espaço nos meios de comunicação, sobretudo, no universo virtual. Mas, se hoje essa tendência é uma realidade, é preciso voltar um pouco no tempo para descobrir os verdadeiros desbravadores desse novo gênero literário. Um deles foi o pastor Ivan Espíndola de Ávila que, embora tenha ingressado em cursos teoricamente sérios como teologia, direito e filosofia, além de também investir na carreira política – o reverendo, ligado à Igreja Congregacional, foi vereador e deputado estadual –, jamais deixou de lado o bom humor, uma característica que mais lhe parecia marca de nascença. O “deputado da Bíblia”, como ficou conhecido na Assembleia Legislativa paulista, dedicou a maior parte de sua vida à Sociedade Bíblica do Brasil. Antes de sua morte, em 2006, aos 73 anos, escreveu uma série de livros – como Meu Pai Era Pastor, em homenagem a seu genitor, Augusto Paes. Contudo, o maior legado deixado pelo “mestre do humor” foi a contribuição para uma mudança de mentalidade entre as lideranças evangélicas e o consequente rompimento daquele paradigma até então existente de que crente tinha que ser sempre sério e conservador. Espíndola fez do humor uma de suas principais bandeiras cristãs.

Quem também contribuiu, e muito, para levar a graça – não apenas a de Deus, mas também a dos homens – aos púlpitos foi o pastor presbiteriano Antônio de Almeida Elias. Simpático, boa-praça e gozador, Elias nem por isso deixou de ser um dos mais respeitados líderes evangélicos do Brasil no século 20. “Com um humor invencível, ele influenciou gerações de líderes e igrejas, tanto presbiterianas como de outras denominações, na direção da piedade, santidade, busca do avivamento, dedicação pastoral e evangelização”, disse o colega Jeremias Pereira da Silva, da Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte (MG) por ocasião de seu falecimento, há dois anos. Mas quem o conheceu sabe muito bem que ele jamais perdia a oportunidade de fazer uma boa piada.

“Deus é humor” – Uma das primeiras revistas voltadas para o público evangélico a introduzir cartuns cômicos em sua linha editorial, a Kerygma, que circulou na década de 80, parece ter plantado uma semente que agora também começa a florescer. Engatinhando no gênero humorístico cristão, a revista Karapuça (instruções para download no blog http://karapuca.blogspot.com) acaba de lançar no mercado – por enquanto virtual – a primeira edição de sua publicação, num projeto que, de acordo com o designer e cartunista carioca Manuel Izidro dos Santos Jr, surge como alternativa para o humor inteligente, que faz rir e pensar. “A ideia da revista não é ridicularizar a Igreja, mas sim questionar, com irreverência, as atitudes que a têm feito sair da direção bíblica para seguir num caminho mais distante do Trono”, explica ele, ansioso por saber como será a repercussão do empreendimento. “Meu trabalho tem uma veia crítica muito forte e pelos quadrinhos eu emito minha opinião sobre os problemas da Igreja brasileira dos nossos dias. Creio que, por isso, às vezes posso não agradar a todos da mídia gospel”, continua.

Membro da Igreja Presbiteriana Betânia de Icaraí, em Niterói (RJ), Izidro, que é um profissional bastante conhecido do meio secular, já expôs seu trabalho em vários países e abocanhou muitos prêmios, aponta também a importância, no contexto social atual, de se utilizar do humor para fins evangelísticos. “Chega de gente mandando em Deus, chega de louvor repetitivo e que leva apenas à euforia. Quero um cristianismo criativo, coisas novas para levar adiante o Evangelho de Cristo. Afinal, Deus é amor, mas Deus também é humor”, conclui, em tom de desabafo, o cartunista.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 19/06/2009
Reeditado em 04/10/2022
Código do texto: T1656663
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